sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Rotina

Gosto de ter hábitos. Certamente essa afirmação causará arrepios e descaso em muitos, mas me satisfaço com uma boa rotina. Evidentemente gosto de novidades e acontecimentos que surpreendam. Mas justamente o que faz deles isso, é não serem frequentes. É na falha do hábito, na mancada da rotina, que surge o novo. 

O que me emburrece mesmo é a repetição, essa é de outra ordem para mim. É aquela velha coisa que permanece, que de tão insistente, vira fixa, estática, cristalizada. Essa sim é um pé no saco. Entra ano, sai ano, é tudo a mesma coisa. E não é como na rotina, que há uma estrutura de funcionamento com um objetivo bem definido. Não, a repetição tem uma estrutura mal-ajambrada, com um único objetivo de enrijecer mais ainda. 

Diante daquela frase: 'quem espera sempre alcança', fico aqui me perguntando, esperar o quê? que uma surpresa aconteça ou que a velha máxima não se repita?

Olho para o céu, pisco bastante para ver se as estrelas mudam de lugar. Não, elas estão lá, quase para sempre, habituadas a não fazer nada além de brilhar e se consumir até sumirem. Isso lá é assim, sem mais nem menos, apenas isso. 

Piso na terra e caminho pelo chão, ora frio, ora quente, molhado ou seco, áspero ou liso, e assim por diante. Aqui na Terra, nada é fixo, cada coisa, em cada momento, funciona de um jeito diferente. 

Mas aí, eis que entra em cena, a nossa habilidade mais humana, a falastrice. Inventamos essa faculdade de transformar as coisas em outras coisas. E, uma vez que a gente faz uma passar pela outra, selamos o destino: o futuro que é a imagem e semelhança do passado. Mas o que passou não é mais aquilo, porque, como disse acima, a falastrice travestiu isso de aquilo. Daí que justamente repetimos chamando isso de aquilo, esperando que aquilo seja isso.

Toda essa volta para dizer o que já afirmei lá no começo, gosto de rotina, é só nela que isso pode ser isso mesmo. 

Simone de Paula - 25/12/2020

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Escrever o Conto.

Eu queria escrever uma história, com começo, meio e fim. Mas para isso, era preciso primeiro saber o que contar e de quem contar. 

Decidi falar de uma mãe e seu bebê. Os primeiros meses, as impressões, sentimentos e pensamentos que naquele encontro poderiam se passar. Mas daí lembrei do pai e ele me exigiria começar antes do bebê, na história de uma mulher e um homem. Desisti, ia ficar longa demais, complexa.

Então, resolvi que poderia escrever a aventura de uma criança de sete anos passando as férias na casa dos tios. Mas daí percebi que a situação pedia uma explicação. Se eu quiser escrever sobre isso, o simples fato de ter o que contar disso me levaria a ter que explicar o porquê dessa criança, nessas férias, estar na casa dos tios. Possivelmente, os personagens aumentariam e a história dos pais entraria na narrativa.

Bem, poderia escrever sobre o envelhecimento de um homem, seu corpo, sua vida, suas desculpas. Mas como uma biografia, isso pediria ir voltando até sua infância, nascimento, encontraria de novo os pais. 

Entendo então, que aquilo que se conta faz um movimento retrógrado, em busca do início do que parece pedir para ser contado. E, quando caminhamos de volta ao princípio, na gênese estão eles ali de novo, os pais. Antes de tudo, o pai. 

Já chamamos de deus, mas a ciência encontrou um nome melhor, espermatozoide. Cada um que nomeie o primeiro de todos, o início de tudo, com o nome que quiser.

Mas nessa caminhada, pensando no pai, aquele lá do bebê da primeira história, olhando pelos olhos dele, registro um rasgo de pensamento: "ufa, dei Y, parte da dívida já está paga!"

Simone de Paula - 18/12/2021

Ilustrador: Davide Bonazzi


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Aparição

Eu queria mesmo era poder traduzir em palavras o que foi aquela aparição.

Eu estava sentada, num papo amigável, sobre questões íntimas, dores do corpo e da alma. 

O clima não era sombrio, bem como o ambiente também não estava escuro. Tinha luz, sol, cor, sorrisos e simpatia. 

O convite veio com o prévio aceite combinado: "feche os olhos!" E eis que naquele exato instante de pálpebras cerradas, o bichão pulou no vidro.

Eu estava em outro lugar. Ao mesmo tempo eu via minha silhueta de costas, numa sala escura. E via ao fundo, duas pessoas conversando numa sala de meeting. E, entre esses dois planos, um terceiro, espécie de aquário, em que a criatura apareceu.

Realmente não tive um susto, mas uma surpresa. Tinha uma cara de Gólum, zumbie, cadáver de capa de disco de heavy metal, algo desse tipo, mas jamais assustador, era uma coisa que me olhava curiosa.

Eu estava do lado escondido do vidro, tipo sala de interrogatório, ou estúdio de rádio e tv, ou ainda a chamada sala de espelho, aonde quem está do lado iluminado não vê do outro lado. 

Ainda agora, quando eu escrevo, sorrio pela carinha inocente e perversa daquela coisa e não consigo dizer mesmo a cena toda.

Somando, eram três planos, observados por um quarto olho. Dois de dentro para fora e dois de fora para dentro. E o som, do lado de cá era silêncio, que combinava com o ambiente escondido. E, do lado de lá, era vácuo, causado pela separação entre as salas. No vidro e na cena de dentro, a luz toda era vermelho alaranjada, quente, vibrante. E, na penumbra, era apenas um cinza preto e branco, ao mesmo tempo que as cores da realidade, apenas apagadas pela falta de luz do ambiente.

Surreal, sobrenatural, onírico, não dá para capturar, e isso só acontece quando a gente não planeja.

 

Simone de Paula - 11/12/2020



sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Mística

 Já se passaram alguns anos de abandono do dom. Senti cansaço e excesso. O dom não me parecia mais profético, tinha se tornado mecânico.

Foram muitas páginas de palavras plenas e mágicas tomadas como lemas a seguir. Nem sempre resultaram em vida além da mesmice dos índices e títulos que refletissem a totalidade absoluta de ser o topo da lista.

Releio, relembro, ainda desânimo em pensar que o destino está aí, permanente, imutável, cíclico, sem satisfações a dar nem para o Homem e muito menos para Deus.

Desisti de negar para aquela que mais almeja a verdade do querer e persegue o oráculo com a persistência de quem treina para obter um resultado objetivo. Aqui, as palavras são em vâo, sem sentido e nem intenção. Só visando mesmo o disfarce do controle da ação.

Simone de Paula - 04/12/2020




sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Gangorra

Quem fica em cima? Quem fica embaixo? 

Se não ajustar as proporções, a brincadeira não acontece.

É o brinquedo que pela sua estrutura declara: todo mundo é diferente.

Cada um brinca como quer, mas sozinho, é muito difícil sair do tédio, dos pulinhos ou de uma fixação no chão.

Para mim o objetivo é se manter o máximo de tempo no ar, as duas partes se equilibrando, indo para frente e para trás, para cima e para baixo, forçando a gravidade ou tentando levitar. 

Quanto mais os dois componentes da brincadeira se envolvem com o outro, que fica do lado de lá, mais a coisa acontece. 

A concentração é fundamental para a excitação e o prazer incalculável da experiência.

Depois de grande, a gente deixa a gangorra no parque e pula pra cama.

 

Simone de Paula - 27/11/2020 




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A folha, a pena, a flor e a pedra

A folha, a pena, a flor e a pedra.

Unidas todas elas, decorando a moeda talhada de pétalas sextavadas.

O rosa se esconde por traz do cobre terroso. 

O verde se mostra nos brilhos acinzentados no corte do diamante.

Madrepérola, furta-cor, nas matizes da mandala pontiaguda.

Entre círculos e gotas, o infinito seduz.


Simone de Paula - 20/11/2020

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Teoria das Cores

A viscosidade do sangue se sentia na superfície macia. Era quente, de um vermelho forte, fechado, quase coagulado. Olhar pedia profundidade para distinguir o desenho dos traços que determinavam o quase marrom e o leve rosado.

Tirando um pouco de brilho, peso e densidade se perderam. Ficou o alaranjado enferrujado salpicado de brancos. Os opacos diluíram a massa vermelha de antes.

Um balde de alvejante lavou tudo, embranqueceu e criou pequenos poros, enrugando a superfície, amarelando o fundo em torno do qual se orientava.

Partido em dois, carregou o branco, mas buscou a fusão amorosa do rubro, crescendo tal qual rosa na primavera do jardim. O tamanho e a brutalidade revelam a potência viva da formação, separada dos demais, destacada o alinhamento.

Subindo em busca de novos encontros, misturou-se com a força do céu, do azul profundo, esverdeando o caminho. Simulando Jade, se mantém dura, resistente, persistente, de beleza inestimável.

Mas a opacidade e soberania do azul não quiseram mais dividir a atenção. Fechado em toda a intensidade do céu e do mar, sem limites, imortal. 

E, não contente com a atenção que beirava a atração orbital, ainda se aprofundou mais, silenciou, fez anoitecer sem Lua, só filetes de estrelas cadentes cortando o firmamento.

Se consumiu na escuridão e se transformou na mística purple.

Sem conseguir brecar a dispersão iluminada, se tornou cristal, translúcido, renascido e por nascer.

Simone de Paula - 13/11/2020



sexta-feira, 6 de novembro de 2020

O passo

Já te sonhei e busquei. Te imaginei e fantasiei. 

Mas, não mais. 

E agora? O que eu faço com você lá longe, distante no tempo mais do que no espaço?

A pegada pisada deixa marca, mas não se move com o passo. Mancha o caminho, pinta a superfície, prende a sombra, segura o tempo. Não sai de lá.

Despedida não funciona. Esquecimento é impossível. 

Como, só como parece ser a pergunta resposta, contida na mesma palavra que não resolve a questão, como um paradoxo, e o ciclo permanece infinito.

Se tire daí! 

Saia dali! 

Venha aqui!

 Simone de Paula - 06/11/2020



sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O ábaco

Ahmad saiu da loja carregando no peito a sensação de incerteza que antecedia as escolhas que a vida lhe impunha. Repassava a conversa com Karim de forma a capturar letra por letra o que ele estava a lhe oferecer. Conversava consigo mesmo tentando se convencer que o negócio tinha sido bom, mesmo que ele soubesse que deveria ter se esforçado mais para que o preço abaixasse. Mas ele não podia deixar de lembrar o brilho nos olhos do dono da loja, marcadamente agressivo, provocando o medo de ser expulso de lá por não respeitar o valor imposto e desmerecendo a mercadoria. Ele guardava lembranças muito fortes de olhares agressivos.

Chegou em casa buscando repouso. Lavou mãos e rosto e vestiu uma túnica branca, leve. Trouxera comida da rua, mas não sentia fome. Ascendeu um cigarro do lado de fora e ficou olhando o céu estrelado e a lua nova que se mostrava só em filete. O cheiro do fumo o fez lembrar da cortina de seda que tinha visto naquela tarde. Sentiu uma enorme paz no coração. Esboçou um sorriso de felicidade.

Morava num pequeno apartamento nos fundos da casa dos tios. Era o bastante para um rapaz solteiro. Trabalhava num escritório contábil não muito longe dali. Não tinha muitos amigos e levava uma vida bem regrada. Mas naquela noite, o céu e o cigarro pediam um pouco de arak, uma bebida forte para acender o corpo e aquecer a alma. O barulho das crianças brincando na rua, os carros buzinando, tudo isso parecia muito longe, um som que estava tão fundo que não atrapalhava sua contemplação.

Adormeceu sem perceber, como Giti. Se conectaram sem saber. Durante a noite, ele sonhou com o mesmo céu estrelado e via a lua dançar, ondulante. As estrelas circundantes deixavam rastros brilhantes de cor branca luminosa. Tudo se movia em sintonia, ele podia até ouvir uma melodia. Acordou meio atordoado com a luz excessiva do sonho nos seus olhos. Já tinha amanhecido fazia tempo e ele pulou da cama atrasado. Imaginou que o dia seria difícil, mas para sua surpresa, tudo fluiu na maior tranqüilidade.

O escritório contábil em que trabalhava pertencia ao seu tio, marido da irmã da sua mãe. Fez seus estudos sem saber que ocupação teria, pois não poderia seguir os passos do pai, que perdera a sapataria após a sua morte. Com três anos, ele era muito pequeno para assumir o pequeno ateliê.

Como era uma criança tímida e concentrada, com facilidade para somas, perceberam sua inclinação para a matemática. O incentivaram a se dedicar mais e fazer faculdade nessa matéria. A família sabia que precisaria lhe indicar um trabalho, tão logo tivesse idade para assumir alguma ocupação, e diante do horizonte de possibilidades, a aptidão para somas rimava com o escritório contábil. E assim foi selado o destino de Ahmad. Ele aceitou, tinha sido criado para ficar onde lhe colocassem, aceitar o que lhe fosse oferecido. Não desgostava, nem pensava nisso. Cumpria suas obrigações e, pela facilidade com que entendia os processos, acreditava que realmente esse era o seu dom. 

#domeuleitodemorte #sherazadefeelings #tobecontinue #simonedepaula #30/10/2020 #capitulo2

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Assombro

Quanto de acerto tem numa certeza?

Digo que 100%, desde que ela seja cifrada antecipadamente e decifrada no instante do agora.

Números, letras e formas, qualquer desses signos servem para grafar algo ainda sem sentido. 

Mas os dias passam, com eles as estações do ano, as ondas do mar e os afetos de dor e de amor.

E, num dia, de surpresa, com assombro, encontra-se a imagem do que nem se tinha imaginado, mas que estava realizado.

É assim, com certeza!


Simone de Paula - 23/10/2020

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O ábaco

O movimento da cortina no fundo da loja chamou a atenção de Ahmad. Seus olhos não viram mais que um leve balanço da cortina de seda cor de mel. Mas isso bastou para seu coração disparar e sua mente precisar de muito esforço para se concentrar na explicação de Karim, sobre a peça de madeira que estava no balcão.

Karim era um comerciante de ábacos feitos artesanalmente. Mantinha a tradição de muitas gerações de sua família. Desde jovem, tinha se especializado na confecção e venda das peças, e assumira a pequena loja no souk central. Tinha ensinado Giti, a filha mais velha, a arte do entalhe da madeira e sentia orgulho da delicadeza com que ela trabalhava cada peça de forma exclusiva. Mas ele era um pai muito cuidadoso e conservador e não permitia que ela viesse à frente da loja quando tinha algum cliente.

Ahmad tinha se decidido a comprar uma nova peça, porque a sua estava desgastada demais. Ele era um estudante obstinado, que passava longos dias e noites calculando. A matemática tinha sido o primeiro amor, mas um amor difícil de conquistar. Ele tinha perdido os pais ainda criança e fora cuidado pelos irmãos da mãe. Sabia desde novo que precisaria encontrar seu caminho, pois ser órfão indicava que ele teria mais dificuldades para se estabelecer no mundo.  Escolheu a loja de Karim por mero acaso: olhou, sentiu um cheiro discreto de fumo vindo lá de dentro e foi atraído pela atmosfera silenciosa.

Enquanto os dois homens conversavam demoradamente no balcão, Giti se dedicava à escolha da matéria-prima para confeccionar o próximo ábaco. Tinha olhado discretamente o rapaz que tinha entrado na loja e a atraíra pela voz trêmula. Ela encontrou um meio de vê-lo, mas se deixou perceber quando soltou a ponta da cortina no momento em que se recolhia para os fundos da loja. Se encantou com a insegurança da voz dele, mas gostou também da postura levemente curvada, causada pela estatura elevada e a sutil humildade que lhe marcava a personalidade. Giti conhecia seu pai e sua capacidade de convencimento, especialmente com jovens respeitosos às tradições. Ela sabia que o rapaz compraria o que o pai quisesse e já se preparou para o trabalho. Mas sentia uma vontade especial nesse caso, queria criar uma conexão diferente com esse rapaz, ter algum tipo de segredo com ele. Ficou pensando em alguma forma de chegar até ele, de mostrar-se para ele, sem que precisasse aparecer na loja. Só tinha um jeito, a peça de madeira.

Ouviu a despedida dos dois e o pai a chamou. Ela veio obediente e ele pediu que ela começasse a confeccionar a peça do rapaz. Mal sabia que ela já tinha escolhido a melhor madeira. 

A preparação da matéria-prima é fundamental para o melhor resultado dos cortes e modelagens, mas Giti ainda queria mais. Imaginou que poderia colocar mensagens nas contas, esculpir elementos de caligrafia que se escondessem, mas que pudessem ser decifrados por alguém com sabedoria além da exatidão da matemática.

Envolvida em pensamentos dispersos na criação, se assustou quando Karim a chamou para irem para casa, pois o horário já estava avançado. Ela pediu mais uns minutos, anotou algumas ideias no seu caderno, organizou seu material e o cobriu com uma seda nacarada fina, bordada em dourado, que ela usava quando pensava em uma proteção especial. Olhou mais uma vez para a mesa de trabalho antes de sair em companhia do pai. 

Em casa, após o jantar, e o auxílio à mãe com as tarefas domésticas, foi para o quarto e pegou seu livro preferido com os poemas de Hafez. A cada linha lida, fechava os olhos e transformava a emoção em uma letra ou imagem. Adormeceu nesse estado de devaneio e quando ouviu os barulhos da casa, se deu conta que já tinha amanhecido, e ela deveria se preparar para ir novamente para a loja com seu pai.

#domeuleitodemorte #sherazadefeelings #tobecontinue #simonedepaula #16/10/2020 #capitulo1

 

música iraniana

Chá de lima da Persia - nomes iranianos e seus significados

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Retratos Selvagens

A carne sangrando, recém fatiada, no churrasco acalorado da varanda animada.

O grito histérico, na beira da cama, olhando aflita a barata voadora.

O olhar invejoso, disfarçado de esquiva, observando atentamente a presa odiosa.

O pé pesado, amassando a folha  seca, que sofrera o golpe do vento tempestuoso.

A força bruta, do impulso produtivo, que joga no mundo o barro bem batido.

O gozo intenso, rasgando o corpo, tomando posse da vida pela morte.


Simone de Paula - 09/10/20

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Aposentadoria

À propósito da Astrologia, me aposentei em 2017. 

Talvez eu não tenha te contado com todas as letras, como nessa frase, mas foi assim, me aposentei. 

Alguns ainda insistem, me lisonjeiam com elogios, me deixo seduzir e abro exceções. Faço um mapa aqui e outro lá. Mas já foi. Quando eu falo disso é apenas um recurso de linguagem, como se usasse um exemplo de filme ou livro, mera ilustração com signos que representam alguma outra coisa. Não que isso não me interesse, mas é apenas como uma arte. Ler antigos filósofos dizendo sobre os astros e o céu, isso me encanta e atrai, mas analisar elementos astrológicos, não.

Essa foi mais uma decisão conclusiva num ano final sete. Sabe-se lá porque eles representam esse efeito na minha vida, mas é assim. Dez anos antes, era a saída da produção. 1997 foi o turning point, seguir por outro caminho. E assim foi, rupturas, descobertas, chuteiras penduradas, bola pra frente. 

Não prevejo 2027, porque nem previ nenhum dos outros anos. Sigo jogando com a vida, ora jogos esportivos, ora jogos de raciocínio, porque nunca se sabe o que começa e onde isso vai terminar.

Simone de Paula - 02/10/2020




sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Vigor

Para o empoderamento, virilidade.

Para a sabedoria, curiosidade.

Para 'as coisas', riso solto.

Para o natal, Jack.

Para o céu, desdém.

Para mim, oi; para você, tchau.

 

Simone de Paula - 25/09/2020

Eugenia Loli


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Viagem insólita

Ali o mundo parecia estar invertido. Eu boiava, totalmente submersa, e não sentia nenhum incômodo em relação à respiração. Comecei vendo aquele ambiente como um céu azul, mas ao mesmo tempo era ar e água, céu e mar. Suave, aparentemente estático, envolvente. O azul foi se misturando com o verde, as cores frias iam aparecendo pelas bordas. E então o amarelo chegou e com ele o branco. Cores mescladas, eu deitada, flutuando sem nenhuma preocupação. Meus olhos permaneciam fechados, mas eu não dormia, apenas estava. Acima do meu corpo, bem rente a ele, uma superfície desenhada em linha branca. Um fio de prata que dividia as cores e a ausência de cor, o preto espacial. Um tecido enorme perfurado por pontinhos brancos por toda parte, estrelinhas brilhando naquele céu noturno. Despertei. Meu corpo se metamorfoseou numa espécie de espectro. Toda branca, como um vestido de voil longo. Os braços pareciam asas, as pernas pareciam rabo de peixe. Eu subia e descia naquele mar colorido. Era uma espécie de pássaro explorando aquele lugar inteiro. Rodopiava, mergulhava, torcia e voltava. Expandi meu horizonte e perfurei o breu espacial, desapareci e voltei. O desejo incessante de movimento, dança, voo, liberdade. Mais uma vez uma decisão se deu, mergulhei lá de cima no submundo da terra, fui ao mais fundo que pude, explorei outra escuridão, essa não espacial, mas gutural. Não havia superfície que pudesse me segurar, me prender, me arranhar. A velocidade me fazia deslizar, sem sentir nada, protegida dos machucados da realidade da matéria. Das profundezas subi, retornando ao estado passivo e pacífico do lugar em que estou agora, escrevendo essa viagem insólita.

Simone de Paula - 18/09/2020

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Plexo solar

Na nossa conversa, meio não é metade, é centro, e com isso, teorizamos.

Eu tentava demarcar a área que compunha esse centro, incluindo a periferia, espaço expandido do miolo afetado pela corrosão. Apontava, indicava, ampliava toda a superfície para lhe dizer que isso é uma grande composição espacial. E ele, que naturalmente tem escutado bem as minhas diligências móveis e imóveis, resumiu com uma boa expressão: plexo solar.

Rimos, claro... Eu sei há ironia nisso e ele certamente não perderia a chance de provocar esse efeito. Ou é concordância com os meus termos ou discordância delicada como um tapa de luva de pelica. Pouco importa, aceitamos essas diferenças e seguimos a partir do centro de energia. 

Segui, contando da relação rizomática desse meio em direção às extremidades, levando eletricidade, ativando as partes mais distantes e interligando outros membros ao tronco principal.

O corpo espacial, na constituição vinda da unidade à composição, não decepciona quando se trata de uma atividade motora eficiente. Porém, quando exige uma constituinte operativa de uma mecânica determinada, falha e promove desencontros na operação.

É por isso que as atividades ilícitas assumem o controle do processo, invadem as brechas e dominam os pontos mais destacados e sutis.

O desbloqueio exige força primeiro e destreza depois, maleabilizando o entorno e reintegrando os sistemas.

Tá aí uma concepção que não decepciona.

Simone de Paula - 11/09/2020



sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A sombra no mar

Te tomei por um albatroz. Aquele de asas longas e voo corajoso.

Naquele tempo, me sentia o mar, amplo e infinito abaixo de você. Fui o lugar de miragem, de perigo.

Notei porém, que no brilho do mar, era uma sombra que se projetava, iluminada pela luz do sol, refletida na superfície cristalina da água.

Albatroz sou eu mesma, que na travessia, bate as asas com força e desejo. 

Quando limitada ao chão da embarcação, desconjuntada, será que provoco escárnio, tal qual a ave marinha? Curioso pensar, que você se vê assim, como essa sombra provocadora de riso, pelo desarranjo do seu corpo. 

Ilumine o céu e se coloque no alto das nuvens. Se eleve para buscar água nas gotículas da chuva que espera por cair. Se lance como Ícaro aos céus e se arrisque à queda mortal, só pela satisfação de se ver pássaro um dia na vida.


Simone de Paula 01/09/2020

 


Deste texto lindo...

https://www.facebook.com/eltonluizleitedesouza.souza/posts/3261699630720849

Deste poema tocante...

https://wp.ufpel.edu.br/aulusmm/2019/02/06/o-albatroz-charles-baudelaire-ivan-junqueira/


sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A palavra por vir

Se Blanchot escreveu o livro por vir, esses dias descobri a palavra por vir em mim.

Não tem forma, não tem letra, não tem nem impulso. É uma coisa que trava, sufoca, faz sofrer.

A boca cheia, o peito oprimido, o estômago estufado, o intestino entupido, o ânus rasgado. 

De fio a pavio no corpo os restos daquilo que está lá, mas sem ter como falar.

Amélie Nothomb conta da metafísica dos tubos, começa aqui e termina ali, passando liso sem nem marcar. 

É um tubo, um oco, um buraco, ou é a massa amorfa que precisa se moldar para atravessar?

Falta dente, falta músculo, falta pressão, falta tesão. 

A frase volta: eu queria encher tua boca de....

Porra! 

Mas aí é que está - A boca cheia, o peito oprimido, o estômago estufado, o intestino entupido, o ânus rasgado.

A garganta! Aspirar, engolir, regurgitar, vomitar. Sair, parir, expelir, criar.

A palavra por vir.

Simone de Paula - 28/08/2020




sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Te ver partir

Te ver partir me fez sentir uma dor imensa no meu peito.

Não tenho mais lágrimas que ajudem a jorrar pelos meus olhos tamanho sofrimento.

Tudo é de uma dimensão enorme e eterna, mas você se foi e levou o meu coração, minha alma, minha paz.

Agora só me resta esperar o dia que o sol vai brilhar novamente no céu sombrio que por ora ocupa o meu peito.

Eros soberano, assuma o controle do tempo e alivie esse mal que me toma.... devolva meu respiro que hoje se fez suspiro, adoce o som que se tornou ruído.

Simone de Paula - 21/08/2020

 

 

 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Vôlei

O jogo já estava nos últimos minutos. Era continuar jogando independente do placar. Em campo não importa quem está ganhando ou perdendo, especialmente num jogo dinâmico como o vôlei, que em qualquer momento tudo pode mudar. Tudo é justo: o tamanho da quadra, o número de jogadores, a participação da torcida, até o uniforme. Não tem sobra.

Lá no fundo da quadra, ela se preparava para o saque. Uniforme vermelho em destaque, energia concentrada, a intenção era pontuar. Aqui, eu bem colada na rede, olhava entre ela, lá no fundo, e a outra, aí na minha frente. Não tinha muito espaço para desviar o olhar, era uma posição delicada de entrever as duas, ver por entre elas, como se cada olho, mirasse em cada uma, de uma única vez. 

Uma saca bem pertinho da rede pra desestabilizar. Eu recuo e consigo recepcionar. Faço como posso e mando a bola para o lado de lá. Não posso me distrair vendo a movimentação entre elas, que pulam e se deslocam querendo rebater da melhor forma e levantar a bola e pontuar. Respiração suspensa, piscada de olho quase automática e ouço um sonoro apito ali, do meu lado direito, despertando a minha atenção. Solto o ar cansada e olho para o juiz, quero saber o que aconteceu, afinal, a bola ainda estava no ar, não tinha caído nem aqui e nem lá, e muito menos deslizado pela borda da rede. Ele manda parar o jogo, chama a mim e a oponente que dividia rede comigo. Avisa a ela que houve toque na rede, invasão no meu campo, ponto pra mim. O jogo não acaba e é hora do meu time sacar. Da beira da quadra, a melhor sacadora do time se posiciona. O jogo corre, mais um ponto. Seguimos marcando e o placar beirando o set point e com ele o match point, mas, mesmo ganhando essa, o jogo estava ganho para o lado de lá que tinha aproveitado melhor as chances anteriores. 

Apito final, juiz da ganho de jogo para elas. Mas isso não acaba aí, pra quem gosta de jogo, sempre é tempo para um novo campeonato.

Simone de Paula - 14/08/2020


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Livro do travesseiro

Se eu tivesse que escrever um livro do travesseiro, ele não seria um diário sobre os acontecimentos do dia ou as belezas da natureza. Eu colocaria ali as desventuras noturnas dos meus sonhos.

Dormir é um prazer delicioso. Pode parecer redundante qualificar prazer, mas se faz necessário porque os prazeres podem ser muito diversos. Eu mesma tenho um prazer ou outro que é mais culpado do que deleitável. Possivelmente eles aparecem mais saborosos nos sonhos, disfarçados, e aí cabem bem nesse livro mágico que se escreve noite após noite depois de dormir.

São tantas histórias que falam disso.... 

O próprio 'livro do travesseiro', de Sei Shonagon, é um deleite e se colocado no mundo onírico, funciona plenamente. As mil e uma noites, totalmente uma transmissão onírica. E tem também Alice no país das maravilhas, mas, diferente das histórias do oriente, Lewis Carroll precisa revelar que se trata de um sonho. 

Curiosidades ocidentais: ou é sonho ou é vigília. Não pode ser os dois ao mesmo tempo? É uma habilidade, sem dúvida, escrever sem definir o que é real e o que é sonho.

Voltando ao meu livro macio, que acomoda minha cabeça e permite que a transmissão de imagens e ideias inusitadas, vindas de algum lugar impreciso....

As coisas se repetem muito naquele campo, ora declaradamente reprisadas, ora colocadas em outros termos. Mas também podem trazer coisas completamente diversas. É uma surpresa atrás da outra. Quando acordo, como um leitor que termina um capítulo, posso compreender que eu já tinha visto aquilo em algum lugar, ou mesmo captar que eu já havia sonhado com aquele mesmo tema. Mas, enquanto durmo, tudo é novo, sempre. 

Sonhar é ter a capacidade criativa de escrever muito bem, com signos inesperados, sequências inusitadas e cortes surpreendentes. Como minha cabeça produz meus sonhos? Descrevê-los, ou melhor, escrevê-los, já não tem o mesmo impacto, afinal, não saber nada do que vai acontecer é a magia real que embala uma boa narrativa.

No meu travesseiro hoje tinha uma imagem linda que me levou direto ao filme O livro de cabeceira, do Peter Greenaway, mestre dos magos. A cama, o desejo, os corpos, as tatuagens cobrindo aquele torso nu, a conversa em fragmentos, o tempo. 

Acordei, sem querer acordar. Registrei, para poder deixar passar.

Simone de Paula - 07/08/2020


 

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Ali

Eu poderia começar essa história falando de Ali Baba e os quarenta ladrões. Minha vontade é sempre atravessar a fronteira imaginária, ir para o lado de lá, e contar as mil e uma histórias que Sherazade já contou, mas eu ainda não contei. Mas, não é desse aí,  e sim daquele ali, que eu quero falar.
Onde é ali?
Me dei conta que eu coloco ali em tudo, e isso também não é um tempero, mas apenas um vício de escrita que aparece sem ser chamado. Nem me percebo escrevendo a palavra, mas noto ela fora do lugar toda vez que eu releio e reviso o texto.
"Mas que raio eu coloquei esse ali aqui?"
Resolvi então escrever um texto em homenagem ao meu ali, que nem sei onde fica e nem sei porque aparece aqui. Vai que ele some depois de ter uma atenção especial sobre ele.
Então, o que é ali? Onde é ali? Como é ali? Por que ali?
Responder poderia ser uma saída, mas acho que não, porque tentaria colocar o ali aqui e ele se fixaria ao invés de ficar livremente achando onde se enfiar entre as palavras que comunicam algo que não dizem de lugar nenhum, talvez de estados ou de estilos.
Ontem, a voz soprou que resposta pode ser lida como res posta - a coisa colocada. Pensando aqui, ali talvez seja a coisa posta, colocada, atuada dentro do texto. Meu ali é a coisa.
Melhorando a questão, ali vem para cá mostrar que daquilo que escrevo aqui, é de lá que falo.
Ali nem é bem lá, mas é um entre aqui e lá, porque o ali, no meu ouvido, é meio desviado da linha reta entre este ponto, aqui, e aquele ponto, lá. 
Ouçam: ali é desvio, transversalidade. 
E, dando um passeio aqui e ali, talvez o Ali Baba era um desviado mesmo e chegou onde devia, sem dever, lá na montanha mágica do oriente. Se orientou pelo seu gênio, que situado ali, mais além do aqui de onde ele saiu e do lá onde deveria ter chegado.
Ali, é meu gênio, minha magia, meu tesouro, que surge para ser apagado a cada aparição e continuar correndo solto pelo meu aqui e agora.  Eu já estou ali.

Simone de Paula - 31/07/2020




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sexta-feira, 24 de julho de 2020

Boneca de pano

Levanta a cabeça, queixinho petulante.
Afunda o peito, se encolhe e pede colo.
Solta as pernas, balança essas minhocas no ar.
Perde um olho, costura a boca, trança a lã do cabelo e tricota o vestidinho.
Pronto, tá pronta, agora só falta uma dona pra te carregar. 

Simone de Paula - 24/07/2020


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Êxtase e ênstase

Do todo contido em êxtase, pleno na forma de semente pronta pra se espalhar.
A água fria e o ar quente inchando o ventre, fazendo borbulhar.
Explode, prolifera fragmentos por todo cósmico.
Toma a vida, morre a promessa e realiza a missão.

Simone de Paula - 17/07/2020

Obs.: Os beats passaram por aqui e Gary Snyder soprou vida em mim

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Espírito maligno

A noite estava clara, tinha lua cheia no céu. A temperatura amena não estava de acordo com o inverno que já avançava pelo ano. Lúcia tinha deitado cedo, queria dormir bem porque os dias estavam muito atribulados e ela estava respondendo de forma descontrolada a isso tudo.Seguia a filosofia zen, pensamento positivo, good vibes. Ela mesma se desconhecia nesse estado afetado.
A casa comportava esse estilo zen. Escolheu o branco para dar um ar clean à decoração. Mas não quis que os móveis e objetos fossem muito retos, aparentemente duros, queria a fofura aconchegante de um edredom branco em tudo. Sofás confortáveis, tapetes macios, paredes bem lisinhas e armários embutidos sem puxadores, para ficar quase tudo leve, sem barreiras. Esse foi o pensamento desde que mudou para a vila do bairro em que nasceu.
Naquela noite, Lúcia não conseguia dormir, se mexia muito. as cobertas pareciam fazer peso sobre seu corpo. A cama estava dura e torta. Ela virava para um lado e outro, e nada. Já tinha levantado e aberto a janela, deixando a luz da rua entrar, mas ainda sentia tudo muito estranho no ambiente. Quando o sono vinha, um sonho fazia questão de acordá-la, parecia que pedia que ela ficasse alerta. 
Sonhou que era agressiva com amigos, porque eles não fizeram o que ela queria. Teve que conviver com a irritação deles no sonho. Acordou, virou de lado, dormiu de novo. Dessa vez sonhou com uma fachada de uma casa no alto da rua. Estava iluminada, uma espécie de galeria ou espaço cultural. Dentro, ela subia e subia, subia mais e mais, acompanhada pela anfitriã daquele lugar. Estranho, porque ela dizia para essa moça que já tinha morado ali. Acordou. Dormiu de novo e os pensamentos invadiam seu sono e ela mesma dizia para si: há um encosto por aqui, um espírito do mal, tem coisa ruim nesta casa. Ela acordou com os pensamentos, mas não se mexeu e nem abriu os olhos. Tinha medo. Queria que aquela impressão sumisse. Não resistiu e olhou tomada de coragem. Viu na quina da porta, na passagem do quarto para a sala, luzes piscando próximas ao teto. Como se tivesse achado um pernilongo que zumbisse no seu ouvido, disse para si: olha lá o espírito maligno. Eram luzes em RGB - vermelho, verde e azul, as cores na tecnologia de tv - que circulavam pelo ar, próximas àquela quina, manifestando o tal mal que existia ali. Ela levantou em busca de escapar daquilo, sair da casa, mas quando passou pelo batente sentiu a força do espírito empurrá-la para o sofá, segurá-la ali, deitada, encurralada. O pensamento veio forte, começou a rezar para tentar se livrar disso. Nesse instante, Lúcia acordou. A luz do sol entrava pela janela e refletia nos cristais transparentes que estavam pendurados na janela. A refração fazia com que a luz atravessando a pedra refletisse no espelho e se projetasse na parede branca. Ali o brilho era encantado, quase magia.

Simone de Paula - 10/07/2020

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A noite impossível

Esta noite foi impossível. A agitação tomou conta do mundo. Quando deitei, suspeitei que não conseguiria dormir tranquila. O sono me acompanhava, mas havia algo estranho no ar. E, nesse caso, o ar era mesmo o ar, porque o vento não parava de soprar. Não sei dizer se aquela ventania tinha começado pela manhã ou já nos acompanhava desde os dias anteriores, mas o fato era que o estranhamento vinha mesmo do incessante.
Relaxar o corpo e a mente, garantir o calor no ambiente, fechar os olhos e pronto, sono vem, ansiedade vai. Mas o barulho das janelas lembrava que havia algo lá fora, o vento, ventania.
"Abre os ouvidos, acorda!" Um mandato mental de tempos em tempos. "Vira para o lado, dorme!" Eu tentando seguir noite afora. Esses comandos me acompanharam por umas três ou quatro vezes entre o tarde da noite e a alta madrugada. 
Lá pelas três e tanto da manhã, a ventania acelerou. Mais janelas batendo e não só elas, a força do vento gritava nos céus: "não é hora de dormir, levante!" E foi isso que eu fiz, saí da cama direto para a janela da sala. Olhar o ar, ver o vento, impossível. Mas aquilo é massa, tem força, empurrava as árvores com energia. Entre o movimento delas, as árvores, o barulho dele, o vento, e minha visão, nada parecia coincidir. Elas movimentavam com um vento forte, eu ouvia o sopro da ventania, e na noite escura, fora isso, a imagem era de paz. 
Voltei para a cama, deitei, tentei adormecer de novo, mas dessa vez não deu. 
Saí da cama, andei pela casa, fiz café e resolvi a estrutura de um texto que eu estou escrevendo. Fui ler sobre o assunto, agora sabendo o que extrair da minha fonte. 
Parece incrível, mas o que o vento queria era a minha vigília, pois foi só eu sentar na minha poltrona que ele parou. Talvez isso, talvez o amanhecer que parecia se aproximar, mesmo que a claridade ainda não despontasse no céu. Mas uma coisa eu sei, depois das quatro e quinze da matina, o silêncio voltou a reinar no céu.

Simone de Paula - 01/07/2020 



sexta-feira, 26 de junho de 2020

Cristal

O brilho fascinante me fez jurar que era um diamante.
Olhei de perto e vi a opacidade no fundo daquela pedrinha. 
Tentei justificar a falsidade. Lustrei, poli, quase lixei, só o não fiz porque era demais, invadir aquela superfície daquele jeito. E lá, bem dentro de mim, eu sabia que poderia rachar a rocha se friccionasse demais os pontos opacos. Parece que não quis ferir, mas acredito que o que tive foi medo de perder.
Resisti, insisti, fiz perdurar. Desviei o olhar, a atenção, cheguei mesmo a acreditar que era um defeito da minha visão. Mas não, era mesmo um cristal no lugar de um brilhante. 
O cristal tem sua beleza, seu brilho e sua fragilidade. 
Um diamante, por sua vez, não quebra com facilidade, por mais delicado que pareça.
Coloquei numa caixinha a pedrinha e deixei escondida, se brilhante, não queria que me roubassem, se cristal, não queria que quebrasse. Mais uma vez a certeza, não queria perdê-lo.
Bem, mas o que existe não é fácil esquecer. O tempo passou e aquela peça me pediu insistentemente para ser vista como ela é, frágil, barata, mesmo que brilhante. Aceitei. Junto com ela, aceitei também que eu quero mesmo um diamante, não basta brilhar, tem que pesar, valer, durar de verdade.
Deixei o cristal exposto, aquela matéria mineral que carrega a energia concentrada nos seus átomos, e fui atrás do meu brilhante.

Simone de Paula - 26/06/2020

 




sexta-feira, 19 de junho de 2020

Shy

E na falta do tête-à-tête, face to face, vá de direct...

"Oi, e aí?
Sua live ontem foi muito legal. Gostei da escolha, falar mais que tocar.
Te escrevo porque foi estranho. O instagram avisou que você estava começando a 'transmissão ao vivo', e eu dei um click. Na real, eu esperava entrar e ter mais umas pessoas por lá, nem achei que eu tinha sido tão rápida no gatilho. Me vi ali, eu e você, tipo quase olho no olho, mesmo que ninguém veja ninguém. Aliás, eu vejo sua imagem e você vê meu nome e uma foto. Mas me deu a maior timidez, me envergonhei de estarmos ali só nós dois. Cara, que meninice que me abateu. E ainda, a resposta que eu escutava desse sentimento era que eu estava sendo vista por você. Dois estranhos, conhecidos, que de tão velhos, não usariam mais essa armadura. 'Buguei'! Cliquei tão rápido no X pra sair, como fiz para entrar. Sumi. Daí, fiquei mais envergonhada ainda, pensando, 'ele viu eu ali e eu deixar de estar ali. Chato isso, cair fora e deixar o cara sozinho'. Até meio mal-educado da minha parte. Era um misto de riso de mim mesma e ainda o eco do incômodo de ter estado ali, breves segundos de partilhamento, convivendo com você. Relaxei e fui dar um round pelas redes sociais, pensando na sua live que eu queria assistir, mas estava com medo de estarmos só eu e você no novo. Esperei uns 15 minutos, criei coragem, se é que fosse preciso tudo isso, e entrei de novo. Éramos poucos mesmo, fiquei, acompanhei, você tocou um pouquinho e foi o fim. Aliás, me arrependi, porque você já tinha tocado um pouco mais e eu não ouvi. Bem burra, com minha timidez infundada.
Ainda penso nisso hoje e vêm nos meus lábios um sorriso e na minha garganta o som de uma risada. Eu mesma, dividida, sendo a boba e a que não vê razão pra essa bobagem.
Bom, só pra te contar isso. Não dividi a sala com você ontem e hoje venho dividir toda essa intimidade dos meus sentimentos e atos inibidos, faz menos sentido ainda. Só um 'hahaha' explica.
É isso aí... Bjo!"

Simone de Paula - 16/06/2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Desejo decidido

Algumas experiências são mesmo maravilhosas. Acabei de viver uma nesses últimos quinze dias. Tudo se deu de forma tão ligeira, que nem eu mesma poderia prever que isso se revelaria em tão pouco tempo.
O tempo, esse tão descrito, tão poetizado, faz também seu trabalho quando ele é veloz.
Começou assim: num dia recebi um convite simpático e aceitei. O assunto parecia divertido, mas muitas vezes repetitivo. Efeito das redes sociais, que não se esgotam, não encerram.
O bom de certas relações é que elas não precisam ter o lugar principal na vida, podem ficar acontecendo sem que você tenha grande participação, apenas uma ponta aqui ou ali, um comentário hoje ou amanhã. Numa dessas pontas, resolvi participar um pouquinho mais ativa e expor meu pensamento, minha escrita. Foi bom.
Uma semana depois, repeteco, mais uma vez, uma ponta de destaque. Isso gera o convite dois. Aceitei.
Nem sempre um convite aceito significa o compromisso inteiro. A reunião do segundo convite mostrou a face que já era evidente, mas que dissolvida pelo espaço que eu dei à minha participação, ficou menos incômoda. Minhas intervenções foram poucas e precisas, porque é isso que era preciso.
Fui percebendo que ali não era o meu lugar, porque eu não estava no mesmo discurso. Não tinha as mesmas motivações, pois não compartilhava dos mesmos sentimentos. O meu assunto-mestre, aquele que eu sigo, também não estava de acordo, aliás, nem estava presente.
Foi muito bom perceber tudo isso rapidamente, sem esperar tanto para que se revelasse algo.
Recusei me manter ali, no agrupamento desalinhado ao meu desejo. Comuniquei e me despedi. Ouvi apelos e julgamentos sem nenhuma razão de ser. Isso tudo só confirmou o que já era sabido por mim. O melhor de tudo, ficou muito claro que não preciso de outros para me dizer sobre mim o que eu já sei. Sigo circulando, experimentando e decidindo o que eu desejo em cada momento.
Fazer concessões por acreditar ter ganhos futuros é a maior roubada da vida.

Simone de Paula - 11/06/2020

sexta-feira, 5 de junho de 2020

História rocambolesca

Rocambole é feito assim: massa de pão de ló, macia e feita em etapas na batedeira. Assado em forma grande para ficar fininho. Quando tira do forno, desenforma em cima de um pano limpo e úmido e já enrola a massa, com cuidado para não quebrar. Quando fria, abre, coloca o recheio e enrola de novo. A cobertura é opcional.
Acho que é assim, porque vi muitas vezes esse doce ser feito e nunca me arrisquei. Mas eu gosto muito. Doce de leite, creme branco ou goiabada, chocolate, não. Por cima, o melhor é mesmo só açúcar polvilhado.
Não fiz rocambole, ou bolo de rolo como chamam no nordeste brasileiro. Mas faço rocambolices com as minhas histórias. Começo elencando os elementos, como se separam os ingredientes. Depois explico as relações, uma espécie de preparo para o momento principal. Algumas vezes com mais cuidado, de forma mais lenta, em outras, velocidade alta para mudar de cara, expressar as metamorfoses da situação. No final, quando vejo, saiu uma história. 
Será que ela causa o mesmo efeito que o rocambole, provocando nosso imaginário pelo gosto que todo aquele descritivo causou? Porque no final, se eu não fizer o rocambole, só terei lido a receita dos outros. Assim como quem não vive a experiência, não tem história para contar. 

Simone de Paula - 05/06/2020


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Minha casa é o meu país

Minha casa é o meu país.
Talvez essa frase já tenha sido dita por aí, por alguém. Mas hoje ela saiu da minha boca de forma muito espontânea e ainda foi concluída por uma quase gargalhada.
Perguntada sobre como iam as coisas durante a pandemia, pensei brevemente e calculei, num segundo, que tudo se passa aqui, em casa. Tudo que faço é aqui dentro.
Já me dei conta que cada cômodo acomoda  duas ou três atividades diferentes, oferecendo cantos distintos para momentos específicos. Multipliquei espaços.
Meu escritório, que também já é sala de tv, agora mais tem atribuições: dou e assisto aulas, faço grupos de estudos e acompanho as lives relacionadas com esses temas. Além disso, é setting analítico, meu e do meu analista. E, por fim, ainda dá espaço para sala de meditação. Esse lugar rende. Tem espaço bom, iluminação, sol na medida certa.
O quarto, esse parece que se manteve como de costume, ocupando meu corpo para as atividades comumente exercidas lá. Não entrarei em detalhes, cada um sabe para o que um quarto serve. Banheiro idem.
A sala ficou mais aberta, coloquei os móveis nas paredes dos cantos. Ali, virou academia: yoga, pilates, combat. Meu marido anda vigorosamente pela casa toda durante meia hora, diz que faz suar.
Ele também ocupa a mesa de jantar, ali é o seu escritório. Quando faz aulas, permanece no mesmo lugar. Mas quando vai dar aula, reveza comigo o escritório. Tem funcionado. 
Na cozinha se come e prepara as refeições. Ela é bem ativa num sujar e limpar infinito.
A área de serviço permanece com roupas sendo lavadas e passadas e as plantas parecem abaladas pela falta da melhor amiga delas que segue em quarentena também. 
No quartinho dos fundos, um cavalete de pintura, um espelho para tirar sobrancelha e cortar cabelo, atividades básicas de manutenção da vida.
Amigos via skype, whatsapp, facebook e instagram. Tá tudo aqui.
E, como disse eu hoje cedo: minha casa é o meu país.

Simone de Paula - 29/05/2020

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Rastros e restos

Esses dias me deixaram reflexiva, filosófica. Minhas palavras parecem não querer contar, mas dialogar.
Vivemos um século marcado pelos rastros e restos. Se olhamos para o mundo ou para os campos de saber, há um sem fim de registros disso. Se há isso, se produz com isso. E que produção!
Mas a surpresa veio, o novo se impôs.
Distanciados dos corpos fragmentados, sem órgãos, ou seja lá quantos nomes se dê, encontramos acolhimento nas telas, reprodutoras e refletoras de um estranhamento curioso. Elas recortam um pedaço do todo, mas não dão muito espaço para o que poderia escapar desse todo, para o que sai da tela, o que cai do olho.
Nos espelhamos numa superfície lisa, sem rasuras, ranhuras ou rugas para nos segurar. Deslizamos sem chance de parar. Isso nem parece muito novo, mas é.
Há uns dias me pergunto: qual a marca do novo século, do século X X I?

Simone de Paula - 22/05/2020

sábado, 16 de maio de 2020

Tarefinhas

Ontem passou... não escrevi o Conto de sexta.
Mergulhada nas inúmeras tarefas que estabeleci como forma de não ficar tomada de trabalho, não lembrei do tempo da escrita. 
Na cozinha, os fermentados competindo pelo espaço quentinho do forno. Nos ouvidos, os fones me levavam às meditações que tenho feito, finalmente retomando a disciplina que em outros tempos me serviram de corda-guia. Nas redes sociais, informações para o grupo de meditação, imagens novas de cada dia nos perfis, desenho de sereia para o projeto mermay, os contatos de trabalho e amigos, como de costume, muito movimento. Além disso, uma feira, muitos atendimentos, os suplementos de algas e a água, muita água. Pra completar, ainda teve yoga, pão assado, filme divertido. Com tudo isso, o Conto passou. 
Hoje aqui, sentada, imersa na atenção plena, lembrei, ele pediu para ser escrito e voilá! 
Conto porque conta, de sábado.

Simone de Paula - 16/05/2020

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Convite

Os dias passam rápido, todos quase iguais. Não é o caso de rotina ou disciplina, mas a permanência nas ações comandando a passagem do tempo. Não que isso seja diferente de antes, mas agora é visto assim. 
Porém há sempre aquela insistência que te surpreende, aquele convite que você queria aceitar, mas não sabia muito bem como ia administrar. Recusa, na esperança de que em outra ocasião algo semelhante aconteça. Mas, o convite retorna e o anfitrião te pega pelos ombros e diz, aceite, não precisa se comprometer, só aceite. E você faz. E na hora marcada, nada flui, informações desencontradas, atrasos e quando você estava quase desistindo, novamente as coisas voltam aos trilhos. E aquele convite recebido, desejado, não decepciona, pois depois que o encontro se firma, o evento se realiza, você percebe que era ali mesmo que você deveria estar.

Simone de Paula - 08/05/2020

sexta-feira, 1 de maio de 2020

On air

Eu moro bem pertinho de um cemitério. Da janela dos fundos posso vê-lo bem. Não é um cemitério de jardim, mas de túmulos. Algumas árvores, e um muro branco, o rodeiam, tentando separá-lo da vida urbana que acontece como se ele nem estivesse ali.
Desde que mudei para cá penso, como construíram essas casas tão perto de um cemitério? Me pergunto sem saber a resposta, mas já ouvi muito sobre esse tema e sei que cemitérios são construídos distante de onde as pessoas moram. Ele fica em um quarteirão bem íngreme, a região toda é cheia de ruas inclinadas. Mais um bairro montanhoso da cidade. O que nos separa é justamente a avenida que esconde hoje um córrego. Sim, no passado o cemitério ficava do lado de lá e as casas do lado de cá. Mas hoje, do lado dele, tem escola, casa, tudo que pode conter um bairro residencial.
É um cemitério misto, israelita e cristão. Cemitério misto instalado em uma montanha, praticamente o monte das oliveiras. Uma ironia porque os assuntos da morte sempre precisam de algum tipo de graça para descerem melhor. 
Ontem li algo que minha mãe quis me dizer, ela que sempre fez questão de deixar claro que a morte existe e não se deve lidar como se isso não fosse acontecer um dia. A frase era assim: a morte é o maior mistério da vida. É, faz sentido.
Quando acordo, vou olhar pela janela dos fundos, lá onde o sol nasce. Apesar dos prédios no meu horizonte, que tentam apagar a subida de resplendor do sol, ele vence sempre e encontra umas brechas para raiar luminoso nas cores mais variadas. E vejo o cemitério lá, no monte vizinho. Enquanto espero o café coar, observo o ritmo da avenida, vejo o momento em que o céu fica claro o bastante para as luzes dos postes apagarem, às sextas-feiras vejo as barracas da feira sendo montadas, e em muitas manhãs, especialmente quando o sol ainda não apareceu no horizonte, sinto o cheiro de velas forte, vindos dos velórios. Como tem encruzilhadas por estas esquinas, despachos (macumbas), também são figurinhas frequentes pelas imediações.
Gosto do silêncio, da penumbra, do vento nas copas das árvores, do vazio de corpos andando pelas ruas e também desse cheiro marcante da parafina derretida. É o terreno na morte, daquela que faz parte da vida, que transita entre nós e que evitamos ao máximo. 

Simone de Paula - 01/05/2020


Cemitério de Mirogoj, Zagreb, Croácia



sexta-feira, 24 de abril de 2020

Essencial

Essa quarentena está me permitindo ter muitas experiências.
Sou de família de cozinheiras, curandeiras, benzedeiras, quituteiras. Desde pequena, além de mãe, vó e tias cozinharem muito bem, tinha tia que benzia com água e azeite e tinha tia que esmagava ervas para curar estômago, garganta e o que mais aparecesse. Vivi tudo isso e guardei como um bem precioso. 
Comida todo mundo podia fazer, ainda que uns mais talentosos do que outros. Mas benzer, isso era só pra quem tinha o dom. Nunca soube mais quem tem dom, acho que a prima que nunca assumiu essa herança, mas ela não quis. Se ela estiver me lendo agora, saberá que é dela que eu estou falando.
Tudo isso já tava lá no céu, marcado nas estrelas e nos planetas quando eu nasci. E, junto com isso, vinha na bula: "vive na infância, vive quando for bem mais velha...". E cá estou eu, reproduzindo coisas que não tinha feito ainda, menos por falta de saber e mais por falta de vontade mesmo. Não quis executar e nem competir com quem executa. 
Mas chegaram os dias de isolamento, confinamento. Que maravilha! Estar em casa, ora como um meio ambiente pronto para aproveitar tempo e espaço de acordo com o ritmo do mundo, agora mais lento, ora como silêncio, aconchego, bem-estar. Mais uma vez digo, estava nas estrelas, não ia negar.
Papo daqui, papo de lá, instigada pela amiga de longa data, resolvi ir um pouco mais fundo nos afazeres domésticos. Como muitos, na corrida do bendito glúten, renegado em tempos de barriga sarada, resolvi fazer pão. Como é algo que não se improvisa, porque os elementos básicos devem ser respeitados para que a alquimia se dê, comprei panela de ferro, farinha branca, fermento e quando tudo estava nas minhas mãos, fui lá e realizei o feito. 
O processo lento, deliciosamente simples, mas exigindo um prévio entendimento de texturas e o que fazer para atingi-las. Deu certo! Misturou, cresceu, afofou, assou e ficou direitinho, como devia ser: crocante por fora e macio por dentro. De resto, tinha a cara que tinha. A fumacinha sobiu, a manteiga derreteu e o café acompanhou.
Depois do um, veio o dois, com uns incrementos, porque, como já disse, tava lá nas estrelas, não seria diferente. Tantas possibilidades de variação, repetir pra quê?
Mas tem aquele desejo, aquilo que você quer e não pode ter. A não ser, se você conseguir fazer. Sim, o pão de laranja, fermentação lenta, com chocolate branco e mel, assinado por deus, ou pelo meu anjo da guarda lindo cheio de luz. 
Começam os problemas de inspirada solução. Como colocar laranja ali? Claro, essência. Mas onde achar? Tem a artificial no mercado, ou aquela bebidinha gostosa, cointreau. Devia ter trazido da última viagem. Artificial, nem pensar. Para fazer hoje mesmo, preparo a manteiga com laranja, mas corro o risco de não dar certo. Então, vamos aprofundar um pouco mais na cozinha alquímica : preparar em casa.
Vem a amiga que não deixa a gente na frustração e manda o link: como fazer essências maravilhosas em casa. Nossa, agora um mundo de possibilidades se abre. Faço um corpo mole, mas é muito fácil, nem dá pra recusar pelo trabalho. Lá vou eu em mais uma aventura, dessa vez, aventura mesmo. Vamos ver no que vai dar essa. Ter minhas essências em casa, bendita liberdade.
Já avisei, quando eu estiver fazendo queijo em casa, me internem na roça.

Simone de Paula - 24/04/2020





sexta-feira, 17 de abril de 2020

Cinzas

O que é melhor como conto do que nossos sonhos?
Tive um sonho essa semana e esse nem foi fragmento, foi uma narrativa completa. 
Roteiro, personagens (com seus atores perfeitos para o papel), direção, direção de arte e fotografia, e é claro, produção, para tudo funcionar direitinho. Sempre tem produção, mesmo que ninguém se lembre disso. Teve fala e silêncio, preto & branco e colorido,  travelling, edição e até trilha sonora, que na verdade era composta das vozes dos personagens e do forte barulho do vento, mas som ambiente não tinha. 
Fiz algo incomum, levantei para anotar. Depois, deitei novamente e pensei em interpretar. Deslizei por entre filmes e ideias e perdi o gosto pelo exercício, porque era uma tentativa de acabar com a poética do sonho. Ele era só pra ser contado, assim como sonhado, sem necessidade nenhuma de ir além disso, muito menos decifrar os tais pensamentos inconscientes.
Foi mais ou menos assim:
Uma pedra deslizava pelo mar. Eu estava deitada sobre meu quadril, apoiando o rosto na mão. Ele estava sentado atrás de mim, apoiado sobre os cotovelos. Pedra cinza, céu nublado,  mar grafite. Nada tinha cor, mas tinha a beleza da monocromia entre o branco e o preto. Quanto mais baixo, mais obscuro, quanto mais elevado, mais suave. O ar claro, a água escura. Entre eles, a pedra cinzenta, mesclando o lá e o cá. 
Enquanto conversávamos, a pedra deslizava pelo mar, seguia o fluxo. Devia existir alguma corrente marítima além da brisa. O dia pedia uma garoa, mas não chovia. Navegavam. 
Eu falava, dizia coisas que nem sei dizer o que era. Um sem fim de pensamentos projetados pela voz aguda e melodiosa. Ele ouvia, atento, mas apreciando aquele cenário natural. Quando desejou, me perguntou algo, interrompendo o fluxo de pensamentos tagarela, que é tão comum em mim. Não entendi: o vento soprava forte, tinha uma distância entre nós e o tom baixo e grave da voz dele, tudo me impedia de saber exatamente o que ele perguntou. Ele repetiu, eu não ouvi, desistimos. Isso me levou a olhar melhor a tal paisagem, os olhos calaram os pensamentos e o silêncio se instalou. 
Um tempo se deu. Muito? Pouco? Não se sabe. Resolvi olhar para o lado, vê-lo. Mas ele já não estava mais lá. Nem ele, nem a parte da pedra onde ele estava sentado. Pensei que ele me convidou para estar ali, ele devia saber para onde seguíamos. Mesmo não estando mais presente, a pedra seguia e eu não senti nenhuma espécie de ansiedade. Aproveitei e permaneci admirando aquilo tudo, sentindo a brisa fria e a impressão imparcial da água. De repente a pedra colidiu com outra pedra. Resolvi parar por ali, descer da pedra e esperar pela chegada dele. Era uma pedra firme, fixa, ligada a outras pedras. Dali vi outra pedra grande e poucas pessoas sentadas, esperando. Eu em pé, na pedra firme, segurando a pedra solta, em que eu naveguei. Olhei para o mar e vi uma pedra grande, essa também deslizava. 
Ri. Tudo era muito curioso, as pedras eram embarcações e as pessoas andavam pela água, subiam e desciam e não parecia que o mar fosse um impedimento para embarcarem. Nessa hora percebi que ele estava lá, ao lado das pessoas que esperam, sentado, olhando apreensivo. À espera também, mas de mim. Soltei a pedra, que agora tinha uma gramínea verde intenso em seu topo. Fui até ele. Ele me olhou e seu rosto refletiu alívio, mas não disse nada.Pensei: ele é assim. Saímos juntos pela pedra firme.
Depois de contar esse sonho, ele me perguntou afirmativamente, "a jangada de pedra, do Saramago"?
Levantei hoje cedo e peguei o livro, deve ter algo a mais ali. E, com certeza vai manter a magia da poesia das imagens do sonho, sem necessidade nenhuma de interpretação.

Simone de Paula - 17/04/2020







sexta-feira, 10 de abril de 2020

Aquilo, ainda

Eu quero mesmo é tirar essa palavra do dicionário. Essa que você usou de forma conclusiva.
Ela foi usada de forma técnica, sem sabor, perfume, sentido. Caiu como uma luva da sua boca. Mas não tinha volúpia o suficiente para deslizar pelo meu ouvido. Não provocou deleite, nem arrepio. 
Você viu, eu não a estranhei. Você mesmo percebeu. Usei-a mais para reforçar o espelho mágico da multiplicação do que refletir a verdade do meu pensamento. 
Te digo, te juro, vou retirar o que disse, falar pra valer, que não é bem isso que eu queria ouvir.
Prometo dizer, de boca cheia, aquilo que era mesmo para ser dito.

Simone de Paula - 10/04/2020

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Carona

Ele pegou corona, carona para a vida que tanto queria, aquela depois da morte.
Pegou covid e com isso o convite para mergulhar no sufoco que um corpo pode sentir.
Teve febre, suou e gemeu, delirou e pode ver revelado, só para si, as mais loucas fantasias.
Tossiu e cuspiu tudo que estava entalado.
Depois que passou por tudo isso sozinho, isolado, retornou de lugar nenhum e tinha todo resto da vida à sua disposição.

Simone de Paula - 03/04/2020

sexta-feira, 27 de março de 2020

Pandemia

Os dias seguem, mas aqui dentro de mim é só silêncio. 
Ainda não processei o que parece estar acontecendo sem ter como significar o amanhã. 
Voltei de uma viagem de peregrinação, Terra Santa. É um mistério esse relógio do mundo.
Sempre se sabe depois, nunca antes, ainda que a gente tenha o dom da previsão e as palavras da profecia.

Simone de Paula - 27/03/2020

sexta-feira, 20 de março de 2020

Nesse tempo

Os últimos dias insistem em me fazer lembrar. E não é por acaso. O clima de ameaça mundial provoca não a vontade de me isolar, mas o apelo a me juntar aos meus. 
Já imaginei que seria ótimo estar na casa em que cresci, com minha mãe e irmãos. Lá também estariam amigos, primos e tios, aqueles que participaram desses momentos de reunião no passado e seguem vivos. Acrescentaria meu amor, até porque ele iria adorar fazer parte disso. Mas ele está aqui,  do meu lado, agora.
Infelizmente não conseguimos nos reunir. Cada um está na sua casa, fazendo algumas atividades possíveis, e tentando manter contado, virtualizado, pois as exigências do presente nos fizeram ficar distantes.
Lá fora parece que o mundo vai desabar. E, acreditem, não vai desabar, já está desabando faz tempo, mas agora a gente ficou na beira do abismo. Aqui dentro parece festa. Cozinhar, rir, ouvir música, brindar o futuro, esse que finalmente se desenha como futuro, porque não sabemos como será. Mas também tem silêncio, sono e muita brisa fresca.
Curiosamente, os compromissos de trabalho permaneceram. Dou sorte de poder continuar assim. Mas, a adaptação me fez rever aulas, textos, repensar como transmitir. O tema da memória se impôs aqui também. Arquivos que uso há anos, me forçam a ser revisados. Os links, que outrora serviram de indicativos da pesquisa, se tornaram obsoletos. Ou melhor, não se encontram mais na página em que foram pesquisados, em que estavam. Parece incrível, mas a grande biblioteca virtual desmancha as informações, dissolve o que foram as pegadas do nosso percurso. 
Temos falado muito de memória e registro, o que não pode ser esquecido. Com Freud, fazemos isso há muito tempo, porque acreditamos que tudo está gravado em algum lugar. Mas, no campo virtual, nem tudo fica gravado, perdemos aquilo que não sabemos mais o que era e substituímos por algo que imaginamos se igualar. Sem a menor pista do que foi criado anteriormente.
Me fica a pergunta, que arqueologia será possível no grande mundo da internet? Isso se alguém pagar por isso.

Simone de Paula - 20/03/2020

A persistência da memória – Salvador Dali

sexta-feira, 13 de março de 2020

Dogs

Carlão acordou cedo e viu o sol raiando pela janela da área de serviço. Sentiu seu cão companheiro andando atrás dele, pedindo atenção. Decidiu que ia ao parque logo cedo para o passeio diário. Saiu tranquilo, orgulhoso, segurando firme a coleira do bicho. Tob, o cão, liderava as passadas, todo animado com o rabo abanando. 
Mal sabia Carlão que o dia radiante, marcado pelo estado de plenitude que a cena ilustrava, estava prestes a ir por água abaixo. 
Essa mesma ideia, de sair com o cão cedinho para ir ao parque, também tomou Gerson, Mário, João e Pedro. 
Ora, como não se dar a mostras tão agradáveis como essa? Especialmente por notar olhares invejosos naqueles homens que não podem ter tão imponente objeto, um cão elegante. E ainda, como brinde, ganhar olhares carinhosos, daquelas que se sentem atraídas pelo bichinho.
Entre árvores, lago, pássaros e muitos transeuntes, os cinco homens com seus cães de raças variadas andavam imponentes pela pista de corrida quando os cães deram de cara um com o outro. Coleiras se enroscaram, os bichos latiram e rosnaram, os homens ficaram agitados, apavorados e sem saber se atacavam ou se defendiam. Estava montada a confusão.
Meio a contragosto, todos se distanciaram, derem aqueles sorrisos amarelos um para o outro, fizeram comentários espirituosos para quebrar o gelo, enfim, ficou declarada a falta de graça que a cena teve.
Cada um puxou forte a guia do seu animal, que colocou o rabo entre as pernas depois da bronca do dono. 
O sol continuou radiante e o dia tranquilo, mas cada um seguiu rapidinho pra casa, querendo esconder aquele abalo sísmico.

Simone de Paula - 13/03/2020

quinta-feira, 12 de março de 2020

Escrita

A música e a lembrança emprestam à personagem a raiva do dia que queria ter gritado e contive. Como tantas vezes.

sexta-feira, 6 de março de 2020

...

Justamente hoje, no dia de escrever, meu dia não quer dizer.
O estado é de silêncio e observação. Não tem dúvida nem questão.
Dia de economia, em que menos é mais.
Suspendo as obrigações e estendo o tempo das ações.
Faço tudo aquilo que é dispensável e abro mão do que é utilitário.
Estou do avesso. Trama igual, mas diferente, como dizem por aí.
Cada frase leva mais tempo para ser pensada e escrita. Uma hora para de vez.
É agora.

Simone de Paula - 06/03/2020

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Oriente-se

Me perdi no tempo, nos dias e horas. O caminho segue firme, longo, diverso, marcado e remarcado tantas vezes quanto nossa imaginação pode inventar.
Contar Mil e Uma Noites, ou 33 Anos e a vida eterna além dos dois mil anos. Tudo vale, é só um modo de não deixar morrer. Impossível esquecer. 
Ábaco ou grão, tudo que existe pode ser contado, e o que não se vê também.
Pedro, pedra, piere - pier: rios e mares, montes e vales.
Se veio da outra vida, das histórias de antes de dormir, do dia de chuva ou ainda dos vizinhos de uma cidade de imigrantes, eu não sei, mas veio e contaminou pra sempre, sem cura prevista ou desejada.

Simone de Paula - boa católica, mas não religiosa - 28/2/2020

Obs.: choveu no deserto, mas pirâmides do Egito. Depois, muita água vindo das montanhas do Sinai aí mar vermelho e mar morto. E ainda um Shabat em Jerusalém. É muito auspicioso para uma única viagem. Amém.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Hoje é sexta

Hoje é sexta. 
Há alguns anos escrevo algo todas as sextas. Tem vezes que eu quero contar só pra deixar registrado. Outras para expressar emoções e situações. E tem vezes ainda, que uma mera inspiração aparece e me surpreende e o tema se dá.
Hoje é sexta e eu estou aqui, assim, tentando achar o tema. E ele não vem, mas também eu nem me esforço para que venha.
Nos próximos dias vou ver tantas histórias que eu poderei contar pelo próximo ano inteiro. Quem sabe.
Fico pensando, não quero me esgotar hoje. 
Hoje é sexta e um mero papinho furado foi registrado. 

Simone de Paula - 21/2/2020

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Caranguejo peixe é?

Um compromisso se firmou. Nem sei bem como ficou tão firme, mas fixou.
Pensamentos, sentimentos, palavras e ações visando realizar o compromisso, afinal, era para isso mesmo que ele serviria, para um objetivo comum.
Mas o que se deu não foi bem assim, talvez o compromisso era simplesmente pelo compromisso, pela impressão de união e ilusão de garantia.
Não tardou e eu já entendi que objetivos, aqueles definidos, não existiam. Mas, atachados ficamos.
Roda, roda, roda... giros e mais giros tentando soltar as amarras.
Pé, pé, pé... anda daqui, chuta dali, pula pra cá e pra lá e nada, permanecemos no mesmo lugar.
Roda, roda, roda... sabendo que talvez seja só isso, se distraindo com o vendo e a vertigem que os giros podem dar, aproveitando o fato de estar lá.
Caranguejo, peixe é.... Caranguejo, peixe é? Não... caranguejo se esconde, peixe escorrega, os dois escapam, mas cada um de um jeito diferente. 
Fusão dos dois e daí sim, num solavanco, o escorregão rumo à liberdade.

Simone de Paula - 14/02/2020