quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A madrugada

Acordou cansada. Tropeçou, viu formiga no pão do chão.
Era noite ainda, nem tinha luz nenhuma. Abriu a janela por um vento gelado. Estava quente.
Camisa amassada, pasta de dente escorrendo, não acha o par do sapato, vai sem lavar a cabeça.
Geladeira não tem pó de café, onde está? Abre o armário, só uma lentilha com outra trilha de traça.
Não vai dar tempo, não vai. Mas... um café, por favor.
Lembra da gaveta que deu um nome. Nome: "Surpresas Agradáveis".
Em Surpresas Agradáveis tinha fósforo, vela, pimenta do reino para ser moída, flocão pro cuzcuz e café. Sim. Inteiro. Fechado. Total prazer.
Prepara a cafeteira, cabelo, penteia, tem um pelinho no queixo, tira, pinça.
Aroma pela cozinha, água está fervendo, a cabeça também, tropeça de novo, formiga se espalhou. Tem uma subindo pelo dedão. Barulhinho bom. A música.
Coloca a sandália dourada, a unha do pé pintada, ainda dá pra usar. Troca a roupa, tá pronta.
Pega uma xícara, vai logo no gole da grande, a boca é ávida e queima. Dá pra sentar? Só um pouquinho, pra tomar tudo.
Gira a chave da porta, o telefone toca.

Nos ouvidos:
- Cancelamos. Muita chuva. Isso. Não sei. Remarcamos. Volte a dormir.

Sonho.




sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Não morra!


Morra de amor, mas não morra de dor.... por favor!
Te vejo assim, implorando a morte todos os dias.
Não entendo como isso pode ser tão forte e nenhum lampejo de luz é capaz de te abrir os olhos.
Sinto daqui você soterrado nas cinzas da sua própria história. Não há o que eu, ou qualquer outro, diga. Parece impossível você reescrevê-la. Não digo usar uma borracha ou um corretivo que tente apagá-la, como acredito ser o que você espera. Isso ainda deixaria os traços mudos e marcados nos vincos do seu corpo. Penso em passar um risco em cada palavra, cada ato, cada gesto que te dá vergonha, asco, culpa ou decepção. Todos passamos por isso, rachamos por isso. Você é mais sensível? Sim, talvez? Não sei. Eu sou e risco diariamente o que era e já não é mais.
Tenho esse vício de me apegar aos que eu reconheço como meus aparentados. Unidos pela história torta, desregrada, dolorida. Grito para eles sobre refazer os garranchos, rasurar as caligrafias. Em vão. O absurdo dessa cena é que ouço o eco, em mim, da frase que eu mesma poderia ter dito, ou disse: “o que eu digo não importa”. Ouvir isso foi tão fundamental porque eu mesma ainda me comporto como você. Valido que minhas palavras não importem para você. E você insiste em me atender e não ouvir o que repito sem parar.
O tarot me disse hoje: ‘vai, siga, rabisque completamente esse chão que está desenhado na sua frente’.
Num espaço lúdico da minha mente, vejo meu jogo de amarelinha, do céu ao inferno há apenas dez casas. Daqui para lá e de lá para cá, sem parar, senão a brincadeira acaba. No outro espaço fantástico, os tijolos amarelos, tocados pelos sapatinhos vermelhos, colorem e floreiam a velocidade dos pensamentos, as batidas do coração e a força da coragem. E ainda, tem mais. A sombra silenciosa traz o frisson da floresta escura por onde a feiticeira colhe os ingredientes da próxima poção. Eu ficaria aqui por um longo tempo imaginando caminhos, estradas, percursos possíveis para atender a esse destino. Rabiscar, rasurar, remarcar.
Me chamei de passante. Se fui bem ouvida na ocasião, isso importou. Só saberei mais adiante. Mas, se ainda o que eu digo não importa, só poderei passar, insistir em marcar uma nova posição em outro lugar.

Simone de Paula – 25/01/2019

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Ócio, do verbo ociar


Americano transforma tudo em verbo. Dê a eles um substantivo e veja que verbo bem empregado, mesmo que sonoramente estranho, eles conseguem produzir. Estranho é para nós que não exercemos esse mesmo trabalho sobre a língua. Provavelmente para eles, que entendem esse fazer com a língua materna, já fica bem entendido o sentido de verbalizar os substantivos, transformar nomes em ações.  Esses danadinhos... parece que eles que inventaram, com seu jeito de falar, o sem fim de fazer, fazer, fazer em que vivemos hoje.
Que momento mais doido do mundo, a gente não pode parar de produzir nem um minuto. Retornamos ao ponto em que vamos desde o plantio até a venda da manufatura, tudo pelas mesmas mãos. Por mais sagrado que isso seja, num mundo em que temos excessos de consumo, a exaustão se instala. Não adianta tirar a religião de cena se o modo de vida é religioso.  Aliás, a estrutura da cultura e da religião funcionam do mesmo modo, por isso existem desde sempre. O Agamben, um dos meus crushes das letras, fala de um jeito gostoso das sacralizações.  
As mulheres estão abarrotadas, cansadas, doentes, o tempo todo. Estou generalizando, sim. Mas por quê não generalizar? Especificamos demais e isso cansa. Sintetize e generalize, porque não importa mesmo tanto assim. Voltando a elas, olham umas para as outras e dizem, “vamos lá! Não para, miga!” Jamais dizem, “para mesmo, sossega, dorme, descansa, faz nada, ocie bastante”.
O verbo ociar deveria ser conjugado com mais frequência. Borá lá fazer nada sozinhas, em casa, sem gastar nenhuma caloria. Dar um tempo para as calorias. É isso!!!! Porque elas estão aceleradas e desgastadas. Nem a caloria tem a mesma potência que tinha nos anos 80. O low carb veio com tudo tirar o protagonismo daquela figura incontável das nossas vidas. Decadente, a caloria não tem mais função, mesmo ativada 24 horas por dia. Tudo que parece novo é só substituto do que não funcionou plenamente no passado. Nem o pobre do ócio tem mais espaço, e justo ele que teve status de promover criatividade, despertar gênios por aí.
Este texto serve para quê mesmo? Para nada. É isso, um fazer para nada, sem finalidade objetiva, apenas um fazer isso aqui com aquilo lá.

Simone de Paula – 17/01/2019


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Stress

Todos os dias eram assim, chegava ao trabalho e encontrava alguns documentos largados na sua mesa. Respirava fundo, lembrando que na noite anterior tinha deixado a mesa limpa, sem nenhuma pendência. Mas aquela era a sua profissão, tinha um certo orgulho de dar conta de tudo e todos. Nem percebia o absurdo da situação, do caos. 
Chegou, largou a bolsa, pegou um café. Sentou, colocou os óculos e começou a examinar o primeiro documento, uma planilha de custos. O telefone tocou. Ela atendeu ainda com a planilha na mão, olhando números e ouvindo o que vinha do lado de lá da linha. Era a colega de trabalho perguntando se ela já tinha uma resposta para o problema do material avariado que deveria ser pago ainda naquele dia. Ela lembrava desse assunto, mas não tinha resposta. A colega avisa que mandou um email com as ameaças do proprietário. Mari, que já tinha deixado o computador ligando, foi verificar as mensagens. Em menos de dez minutos, ela tinha uma planilha na mão, um telefone na outra, o café já frio na sua frente e, numa ação automática, apoiou o telefone entre ombro e orelha, liberando sua mão para abrir o email e ver as tais ameaças. Realmente, o cara estava bravo, mas negociariam esse problema. Ela só precisava de mais duas horas. Disse isso para a colega e desligou. Parou, fechou os olhos e soltou a cabeça para trás. Voltou para tomar um gole de café e olhou na sua frente. Viu as flores coloridas, que o chefe fazia questão que estivessem espalhadas para embelezar a empresa, e o porta-retrato com a foto de presente da sua equipe, em que ela estava como agora: mesa cheia, papéis na mão, telefone no ombro e olhar na tela. Sentiu que o café desceu mal, como se tivesse escorrido torto pela garganta. Ainda estava sozinha na sala. Num golpe, tombou para o lado sem saber o que acontecia. Assustada, levantou rapidamente e sentou como se não tivesse acontecido nada. Tentou sair da cadeira, mas tudo rodava. O estômago estava embrulhado, ela enjoada. Os olhos não podiam mirar em nenhuma letra que parecia que ela ia tombar novamente. Não sabia o que estava acontecendo. Ou melhor, sabia, mas não tinha coragem de largar tudo ali. Estava em situação de stress há tantos anos que não sabia como viver sem aquele turbilhão. Tentava amenizar os efeitos com exercícios, boa alimentação, chás e homeopatia, mas a conduta mesmo, ela não conseguia mudar. Viciada em controle, sabia de tudo e resolvia qualquer coisa. Fissurada em atenção, estava rodeada de pessoas e demandas. Quando não tinha nada para fazer, lembrava de alguma pendência ou requentava algum assunto que já tinha ficado no passado. Escrava do tempo, preenchia todos os minutos com algum tipo de informação ou tarefa. Acumuladora de dinheiro, recebia um bom salário que não tinha nenhum destino, porque ela nem sabia o que a satisfazia e nem conseguia se orientar para obter o que desejava. 
Mari continuava ali, sentada, muda, esperando aquele acesso passar. Não foi o email ameaçador, nem o telefonema aflitivo, nem a planilha estourada nos custos, foi o café, pensou ela. Café mais stress, uma bomba. Ligou para a assistente e para o chefe. Disse que precisaria ir para casa naquele momento. Respeitou pela primeira vez seu limite, ou melhor, o corpo faliu para lhe dar o último limite. Pediu que não ligassem ou mandassem mensagens para ela, pelo menos naquele dia. Ajudada pelo segurança da empresa, entrou num táxi e foi pra casa. Lá, deitou e deixou o mundo rodar. Sabia que se ouvisse algum sinal do celular, não se controlaria e atenderia. A abstinência não começa no dia em que se decide parar com a droga, mas depois. No primeiro dia é fácil, o medo parece um grande motivador. Dormiu longamente, teve sonhos complexos, assustadores, um sono agitado.
No fim do dia parecia melhor. Ligou para o chefe e assumiu que tinha tido uma crise de stress. Ele, assim como qualquer pessoa, incluindo os médicos, lhe disse: você tem que se cuidar, diminuir o ritmo, fazer algo. Nas entrelinhas, o stress e culpa do estessado, porque ninguém divide a responsabilidade. 
Mari, que resolvia todos os problemas, agora tinha um dos grandes, o seu próprio, nas mãos e não sabia o que fazer. Ligou para a mãe, que num tom preocupado, perguntou se ela queria sua companhia. Não, não queria e a dispensou. Ligou para uma amiga, conversaram longamente, desabafando as dores da existência da mulher moderna, sobrecarregada. Percebeu que depois dessas duas mulheres, que em parte, concordavam com ela, mas não conseguiram dar nenhuma saída para a situação, ela não tinha mais ninguém além das muitas pessoas com quem trabalhava. Suas relações pessoais eram muito restritas. Ligou para um ex-namorado, com quem ria muito. Ele atendeu, papearam, foi divertido. Depois do término, dolorido, a amizade foi preservada. Não se encontravam, mas estavam ali para qualquer emergência. Ele disse pra ela que não entendia porque as mulheres eram tão estressadas. De que tinham tanto medo? Ela respondeu, meio sem pensar, dizendo que era medo de ficar só. Não foi só ele que ouviu a resposta, ela também e num tom bem impactante. Ele riu e perguntou quem estava ali com ela. Ela riu silenciosa, sabia que estava sozinha e num giro de pensamento, tão vertiginoso quanto sua queda no trabalho naquela manhã, percebeu que o isolamento era dela. Agradeceu o papo. Tomou um banho, dormiu novamente. No dia seguinte retornou a rotina, agora sob um novo olhar, escutando o silêncio da solidão. Resolveu que devolveria alguns problemas para seus donos. Não precisaria mais ter a melhor solução para todas as questões. Mandou pagar a avaria logo que chegou no escritório. Conversou sobre os valores excessivos e pediu que se chegasse a um valor menor. Pegou seu café e tomou ouvindo uma música que o ex tinha mandado por mensagem durante aquela noite, rindo da eficiência de alguém que faz parte da nossa vida para momentos de emergência e colabora da maneira mais suave que pode, sem entrar no conflito. 


Simone de Paula - 11/1/2019

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Quebra-cabeça


O corpo inteiro não fazia mais sentido. Era mapeado pelas dores incessantes. Doía o ombro, o joelho, a lombar. No dia seguinte, doía o estômago, o olho esquerdo e ainda o dedinho do pé, que colidira com o sofá que estava sempre no meio do caminho. Só quem não sabe de si pode acertar em cheio o seu dedo com um móvel inanimado no meio da própria casa. Nem conhece o corpo, nem a casa. As dimensões se confundem, porque a cabeça não está lá, no lugar.

Diante da coleção de dores, uma parte do corpo parecia permanecer intacta, a cabeça. Pensando bem, talvez ela fosse tão ativa que nem doer, doía.  Apenas refletia a dor da alma face aos não saberes do mundo. Então, cabeça e alma doíam também. Aliás, a alma ela sabia que doía, muito, talvez fosse a mais dolorida. Mas como isso era uma razão para viver - combater a dor da alma -, se importava menos em dissecar os cantos obscuros desse universo conhecido. 

Quando se deu conta que a cabeça só parecia não doer, mas no fundo, doía, se fixou ali, buscando encontrar um lampejo de dor antes que esta se espalhasse pela região toda. Buscava a dor com olhos voltados para o alto, como a investigação de um detetive. Se estivesse caçando piolhos, estaria tão envolvida como nessa perseguição à dor. Piolho não dói, mas coça e incomoda quase do mesmo jeito.

Fuça daqui, fuça de lá, até que encontrou o ponto certo, ali tinha um foco de dor. Pequena, leve, quase imperceptível. Perto do ouvido, do lado direito do maxilar. Tensão, ansiedade, stress, bruxismo, otite?

Nesse sem fim de conjecturas, a paranoia se instala. E então, os pensamentos seguem o caminho da loucura iminente: ” e se eu ficar louca e quebrar a minha cabeça em pedacinhos? Tenho um martelo na cozinha para a carne e martelo na caixa de ferramentas para pregos. Mas para quebrar a cabeça, será que martelo resolve ou precisa de marreta?” 

O sem sentido cheio de significações seguia na velocidade acelerada dos pensamentos do lado de dentro da cabeça. Se começasse a falar disso com alguém, diminuiria para 10% as considerações em que tinha chegado até então. Uma coisa era certa, precisava se prevenir de si mesma, porque dor enlouquece. 

Resolveu manter os inimigos bem perto. Martelinho de carne numa mão, Martelão de prego na outra. Os pesos eram bem diferentes, as dimensões também. E dali, a cabeça seguiu pensando nos martelos e suas utilizações. Será mesmo que um preguinho precisa de um martelão? 

Louca mesmo ela fica de pensar, sem perceber, que mais do que sentir a dor, essa viagem maluca a afasta da realidade, daquele corpo de pedacinhos, que dói. E só dói, porque algum martelinho insiste em acordar aquilo que dorme.

Simone de Paula -04/01/2019



quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Roupa

Homens e mulheres se vestem de cores,
de mãos dadas.
Mulheres e homens se vestem de brilho,
de cara inchada de tanto chorar.

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