sexta-feira, 27 de março de 2020

Pandemia

Os dias seguem, mas aqui dentro de mim é só silêncio. 
Ainda não processei o que parece estar acontecendo sem ter como significar o amanhã. 
Voltei de uma viagem de peregrinação, Terra Santa. É um mistério esse relógio do mundo.
Sempre se sabe depois, nunca antes, ainda que a gente tenha o dom da previsão e as palavras da profecia.

Simone de Paula - 27/03/2020

sexta-feira, 20 de março de 2020

Nesse tempo

Os últimos dias insistem em me fazer lembrar. E não é por acaso. O clima de ameaça mundial provoca não a vontade de me isolar, mas o apelo a me juntar aos meus. 
Já imaginei que seria ótimo estar na casa em que cresci, com minha mãe e irmãos. Lá também estariam amigos, primos e tios, aqueles que participaram desses momentos de reunião no passado e seguem vivos. Acrescentaria meu amor, até porque ele iria adorar fazer parte disso. Mas ele está aqui,  do meu lado, agora.
Infelizmente não conseguimos nos reunir. Cada um está na sua casa, fazendo algumas atividades possíveis, e tentando manter contado, virtualizado, pois as exigências do presente nos fizeram ficar distantes.
Lá fora parece que o mundo vai desabar. E, acreditem, não vai desabar, já está desabando faz tempo, mas agora a gente ficou na beira do abismo. Aqui dentro parece festa. Cozinhar, rir, ouvir música, brindar o futuro, esse que finalmente se desenha como futuro, porque não sabemos como será. Mas também tem silêncio, sono e muita brisa fresca.
Curiosamente, os compromissos de trabalho permaneceram. Dou sorte de poder continuar assim. Mas, a adaptação me fez rever aulas, textos, repensar como transmitir. O tema da memória se impôs aqui também. Arquivos que uso há anos, me forçam a ser revisados. Os links, que outrora serviram de indicativos da pesquisa, se tornaram obsoletos. Ou melhor, não se encontram mais na página em que foram pesquisados, em que estavam. Parece incrível, mas a grande biblioteca virtual desmancha as informações, dissolve o que foram as pegadas do nosso percurso. 
Temos falado muito de memória e registro, o que não pode ser esquecido. Com Freud, fazemos isso há muito tempo, porque acreditamos que tudo está gravado em algum lugar. Mas, no campo virtual, nem tudo fica gravado, perdemos aquilo que não sabemos mais o que era e substituímos por algo que imaginamos se igualar. Sem a menor pista do que foi criado anteriormente.
Me fica a pergunta, que arqueologia será possível no grande mundo da internet? Isso se alguém pagar por isso.

Simone de Paula - 20/03/2020

A persistência da memória – Salvador Dali

sexta-feira, 13 de março de 2020

Dogs

Carlão acordou cedo e viu o sol raiando pela janela da área de serviço. Sentiu seu cão companheiro andando atrás dele, pedindo atenção. Decidiu que ia ao parque logo cedo para o passeio diário. Saiu tranquilo, orgulhoso, segurando firme a coleira do bicho. Tob, o cão, liderava as passadas, todo animado com o rabo abanando. 
Mal sabia Carlão que o dia radiante, marcado pelo estado de plenitude que a cena ilustrava, estava prestes a ir por água abaixo. 
Essa mesma ideia, de sair com o cão cedinho para ir ao parque, também tomou Gerson, Mário, João e Pedro. 
Ora, como não se dar a mostras tão agradáveis como essa? Especialmente por notar olhares invejosos naqueles homens que não podem ter tão imponente objeto, um cão elegante. E ainda, como brinde, ganhar olhares carinhosos, daquelas que se sentem atraídas pelo bichinho.
Entre árvores, lago, pássaros e muitos transeuntes, os cinco homens com seus cães de raças variadas andavam imponentes pela pista de corrida quando os cães deram de cara um com o outro. Coleiras se enroscaram, os bichos latiram e rosnaram, os homens ficaram agitados, apavorados e sem saber se atacavam ou se defendiam. Estava montada a confusão.
Meio a contragosto, todos se distanciaram, derem aqueles sorrisos amarelos um para o outro, fizeram comentários espirituosos para quebrar o gelo, enfim, ficou declarada a falta de graça que a cena teve.
Cada um puxou forte a guia do seu animal, que colocou o rabo entre as pernas depois da bronca do dono. 
O sol continuou radiante e o dia tranquilo, mas cada um seguiu rapidinho pra casa, querendo esconder aquele abalo sísmico.

Simone de Paula - 13/03/2020

quinta-feira, 12 de março de 2020

Escrita

A música e a lembrança emprestam à personagem a raiva do dia que queria ter gritado e contive. Como tantas vezes.

sexta-feira, 6 de março de 2020

...

Justamente hoje, no dia de escrever, meu dia não quer dizer.
O estado é de silêncio e observação. Não tem dúvida nem questão.
Dia de economia, em que menos é mais.
Suspendo as obrigações e estendo o tempo das ações.
Faço tudo aquilo que é dispensável e abro mão do que é utilitário.
Estou do avesso. Trama igual, mas diferente, como dizem por aí.
Cada frase leva mais tempo para ser pensada e escrita. Uma hora para de vez.
É agora.

Simone de Paula - 06/03/2020