sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O passado.... passou

É lembrança ou é apego?!?

Com essa frase começo o escrito de hoje, sexta-feira, 31 de dezembro de 2021. Último dia do ano.

Seria aquele momento de balanço, retrospectiva dos acontecimentos, avaliação das perdas e danos e comemoração das conquistas e êxitos. Tudo certo até aí. Depois, promessas ou desejos para o ano vindouro, com a decisão de seguir adiante, sem permanecer ‘chorando o leite derramado’.

O ideia do réveillon é essa, seguir deixando pra trás o que passou, não sem antes ter feito o tal balanço. Rituais de passagem deveriam servir para isso, para quitar com o destino aquilo que não nos agradou.

Se isso serve anualmente para a gente dar ao passado o tratamento que ele merece, ser deixado pra lá (porque tem aqueles eventos, bem enevoados, diga-se de passagem), por que a gente insiste em carregar!?!

Eu gosto de uma antiguidade, especialmente do ponto de vista estético. Já fui mais insistente nisso, hoje sou menos, parece que o gosto ficou desbotado. Mas ainda segue aqui. 

Mas, tirando isso, tendo usado muito tempo para desgastar as lembranças, ofereci ao passado um lugar bem confortável no ontem, sem total esquecimento, mas com muita desimportância. Isso é bom.

No entanto, os apelos e apegos ao que já foi, a tentativa de relembrar ou recuperar, manifestam um vazio de perspectiva diante do presente, e mais ainda a impressão de desesperança em relação ao futuro.

Sou adepta do tempo, ficar, esperar, aproveitar, usufruir, permanecer até esgotar. Porque quando chega ao fim, uma novidade se dá pela fresta aberta do desejo. Porém na velocidade em que vamos, nem bem um começa já se é obrigado a terminar. 

Hoje termina um ano, que deveríamos ter tido alguns dias para encerrá-lo. Pensando nele ou não, mas apenas permitindo que ele tivesse decantado, para seguirmos de branco, limpos para o novo que se pintará em nós. 

Tome os banhos, silencie, relembre e escreva para deixar lá em 2021 o que foi de 2021. Se um dia, você precisar contar essa história, ela estará disponível para ser lembrada, e só.

Ano novo, vida nova. Nem tão nova, porque sequência do que já estamos vivendo, mas com possibilidades de repetir, coisa que é impossível não fazer, mas também de permitir que o destino nos surpreenda com a fortuna que ele nos reserva.

Que o ano novo, seja novo, sem necessidade de gastar a energia mental relembrando por não ter o que pensar. O ócio da mente é uma maravilha para sair do estado de exaustão.

Tim-tim!!!

Simone de Paula - 31/12/21

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

União

União quando nos juntamos, União a marca de açúcar. União também nome de rua, escola de samba, e sei lá o que mais.

Estamos no Natal, na véspera mais precisamente. O mundo reunido por uma data que nem todos comemoram. Quase dois anos também unidos pela pandemia do covid, sem o sentido da comemoração, mas da dor.

E enquanto eu escrevia isso, embrulhava presentes e assava um lombo, recebi um email com um pensamento estóico para completar esse texto:

"Esta comunhão, mantida com escrupuloso cuidado, que nos faz misturarmo-nos como homens com nossos semelhantes e sustenta que a raça humana tem certos direitos em comum, é também de grande ajuda em nutrir a comunhão mais íntima que se baseia na amizade." - Sêneca - Carta 48, “Sobre trocadilhos como Indigno ao Filósofo”

 Tá tudo certo, "... então é Natal..." como canta a Simone :D

 

Simone de Paula - 24/12/21

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Reencontro

Ontem reencontrei um amigo querido com quem tenho muita sintonia. Olhos nos olhos, depois de quase dois anos. Um papo longo que só terminou porque o restaurante fechou. Comida boa, bebida gelada, risadas e compartilhamento. Viemos de lugares diferentes, transitamos estradas paralelas, nos cruzamos em alguns trechos e isso foi suficiente para definir a amizade.

Para garantir o encontro, nada melhor do que um dead line, ou seja, agora ou nunca! E foi assim: AGORA! Mexe na agenda e faz acontecer.

Nossa amizade tem uma história, claro, como tudo que a gente conta e, por isso, faz parecer especial. As trocas começaram por espaços compartilhados. Depois, por assuntos comuns com planejamentos possíveis. Na pandemia, o ensinamento, novas descobertas, caminhos aproximados. Suave, delicado, gentil. No ritmo lento e constante que coloca o corpo presente e faz material a virtualidade da linguagem.

E falamos de corpo, claro, porque foi pelo espaço dos corpos que o encontro aconteceu inicialmente. 

Já que o corpo apareceu aqui, lembrei da experiência linda do último sábado, com a apresentação Gestos Transitantes, do Núcleo Dédalos, para o encerramento do grupo de estudos Corpo (en) cena. Depois reencontros com amigos, mais e mais nesse momento em que, vacinados, relaxamos os cuidados e nos reaproximamos.

Acho que é assim, o corpo pede passagem e atravessa o desfiladeiro da linguagem.


Simone de Paula - 17/12/2021

Gestos Transitantes

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Texto

Pra que serve um texto?

Pra que serve escrever?

Conheço um cara que é muito bom de escrita. Intelectual, culto, bom teórico. Escreve sério, coloca sempre uma palavra que ninguém conhece, e se conhece, não sabe o significado. Essa é a marca da insegurança que se mostra em cada artigo, tese ou livro que sai das mãos dele. Se disfarça de melhor do que o leitor quando o deixa no vácuo do sentido. Perdoável, porque o que sai, vale.

Conheço também uma mina, escreve ótimas crônicas. Divertida, texto limpo, fácil, criativo, mesmo quando transborda ironia nas críticas que faz. Leitora competente, segura nas opiniões, bem formada e culta na medida certa para esbanjar charme e sabedoria. Prolixa, se excede para conquistar e manter sua audiência.

E, entre tantos outros, tem eu. Nem conheço bem, mas imagino. Escrevo porque quero dizer coisas, mesmo que isso signifique 10% do que penso. Tem também o treino, pela gramática e/ou estética. Semanalmente mantenho minha disciplina, inventando meios de me colocar no mundo. Faz bem, exige esforço e foco, porque sempre a via mais fácil é de deixar para a próxima vez. Me empurro e sigo. Sim, faço por mim.

Simone de Paula - 10/12/2021



sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Double

 

Descubro, de tempos em tempos, que vim mesmo nessa vida pra aprender o que é uma dupla. E, ao mesmo tempo, sei exatamente o que é.

Por efeitos de desencontro, gasto  energia, criatividade e muita saliva para explicar para o outro como duplar. Mas esse exercício, exaustivo nessa altura da vida, só me faz perceber que eu me desgasto exemplificando aquilo que eu sei e o outro jamais saberá. É mais para eu entender o que já sei do que para o outro me acompanhar. Não que eu goste de admitir isso.

Vai ver é do duplo o problema e não da dupla, até porque, não me refiro ao gêmeo. 

Fato mesmo é que tudo isso importa demais. Mesmo querendo me livrar dos astros, a Libra que me opera, me destrata. Um dia me livro dela, ou melhor do outra que tá bem próxima de mim.

Simone de Paula - 03/12/2021

 

 

 

Ofra Amit, 'Bubblegum twins someforeignletters'

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O som do beijo

Pensa só: aquele momento em que os olhos se miram, as bocas se aproximam e o beijo acontece.

No filme, tem trilha, antecipando o que vai ser o destino daquele instante mágico: amor, perigo, comédia, et, etc.

Na vida real, seja lá o que isso signifique em pleno século XXI, tem trilha sonora também, mesmo no silêncio. 

O som toca dentro de nós, enfeitiça o momento, provoca o microacontecimento inesquecível.

O primeiro, o segundo, o décimo nono, ou o último beijo. Qualquer número que seja, o beijo invoca a música originária em nós. Beijar ativa o som, invoice!

E não é que beijo com som é de olhos fechados?!?

Sou romântica, talvez. Tola, certamente. Insisto na aura musical pra embalar a intimidade maior desse encontro precioso e sem destino prévio.

No beijo de carne e saliva não tem antecipação de nada, só instante, que dura a eternidade. 

Invoco as técnicas pra retardar o fim, esticando a melodia, na tentativa de capturar nos lábios o silêncio precioso do momento.

Simone de Paula - 26/11/2021


Mia Couto fez algo lindo sobre isso, em Tradutor de chuvas:

O Instante Antes do Beijo

Não quero o primeiro beijo:
basta-me
O instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.


 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Não tem

Não tem conto pra contar.

O corpo leve e lento. O silêncio.

Não tem texto pra postar.

O dia cinza e suave. A paz.

Não tem palavras a escrever.

A boca fechada e sorridente. A vida.


Simone de Paula - 19/11/2021

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

No rasinho

Vocês já notaram uma criança na beira do mar?

Ela vive a euforia de estar tomada pela água e a frustração em saber que somente os pés estão submersos. O resto do corpo só recebe respingos. Mas ela finge mesmo assim. Foi alertada sobre o perigo de ir além dos limites extremos dos joelhos. Obedece, mas quer desafiar essa determinação, indo além da borda divisora entre a areia e a espuma das ondas. Disfarça que invade o lado de lá, ultrapassa a altura permitida. Tudo na brincadeira, como se não soubesse o que está fazendo. E a cada passo que avança, um novo alerta é proferido. A diversão se encerra com a frase decepcionante que anuncia 'a hora de ir embora' e com ela todas as tentativas de tornar a proteção da casa tão atraente e satisfatória, quanto a liberdade refrescante e arrepiante da praia. Sequência de reclamações e tentativa de negociação, ou chantagem, derrubando todo o prazer conquistado naqueles minutos incontáveis do banho de mar.

A gente cresce e pode escolher quando entra e quando sai, quanto afunda e quanto levita. E nessa hora, volta a ser criança novamente.

Adoro o mar. E a lua está em Peixes.

Simone de Paula

 



sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Corre

A vida é corre.

A vida corre.

Tipo assim, corre.

Se não, se morre.

P.S. sou partidária de não fugir da raia, adepta de não antecipar a conclusão, trabalhando na engorda da compreensão.

Simone de Paula - 05/11/2021

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Nome próprio

Minha avó se chamava Palavra. Ela conta que a mãe dela, minha bisavó, achava que a gente tinha que ter nome de coisas da vida. A irmã mais velha era a tia Dores, sem Maria, porque Maria, para a bisa, era nome próprio. Depois veio o tio Martelo, o tio Sapato e a tia Viola. 

A vó contava que a mãe achava que se a pessoa tinha um nome que não era de coisa, o nome próprio, a pessoa ficava se achando muito importante. Nome composto então, ela olhava torto e mandava os filhos não ficarem muito perto. Tinha certo que quanto mais a pessoa tinha posse do nome, mais ela se afastava do mundo. 

A bisa tinha ganhado o nome de Elegância, era a caçula de 10 filhos, e tinha nascido suave como um peixinho nada no rio. Viveu a vida assim, sendo chamada de dona Elegância. Assumiu nos gestos e tom de voz esse predicado. Eu conheci pouco a bisa, mas lembro de fazer um baita esforço pra andar quando estava perto dela. Se eu corria ela fazia um sinalzinho com as mãos, me pedindo pra chegar pertinho e dizia: "se for pra correr, faça como as gazelas." Eu parava na hora, parecia a maior bronca que alguém pode levar, mas nem bronca era. 

O nome toma vida, eu vi isso na família. E vocês já imaginam, tia Dores era dolorida, tio Martelo era impositivo, tio Sapato vivia na rua e tia Viola cantarolava o dia todo. Já vovó, essa era a mais tagarela. 

O pai dela, o biso João... pois é, a vó Elegância casou com um homem de nome de gente... era calado, só abria a boca pra dizer verdades. Quando vovó tava falando muito, contando causos e coisas dos vizinhos, ele nem olhava pra ela, mas pronunciava de longe, com o seu vozeirão, a profecia: "olha a Eco, minha filha!" Foi ele quem contou o mito da ninfa Eco, que ficou assim por falar demais. Mas vovó nem ligou, era gostoso mexer boca e língua e trocar olhares curiosos com quem queria saber o que ela tinha pra dizer.

Desde pequeno, aprendi que esse era o nome da minha avó antes de saber que palavra significava outra coisa também. Na escola, quando fui ser alfabetizado, surgiu a palavra palavra. A professora falou e deu um tilt na minha cabeça, me perguntei que raios ela estava falando da minha avó. Perguntei isso para a professora, porque criança pergunta sem medo de passar vergonha. Ela não entendeu a pergunta, mas era muito delicada, tia Alice. Mandou bilhete para a minha mãe, queria saber porque eu achava estranho quando ela falava a palavra palavra. E ainda disse que eu fazia um tipo de eco: toda vez que ela dizia "palavra", eu emendava, "vovó". Mamãe respondeu o bilhete e resolveu a confusão.

Foi depois de saber escrever palavras que entendi o que era o nome da minha avó. Quando a gente só fala, ninguém conta pra quente que o que sai da boca chama palavra. Fica assim: "como chama essa coisa?" e a criança tem que dizer o nome. Mas aí, quando a gente está lá, aprendendo que B+A é BA, alguém fala que aquilo é uma palavra. Bisa tinha razão, nome de coisa pode ser nome de gente, porque quando a gente quer saber o nome de alguém, pergunta: "como você chama?" É muita confusão dar nome próprio mesmo.

Então, quando aprendi que palavra é o nome da palavra e também o nome da minha avó, passei a fazer esse parêntese cada vez que eu falava dela para alguém. Vovó ficou com o nome composto, sem querer: "Palavra, minha avó". 

Toda essa história aí eu contei porque gosto tanto da minha avó, que eu quero que todo mundo saiba o nome dela, mas que não é só dela porque todo mundo usa palavra, pega palavra, fala palavra, escreve palavra, perde palavra, inventa palavra, e por aí vai.

Vovó morreu quando eu ainda era criança e quando eu falo dela parece que eu volto lá aos meus 8 anos de idade. Eu conto toda a história que eu sei da vida dela, essa mulher que contava o mundo em palavras. 

Simone de Paula - 29/10/2021





sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Pastelaria

Eu não era muito de fazer massa. Nem torta, nem bolo, nem pastel. Pão então, nem pensar.

O que me desagrada é a precisão, ter que medir, pesar, esperar demais. Fico entre a preguiça e a insegurança.

Na pandemia fiz pão e amei. Mas agora a panela tá lá, sem uso. Tenho a esperança de voltar, mas ainda preciso eliminar os quilos adquiridos no isolamento.

Mas pastel, pastel é uma coisa que sempre tive demais na minha vida. E, nem gosto tanto assim.

E, justamente esse aí, o pastel, esteve nos meus últimos dias. Mas não é a massa recheada de coisas gostosas e frita em óleo quente, não. É o pastel do faz pra ontem o que deveria ter um mês pra dar certo. Tô fazendo pastel quando queria fazer pão de fermentação lenta. 

Pastel, aqui, significa texto. 

Estou às voltas com um projeto e me vi tendo que escrever sobre o que eu nem sabia direito como dizer. Ia ficando uma colcha de retalhos e a irritação ia elevando minha temperatura. Era um pastel atrás do outro e nenhum com gosto bom. 

Taquei o óleo longe e avisei, quem quiser, que pasteleie.

Deu certo. A temperatura baixou e percebi que pastel eu queria fazer. Ficou melhor, mais gostoso, funcionou.

Mas o drama é, eu quero mesmo o meu pão demorado, mas ainda continuo fazendo pastéis.


Simone de Paula - 22/10/2021

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Loucura

A insistência da loucura é uma coisa extraordinária. Não importa quantos tratamentos ou remédios inventem para isso, ela vai escapar de qualquer forma. Ela é o que precisamos para viver além da brutalidade do real. Enfrentar o susto da diferença total diante de nós, exige um desligamento do concreto para o mergulho na invenção. Ver no outro o que acredito que eu seja. Mirar a mim do outro lado para poder enxergar aqui. Proclamar na imagem do mundo a realidade que espero. Só se pode viver com pouca sanidade. Criar é um ato de loucura.

Simone de Paula - 15/10/21

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Indiferença

Toda a fachada de indiferença que Elisângela usava era pra disfarçar, ou melhor, esconder sua intensidade. Mas um dia, ela pirou.

Foi mais ou menos assim.. 

Sentada no sofá da casa em que morava com a mãe, lendo as notícias do dia, enquanto tomava um café, Elisângela começou a sentir um redemoinho no meio da barriga. Era um misto de enjoo, com nojo, com tristeza, com vergonha, com medo, com desespero, com decepção, com raiva, com solidão. Mix completo! E sem saber direito o que tinha provocado aquilo. Pela personalidade apaziguadora que tinha, usou o recurso comum: racionalizar. Pensou se tinha comido algo que estava brigando com o corpo dela. Mas aquela força aumentou e ela começou a gritar. Muito, sem conseguir parar, sem saber como desligar o botão, sem mexer nenhum membro do corpo a não ser as cordas vocais. A mãe veio correndo e tentava fazê-la calar, o interfone começou a tocar, certamente algum vizinho reclamando, mas ela não via ninguém, nada importava, nem saberia como parar.

Alguns minutos depois, aquele berro sem contorno virou choro compulsivo. Ficou muito tempo encolhida ali, na mesma posição, chorando por quase trinta anos de vida. Eram tantos os porquês, mas nenhum que ela quisesse pensar. Ficou calada o resto do dia. O choro ia e vinha, ela estava exaurida, não tinha força, nem vontade de sair daquele mesmo lugar em que tudo começou naquela manhã. 

A mãe trouxe um copo de leite, mas ela nem tocou. Trouxe um cobertor e esse ela aceitou. Deitou no sofá em que estava e desistiu de qualquer pensamento ou movimento, ficaria ali parada para sempre. Como agora estava silenciosa, a mãe a deixou quieta, afinal, aquele som estridente não incomodava mais ninguém, porque tinha cessado, ela estava calada novamente.

No meio da madrugada, outra crise, que veio com o incômodo na barriga, minutos longos de gritos, choro convulsivo e depois silêncio, quietude, tristeza. 

A mãe perguntou se ela queria um médico, ela negou. Ela não queria nada e nem faria nada, além de ter suas crises sem precisar se desculpar ou se envergonhar por isso. Naquele momento ela não conseguia pensar assim, mas depois ela entendeu que estava se absolvendo por tanta culpa que sentira sem nem haver porquê.

Tinha cumprido papeis, segurado tudo nas mãos, obtendo elogios e mais tarefas, mesmo que autoimpostas. A explosão surgiu como a coleção de nãos nunca pronunciados.

No trabalho, ganhou uma licença de duas semanas, mas ela pediu para ser desligada do emprego, não iria voltar. Não tinha como ir nem mais um dia na vida para aquele escritório. Precisava de tempo para sair daquele sofá, mas não seriam quinze dias, nem se ela quisesse, pois nada a moveria ali, a não ser o dentro dela.

Estava indiferente a tudo, agora de verdade. A fachada deu lugar ao sentimento de pouco se importar com a vida, o mundo, e principalmente as pessoas. Entrou no estado de basta.

Alguns meses se passaram. A mãe tentava algum tipo de conselho para ela sair daquele estado e ela nem respondia. Porém, numa outra manhã, sem nenhum jornal, mas silêncio e café, olhou para a mãe e disse suas primeiras palavras: “me deixa aqui, tá tudo certo”. A mãe calou e ela praticamente tinha mudado para o sofá, estava na sua atual casa. Aquele pequeno espaço em que tinha tudo. Levantava apenas para ir ao banheiro ou tomar banho. Comia ali mesmo. Era total passividade e silêncio.

Era impressionante vê-la, pois não havia ali um zumbi, mas uma mulher séria, mais viva do que nunca. 

Alguns pensamentos começaram a voltar, como sua boca não servia mais para falar, pegou um caderno e começou a escrever. Eram palavras soltas, sem conexão, sem a intenção de contar algo, não era um diário, mas um espaço de registro, só queria ter onde por as palavras que começavam a surgir. 

Três meses desse estado e ela decidiu que era hora de procurar um terapeuta, queria fazer um trabalho nesse sentido. Lembrou de uma conhecida que fazia análise e pediu um contato. Marcou uma sessão e foi sua primeira saída de casa. Chegou com um bilhete, "não consigo falar, mas vai acontecer em algum momento, só preciso estar aqui por enquanto". O analista aceitou e indicou a poltrona para que ela sentasse, mas ela se direcionou divã, não queria se ver olhada. Mais três meses de silêncio e passividade. Ela começava a notar que esse era o seu tempo, três meses, que não iria fazer mais nada que exigisse que ela precisasse se antecipar a isso. Ao menos três, esse era o seu novo lema.

Chegou na sessão, sentou na poltrona e começou a falar, pouco, sem sentido, apenas registro, como fazia com o caderno. O tempo passou, as palavras foram se encadeando de forma diferente e mostravam mais riqueza de sentidos. Ela confiava e se soltava naquele lugar. Não estava mais abandonada como no sofá, mas ainda se mantinha só e em distanciamento. Depois de entender seu tempo, agora experimentava seu lugar em relação aos outros e ao mundo.

No meio de uma sessão, sentiu novamente aquele redemoinho e não conseguiu segurar o grito. Berrou muito por quase dez minutos. O analista ficou surpreso, mas deixou a situação seguir livremente. Após o berro, veio mais dez minutos de choro, ele simplesmente assistia tudo aquilo em espera. Um respiro mais profundo, ela olhou para ele e começou a falar sem saber o que dizia. Começou pedindo, não me interrompa, por favor. Depois de mais de meia hora de frases e palavras atropeladas, como que sem terem sido pensadas para serem ditas, veio uma frase amontoada de outras que a encobriam, mas que foi escutada com plenitude: fui invadida, fui usada, fui abusada, me cegaram e eu nem sei. 

A revelação foi mais surpreendente para ela do que para ele. Era algo que ela praticamente não sabia, mas tinha acontecido. Quando ela parou de falar, olhou pra ele e perguntou: você ouviu o que eu ouvi? Foi isso mesmo que eu disse, que eu fui abusada? Ele confirmou. Ela levantou e foi ao banheiro, o vômito, dessa vez, foi o meio de colocar pra fora aquele embrulho do estômago. Ela voltou, agradeceu pela sessão, sorriu e disse que continuariam na próxima semana. Voltou pra casa livre de uma lembrança que a atacava por dentro. Agora iria tratar daquilo. 

Chegou em casa, saiu do sofá e voltou para o seu quarto. Tomou um banho e comeu, parecia com mais fome do que em qualquer momento teve na vida. Teria muito tempo para trabalhar aquilo tudo, se tratar, mas tinha achado seu espaço. Pôs pra fora aquele entulho que estava dentro dela. Reconheceu que era no meio da barriga que ela existia.

Simone de Paula 08/10/21

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Destino

Ernani decidiu mudar o rumo da vida assim que recebeu o diploma. Passou cinco anos na faculdade de Direito, mas o que aprendeu mesmo foi que ele não era bom naquilo. Entendeu que a lei mais versava sobre os deveres do que os direitos que temos. Ver pela frente o mundo adulto com uma vida urbana, exigiria que ele andasse do lado dos tais deveres. Não quis. Pegou o canudo, endireitou as costas e seguiu atrás do seu propósito.

Começou ocupando o sítio da família, que era pouco visitado. Chegando lá, se sentiu um homem completo, com tarefas simples e a vida provida por ele mesmo. Descobriu a terra e o que daria para fazer com ela. Fez horta e pomar. Ainda não tinha como colher, mas já sabia plantar. O que Ernani não tinha se dado conta era que ele não era nativo e não tinha recebido ensinamento sobre o processo agrícola. Mas, afofou a terra e jogou as sementes. Enquanto não pudesse tirar o sustento dali, compraria alimentos na cidade. Se ocupou da lida diária que o sítio exigia.

Depois de três meses, veio a primeira surpresa: o primo Evaldo avisou que estava de férias e resolveu ir com a família para lá. Só ficariam quinze dias. Ernani ficou num misto de animação, pois teria companhia, mas também pensando que ia ser um incômodo cinco pessoas a mais naquela casa. Não tinha o que dizer, o sítio era da família, coletivo.

Eles chegaram, e como era apenas uma casa no meio do mato, com uns cachorros soltos, não acharam o que imaginavam encontrar: a natureza - ainda que ela estivesse bem ali. Descansaram os dois primeiros dias. Se interessaram pela horta de Ernani, mas não sabiam o que ver além dos brotos. As crianças queriam piscina, videogame, ou ir pra casa. O primo Evaldo, tentava inventar alguma coisa pra fazer com eles, levava para a cidade ou tentava ensinar a jogar dominó. As férias foram um fracasso.

Ernani, sozinho de novo, resolveu dar um trato na casa. Pintou, pediu ajuda ao vizinho e melhorou o telhado. Começou a fazer até um fogão a lenha. Mais três meses e tudo estava feito. A mãe de Ernani mandava dinheiro para ajudar, achava que também ia valorizar o bem e poderiam vender melhor no futuro. Ernani investia a vida ali.

Passou a fazer parte daquele lugar, conhecia as pessoas e o modo de vida, se adaptou fácil. Mas se incomodava com as coisas que não eram como deveriam ser. Os problemas para conseguir melhores sementes para ter a colheita mais farta, ou ainda as insistentes falta de energia. Só funcionava o que cabia no alcance da sua mão. 

Era final de ano e Evaldo avisou que passariam o réveillon no sítio. Dessa vez ele iria com a família e as irmãs. Levaram barracas pra acampar no quintal. Ernani não achou boa essa notícia, mas não tinha como vetar. Bastou uma semana para se instalar o caos. A inabilidade para usarem os recursos que o sítio oferecia fez com que ele se tornasse o empregado dos próprios parentes. 

Tentou convencer a mãe a comprar o sítio. Ela não queria fazer financiamento para isso. E, como ele não tinha emprego fixo, comprovação de renda, nem tinha renda, não poderia fazer isso sozinho? Reclamava dos deveres impostos a ele, mas reconhecia que quando o sítio era invadido pela família, era a falta de dever que fazia o caos se instalar. 

Se quisesse comprar aquele lugar precisaria pensar numa solução. Teria que tirar dinheiro de algum lugar. Conversando na cidade, percebeu que poderia usar o diploma que tinha para auxiliar um ou outro morador que necessitava de um apoio de advogado. Cobrava um valor baixo, mas era alguma renda. Como as mulheres rendeiras, ele teceu suas linhas e fez uma bela malha de clientes. Só suporte burocrático, que para eles já era o que salvaria suas vidas. 

Ernani foi percebendo mais e mais as leis e suas possibilidades. Mas a atenção que dava agora à nova ocupação fez com que ele esquecesse da sua horta. Os legumes e verduras reclamaram atenção. E ele resolveu se desdobrar para arcar com todas as tarefas. Ele tinha deveres diários que não poderia abrir mão. Gostava de como a vida rodava bem assim. 

O prefeito ouviu falar dele, o chamou para uma reunião. Perguntou se estava interessado em entrar para o Partido e se candidatar a vereador. A vaidade subiu e a razão desceu. Aceitou. Envolvido agora com a política local e a lógica que fazia operar essa estrutura, se distanciou da lida do sítio. Os primos resolveram ir de novo, e dessa vez ele nem se importou, quase não ficou ali para vê-los. 

Conseguiu juntar dinheiro e fazer um financiamento, porque agora tinha uma ligação formal com o partido, o que o ajudou. Comprou o sítio, mais pela posse do que pela sua vida lá.

Cinco anos depois que Ernani tinha decidido ir para o interior, a mãe resolveu visitá-lo. Eles tinham se visto pouco nesses anos, apenas duas ou três vezes quando ele tinha ido para a casa dela. Ela o observava de longe e sabia que ele estava caminhando para trilhas bem diferentes do que o filho idealista que ela conhecia. Chegou e só conseguiu vê-lo com calma depois de três dias. E ela olhou bem pra ele e perguntou: então agora você é aquele que usa a lei para ter direitos? Ele se surpreendeu com aquela frase e pareceu não compreender o que ela disse. Mas ouviu bem e não pode parar de pensar. Passou os dias sequenciais meditando sobre aquilo, revendo seu percurso. Avaliando como estava sua vida. Era boa, sem dúvida, mas menos importante. Olhou o sítio, que agora não recebia visitas, apenas tinha dois caseiros para cuidar da horta e da casa. Ele mal sabia o que tinha plantado lá. Descobriu que tinham mudado algumas coisas e ele nem notou. Se deu conta que as coisas mudam e a gente nem vê, que funciona como um vórtex que te leva para o centro e te engole. A frase da mãe refletia que ele tinha conseguido o que queria, mas será que o mundo era assim mesmo? Será que o mundo dele deveria ser assim mesmo? Refletiu sobre a lei e o dever, sobre os direitos do homem, repensou como queria viver os próximos anos de vida. Notou o corpo, o rosto, as roupas, as palavras que usava. Se viu outro Ernani e parecia que nem se conhecia ou como tinha se tornado aquele. Olhava pela janela da sua alma e parecia só encontrar a mesma situação do momento para o futuro, e se viu mais devedor do que qualquer ser humano que siga pelos deveres da lei. E tinha dívida mesmo: com o banco pelo dinheiro emprestado para o sítio, com o partido para seguir terminando o mandato de vereador e seguir trabalhando para ser prefeito, com os clientes que esperavam sua ajuda, afinal, ele continuava a ser um advogado que dava suporte. Devia ao mundo uma vida que nem bem ele quis.

Os cinco anos seguintes foram pagando, lúcido de que deveria concluir o que começou. Depois disso, decidiria o que fazer, pois o único direito que tinha era de escolher depois de não dever mais nada ao outro. A única certeza era a de viver no sítio, plantar e esperar o tempo passar.

Simone de Paula - 01/10/2021



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Poesia

Eu queria fazer poesia, mas não sei.

Soube recente, que as palavras da poesia carregam um menos que é mais. E eu lá sei por menos?

Tem ainda aquilo de esconder o sentido. Mas eu acho que o sentido se esconde por ele mesmo, até porque eu não sei o que quem lê vai entender. O difícil é escrever sem imaginar quem vai ler.

E a simplicidade? Conseguir encontrar o simples que não seja nem bobo e nem óbvio, como se de tão evidente, ficasse no intermeio entre o literal e o absurdo. Me inventei complexa. Que bobagem!

Rima nem sempre compõe poesia. Faz música, cria cadência, mas nem sempre toca o ponto de conexão com aquilo lá que é impossível reproduzir. Um fazer poesia sem palavra, mas efeito.

Se um dia virar gente, quero ser poeta.

 

Simone de Paula - 24/9/2021



sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Jogo dos sete erros

Mas afinal, será mesmo que o erro está em mim?

A imagem parece quase a mesma. Não são dois desenhos que se comparam, são três. Porém, como são muito semelhantes (sem ser idênticos, evidentemente), podem ser apenas lidos um a um, sem confusão entre os elementos visíveis e invisíveis que gritam para serem percebidos.

À primeira vista: duas pessoas, frente a frente, sintonizadas por uma posição de acordo e equilíbrio. Sim, vemos as pernas retas com os pés firmes no chão, direcionados um para o outro. Quadris alinhados, mostrando que nenhuma das partes se adianta ao desejo, ou tenta se afastar, evitando-o. Disposição é o termo que cabe. Peitos abertos, mostrando coragem. Queixo seguro com os lábios fechados, como num duelo, nenhuma das partes mostra a emoção do momento. Mas, a verdade, é que temos neutralidade, sem um esboço de sorriso ou descrença. Olhos nos olhos, presença real. Pois bem, tudo aí!

A primeira dúvida: os olhos olhavam mesmo uns para os outros? Eu acho que sim, mas você insinua que talvez não. Suas defesas são sempre orientadas para colocar a ilusão em mim. Talvez. O questionador se arroga a posição de saber. Só que não, nem sempre.

Segunda dúvida: se boca e queixo não esboçam sorriso e nem desacordo, os olhos, aqueles que poderiam olhar uns nos outros, poderiam também indicar algum sentimento, inclusive indiferença. E, mesmo que fosse isso, ainda seria alguma coisa. Mas aí já temos um ponto interessante. Se de um lado eu posso ver interesse (mesmo que poderia ser traduzido como indiferença), o que dá pra ver do outro lado? Como quem olha vê o seu próprio olhar? Como dá pra saber o que se transmite do que se sente quando se olha, se é impossível ver isso? Isso não é nem um erro, é justamente o ponto em que um comunica ao outro: "vi isso em você!" Mas como não temos fala, nem sonora, nem escrita, não teve comunicação.

Seguindo os passos dessa análise, teríamos mesmo coragem dos dois lados? Acho que essa pode ser notada. O peito aberto, elegante, esse sim, mostrava a total disposição. Já do outro lado, os ombros revelaram: era só simulação de liberdade. Num primeiro momento pareciam cansaço, ou até uma roupa com caimento ruim, num número maior do que o que encaixa no corpo. Mas o erro tá aí, tomar pelo ponto central quando foi na periferia que apareceu a diferença. A terceira dúvida se expressou.

Como é possível, lado a lado, a pelve estar tão endireitada? Nada pra frente ou pra trás? Nem um desvio de coluna? Aqui gritou o medo. É justamente o lugar da arma no duelo. Aqui é o tudo ou nada. De um lado poderia até arriscar uma leve oferta, mas e se fosse recebida com recusa? Ou ainda, do outro lado, poderia também ter mostrado que isso seria evitado, mas poderia ser tomado como rejeição. Receio total e completo de mostrar o que é para não ser visto como é, e consequentemente, ter que bancar o que estava em cena. Esse erro, confirma o anterior, a coragem queria ser plena, mas o medo a impedia de se realizar.

As mãos, nem muito percebidas, são aquelas que revelaram total descompasso. Poderia ser entrega e aceite, mas era apenas entrega ao nada. Esse sim, um erro, pois nem foi notado.

A sexta dúvida vai ao chão. Pés firmes, seguros. Dedos mirando os dedos. Mas um leve deslocamento  do calcanhar para o alto mostra, e alguém já está em movimento. E não é um em direção ao outro, mas no jogo lateral do tornozelo, o giro naturalmente já indica a desistência. O movimento é de saída.

O sétimo erro, a sétima dúvida, será que não tinha o que vi à primeira vista? Estava tudo aí, o visto e o revisto. Não dá pra dizer que o que se viu depois vale mais do que o que se viu antes, pois as realidades são múltiplas e abertas a serem interpretadas com o olhar de cada um, em cada momento, de acordo com o que se quer ver.

O jogo acabou, mas valeu!

Simone de Paula - 12/09/2021


sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Ondas

 Hoje teve sol. Luminoso, acendendo o dia.

No chão, marcas, dos pés, das conchas e das ondas do.mar.

Brilho na água, acompanhado do barulho delicado das ondas.convidam a esquece o tempo e se entregar.

A areia recém molhada, esculpida em sinuosos montes, se esticava à espera dos passos valores que não esperavam chegar a lugar nenhum, apenas desfilar sob a luz daquele novo amanhecer.


Simone de Paula,- 10/09/2021


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Entrega

Esses dias têm sido do melhor jeito que poderiam ser. A viagem, que geralmente vem repleta de programação, tomou outro rumo. Não precisa saber nem do hoje e nem do amanhã, apenas ir fazendo o que o corpo pede. Fome, sede, movimento, calmaria. Frio, calor, saudade, amor.

O.objetivo era uma entrega, muito valiosa. Uma vez cumprido, era a hora de usufruir do tempo que sobrou. Tempo bom, estranhamente desnecessário, por isso, sem programa.

Ontem foi assim, hoje também. E amanhã idem, por que não?

Simone de Paula- 03/9/2021

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

As rugas do amor

"Quem vê cara, não vê coração."

Esse dito dita a face do amor estampada na nossa cara. Não amor romântico (ainda que possa ser também), mas o amor ao si mesmo, amor aos vícios, amor às migalhas a que nos apegamos, achando que aquilo é o suprassumo da nossa existência.

Já foi o tempo que o amor (aí sim, aquele romântico, apaixonado, metade da laranja), dava ao semblante um brilho diferente. Os olhos olhando, como se mirassem aquele que se imagina. A boca falando, com a potência dos músculos e a umidade da saliva daqueles que beijam. O corpo exibido, implorando pelo corpo do outro. 

Todo dia vejo amor panicando, enrugando, estressando cada pequeno pedacinho do amante / amado. 

Aquele embalo que soltava todas as reservas com as quais a gente se agarrava ao mundo, agora se tornou aprisionamento ao outro. Mais do que nunca, não podemos largar aquela barra de saia que tocou na ponta dos nossos dedos, apavorados diante da certeza do ficar só.

Foi-se o tempo em que estar apaixonado carregava a ilusão de ter encontrado o par. 

Parece que agora, apaixonar é encarregar o par da finitude e da decepção.

Simone de Paula - 26/08/2021

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Etiqueta

Me acostumei a ficar no cantinho, escondida, acoplada a um pedaço de tecido qualquer.

Já se foi o tempo em que eu era exibida e desfilava no bolso da calça ou na fronte da camisa. Ali eu era mais do que um anexo informativo de tamanho e modo de uso. Me bordaram com marcas e elas reluziam em mim. 

Mas o fato é um só, eu não sirvo pra nada, apenas sou exigida a ocupar aquele lugar.

Do lado de fora, é sempre mais agradável, pra mim e para o usuário. Quando eu fico por dentro, incomodo, pinico, só me mantenho até vir a tesoura e me cortar ao meio, ou bem rente à costura da roupa. Porém, uma vez colocada, costurada, atada pelos furos e pontos da linha, não tem como me esquecer. Sou sentida, percebida nos movimentos, ou mesmo em repouso. Os mais detalhistas, pacientes, tiram todo o fio que prende aquele retalhinho na borda e fazem desaparecer os fiapos.

 Porém, uma vez marcada a superfície, sou inesquecível. 

 Simone de Paula - 20/08/2021

 



sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Luto

Que esse luto negado de ontem, que ainda hoje segue aqui, não seja eterno, posto que não é chama, apenas escuridão.


Simone de Paula - 13/08/2021

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Outras vidas

Queria acreditar que todos aquele encontros estavam escritos nas estrelas ou nas escrituras sagradas.

Passou por religiões e seitas em busca de confirmações. 

Mantinha o laço atado, sem, no entanto, firmar o nó dos corpos. 

Nem sabia se o que sentia era o desejo carnal ou apetite maternal enlouquecedor. Só sabia que jamais deixaria escapar aquele instante que a tirou da vida pré-fabricada para sempre.

Assistiu as mulheres da família viverem o mesmo filme, tédio e obediência. 

Não entendeu que eram formas do além, que ela gostava de fazer existir, lhe mostrando o caminho para sair dali, desfazer o mesmo.

Delírios ou deleites ou devaneios, tanto fazia, queria ter e não ceder.

Fez de todas as formas para disfarçar, enganar o senhor do carma, se passando por boa moça nesta vida pra ganhar o gozo total na outra. 

Um dia, fez mais uma escolha para poder insistir na eternidade do amor não realizado. Mas foi um passo em falso, se confundiu, escolheu bem, sem saber que isso a levaria para outro patamar: ou vai, ou some!

Se assustou, mas não pode mais ignorar: já que quer manter o desejo, que ele encontre um meio melhor de ser experimentado.

Simone de Paula - 06/08/2021

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Um passo além

Acostumada com o treino estruturado que fazia desde a infância, Idália se viu tentada a experimentar um passo novo. As amigas da companhia de dança estavam animadas com a chegada de um coreógrafo, que tinha praticado com mestres do corpo em movimento. Algumas já estavam inscritas no workshop, que deveria acontecer em algumas semanas. Outras, pensavam em como organizar a vida para fazer um curso completo de formação com ele, fora do país. Ela sentia a agitação na voz e no corpo das colegas e um borbulhar na sua barriga, mas não conseguia decidir se as acompanharia nesse programa.

Guardou para si a vontade, mas toda noite, deitada na cama, fantasiava o que seria um novo exercício. Deixava a mente correr pelos devaneios até adormecer. Acordava com um gosto amargo de frustração, como quem desperta de um sonho bom e vê que não era a realidade.

Rondava a mãe com frases incompletas sobre tudo isso que preenchia a sua cabeça. Comentava que um coreógrafo famoso chegaria no mês seguinte. Depois acrescentava que as meninas da dança iriam participar da aula do final de semana, tentava sondar a opinião da mãe em busca de um empurrãozinho.

Na dança, um empurrão pode derrubar, mas Idália não lembrava disso.

Como a mãe não respondia suas falas soltas, entendeu isso como um veto. Aceitou que deveria se concentrar no que tinha. O treino ficou mais forte, ela mais dolorida, a imagem da coreografia bem executada era inegável. A determinação diante do não, buscou a excelência.

Enquanto ela se dedicava, as colegas se dispersavam e as broncas da treinadora eram constantes. Se sentia a aluna obediente, mas se isolava cada dia mais, porque não queria ver a alegria no rosto delas. Uma coisa nova ia acontecer para elas e Idália não queria afirmar para si mesma que ela não teria o mesmo.

A irritabilidade aumentava, ela não sabia como lidar com as emoções e se esforçava mais. Olhava feio para as amigas, dava respostas ríspidas, parecia amarga, quando isso não era comum nela. A treinadora notou a mudança e investigou o que se passava ali. Ela sabia que as meninas iriam experimentar o método novo e as incentivava. Mas não foi capaz de se antecipar ao acidente daquela tarde de treino. 

Idália, resolveu fazer um passo que era desafiador para ela e se desequilibrou. Nem precisava ser psicólogo para entender que ela seria a única a parar a si mesma. A socorreram e não era nada grave, mas ela precisaria ficar 2 meses sem treinar. Sob o rosto entristecido, o olhar brilhava fortemente.

A treinadora então sugeriu a ela que continuasse a ir às aulas, mesmo que não fizesse os exercícios. Com o tempo livre na sala de dança, procurava na internet informações sobre o coreógrafo, o método, vídeos e mais vídeos dos seus workshops. A mente se deslocava para aquele universo paralelo e só voltava quando ouvia a voz mais alta da professora corrigindo as colegas. 

O pensamento então acompanhava seu desejo e inventava modos de sair daquela proibição em que tinha se metido. Escreveu para a organização do evento, perguntando se ela poderia participar como ouvinte, pois estava machucada. A justificativa para si mesma era: 'se eu não dançar, não desobedeci.' Recebeu um sim como resposta, e não disse a ninguém, pois não queria ser o centro das atenções das colegas, que fariam uma festa em saber que ela finalmente tinha decidido ir ao programa com o coreógrafo gringo.

No dia do evento, saiu de casa sem muitas explicações. Encontrou com as amigas na entrada e a reação delas era exatamente como ela tinha imaginado. Entraram no salão e ela foi orientada a ficar num canto, pois não poderia participar com o corpo machucado. O coreógrafo cumprimentou a todas, sorriu para ela e começou a bagunçar todo o espaço.  Chamou-a para junto, pois tinha mudado de ideia quanto ao treinamento que deveriam fazer.

Conversou com o grupo de maneira informal. Contou um pouco de sua história e as dores de ter que se enquadrar nos métodos tradicionais. Além disso, expressou a angústia que vivia a cada método não tradicional, pois tinha se acostumado a ter coreografia estruturada e a improvisação lhe parecia quase impossível. Envolvia as meninas com a voz enquanto mostrava o corpo ocupando o espaço da sala. A música veio quase imperceptível. Os corpos das meninas pareciam se soltar, deslocando-se no espaço. Idália mexia olhos, cabeça e pescoço em busca de uma visão melhor do bailarino. Ele circulava o ambiente, tocava nas meninas, ora no cotovelo de uma, ora no joelho de outra e a cada toque elas moviam o corpo instantaneamente. Incluiu Idália, mesmo com a perna imobilizada. 

O tempo ia passando sem que ninguém percebesse. Ele parou de contar sua história e chamou a atenção das meninas para as notas da música que já preenchia o ambiente. Cantarolava e fazia trejeitos com o corpo e o rosto. Algumas respondiam da mesma forma, outras respondiam com surpresa. O corpo de Idália se mexia cada vez mais para acompanhar aquela movimentação imprevisível.

De repente, silêncio! Ele parou, firme como um soldado, olhando sem foco para um além dali. Todas ficaram sem saber o que fazer. Ele ficou parado muito tempo. Algumas seguiram com exatidão a imobilidade dele, outras esperavam inquietas o que aconteceria, Idália levantou e se apoiou num pé só. Ela, tal como ele, era capaz de ficar longo tempo parada, como uma estátua. 

Num giro ininterrupto ele as surpreendeu novamente. E desta vez, ele passou a selecionar uma a uma para se apresentar. Pediu que não dissesse nada, mas mostrasse sua característica mais marcante com o corpo. As meninas inventavam modos de expressar algo e ele usava adjetivos que pudessem representar o que elas diziam. Quando ele acertava, passavam para a próxima. Na vez de Idália, que tentou não participar por estar com a perna imobilizada, ele a definiu como engessada. Mais do que uma condição pontual, ela confirmou que isso era sua principal característica. 

Ao final do exercício, quando todas já tinham sido definidas por suas particularidades, ele moveu cada uma delas para um canto da sala e pediu que fizessem aquilo que tinham feito, todas juntas, sob uma música completamente atordoante. Idália, engessada, sentada, parada, junto às colegas. A coreografia era gravada pela assistente e acompanhada por ele, que as imitava uma a uma, causando estranhamento e graça. 

O ambiente já tinha sido completamente tomado pela energia vibrante que ele tinha construído. Mais uma vez o silêncio, e pediu que todas sentassem no chão, incluindo Idália, que foi ajudada pelas amigas. As luzes ficaram bem baixas, numa penumbra que permitia intimidade, vulnerabilidade e confiança. Ele colocou no centro do grupo uma flor e pediu que elas dançassem aquela flor, que traduzissem aquela imagem em movimento. Disse que elas teriam tempo para sentir e depois fazer, que a música que começariam a ouvir, e a luz fraca com que o ambiente estava iluminado, as ajudaria a achar cada uma o seu movimento. Permitiu que o tempo passasse. Cada uma delas foi se movendo e criando sua manifestação. A assistente acompanhava o exercício de longe, com a câmera e ele olhava sem interferir.

Idália fechou os olhos e deitou no chão. Espalhou pernas e braços e começou a se mover, se contorcia, esticava, enrolava, parecia uma semente brotando. Parecia fazer esforço demais, pois a impossibilidade do apoio da perna impedia maior agilidade. Quando todas estavam em transe completo nos seus movimentos, a música cessou e a luz se apagou completamente. Todas pararam.

O bailarino voltou a falar, pedindo que todas sentassem em meia lua, ligou o telão e elas puderam ver os movimentos que fizeram durante todo o tempo. Elas percebiam o que o espelho ou a treinadora não podiam revelar. Idália se impressionou com ela mesma, gostou do que viu, se sentiu segura com a improvisação, com sua possibilidade criativa.

Fim do dia, se despediram e foram embora calados. Não cabia palavra ali.

No dia seguinte, o workshop funcionou como um treinamento, com técnicas, conversas, ensinamentos, tanto das competências formais como das experimentações inusitadas. Idália participava com um pé só, ou sentada, não se impedia mais de agir, mesmo com o seu engessamento.

Na saída do curso, entrou no carro e disse para a mãe que iria passar um ano fora, acompanhando o trabalho do coreógrafo. A mãe, no mesmo silêncio de antes, agora não parecia dizer não para Idália, tudo tinha mudado.

Simone de Paula - 30/7/2021 




sexta-feira, 23 de julho de 2021

kd?

Onde foi parar aquilo que me acordava, me fazia acreditar no melhor do hoje?

Nem é uma questão de procura ou busca, mas a constatação que algo se impôs e levou o que existia aqui, como um patrimônio, ou uma verdade sobre mim.

Astros e estrelas me mantinham firme na certeza de que a vida era desafio e o impulso constante podia até retardar a antecipação, mas o tempo é certo e com ele tudo está no lugar que deve. 

Será que volta? Espero.

 

Simone de Paula - 23/07/21


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Nocaute

Desde pequeno Lúcio era dado às lutas. Brigava na rua, provocava sua mãe, ofendia a irmã, tudo para provar a sua posição dominante. 

Crescido, segurava a raiva todos os dias para não acabar na cadeia. Mal sabia ele, que numa madrugada fria de julho, estaria tombado na lona. Tomado por lágrimas e sorrisos, foi aprisionado pelos fios invisíveis do amor. 

Simone de Paula - 16/07/21



sexta-feira, 9 de julho de 2021

Fantasminha sem noção

Quem disse que fantasma é vulto branco ou preto? Ontem mesmo eu vi um vermelho. 

Olhei em direção à cozinha e lá estava ele, pairando no ar. Uma elipse vertical, achatada e vermelha. Sinceramente, sem expressão, nem personalidade, só pairando em cima da mesa.

Pensei se eu teria que fazer alguma mandinga pro bicho cair fora da minha casa, mas deu preguiça, porque nem me impressionou aquela invasão de propriedade.

Dormi. 

No meio da madrugada, lá pelas três horas da manhã.... Mentira, eu já tinha levantado da cama. Se fosse na madrugada, pelo menos teria conexão sobrenatural, segundo cultuadores do terror. 

Voltando, logo cedo, o parceiro de cama dormindo, sonha com uma sirene alta, vermelha, brilhante e acesa, lá pelas bandas da cozinha. Pra ele, estava acontecendo um grande evento por lá e era o fantasma!  É aqui que eu colocaria um emoji de susto e admiração se eu estivesse lendo isso. Só pra causar uma emoção, porque realmente o sonho foi mais intenso do que o fantasma em si. 

E as aventuras oníricas não terminaram na balada kitchEn. O Leandro, no sonho, olha para o meu lado da cama e vê, sentada em cima de mim, rindo, a Kátia acupunturista. Sim, ela era a djin djin (será que se escreve assim, aquele nome oriental pra figuras sobrenaturais?). Acordou assustado e pensou: tinha fantasma mesmo.

Depois de tudo isso, me diz: dá pra levar fantasma a sério?


Simone de Paula - 09/07/2021



sexta-feira, 2 de julho de 2021

Inveja

O olho que pescou o olhar furtivo, que mirava os olhos brilhantes de quem parecia feliz, despertou em mim a inveja. 

Não foi mais do que uma piscada, o foco foi decidido e preciso. Isso indicava a abertura do desejo. 

Me perturbou o que em mim viu, o que não deveria ter visto: o olhar e o olhado, me jogando do instante presente ao momento eterno do passado. 

"Quem mandou ver?", perguntava meu pensamento alarmado. "Não fui eu", pensava a minha consciência em resposta àquela gritaria mental. 

Passou, mas não desapareceu. 

Nos dias seguintes, os flashes da memória daquele olhar me acompanhavam, trazendo como sombra a inveja. Já era tempo de acabar com aquilo, tomar uma decisão, me livrar do que se dizia incessante. 

Olhei! 

Me desloquei do lugar invisível de quem assiste, passivamente, a imagem vívida. Recordei que eu também mirei, vi o olho, o olhar e o olhado, sem ser convidado, mas ativamente determinado. Não recuei da minha parcela de prazer, que usou os corpos alheios, expostos nas suas trocas, para compor a minha satisfação. 

Curti!


Simone de Paula - 02/07/2021





sexta-feira, 25 de junho de 2021

Inverno

Este ano está frio. 

Não o frio dos últimos anos, que parecia gelar mais meu coração do que a superfície da minha pele. 

Não o frio da espinha, frente ao medo do presente sombrio.

Não o frio da sua ausência, mesmo diante de mim.

Não o frio da apatia, que engoliu a utopia que me fez chegar até aqui na vida.

Este ano está frio.

Frio, de graus descendo no termômetro.

Frio, que o corpo tenta evitar água que não seja em forma de chá ou sopa.

Frio, que apela seu corpo quente junto ao meu.

Este ano está frio.



Simone de Paula - 25/6/2021

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Arquitetura de luz

Não tem 'e se', nem 'e quando', é isso aqui mesmo.

Estamos vivendo isso, não é uma ocorrência imprevista que entrou no meio da linha do tempo, é a linha do tempo.

Nossa excessiva vontade de positivar a vida, programar o percurso, estabelecer as metas e não acreditar no destino, nos colocou diante do inconformismo com o fato inegável: é isso aí, pandemia aqui!

Na minha mente os espaços sombrios convivem com as iluminuras da luz do sol da janela acompanhada da luz exaustiva da tela do computador. Me falta a noite escura, em que meus olhos mal conseguem ver as formas da rua e das casas espalhadas pela cidade.

Certo fim de tarde, a energia elétrica acabou. Vi escurecer, experimentei as sombras e a chama da vela durante o jantar. Foi um alívio poder desconectar.

Hoje é sexta-feira, dia longo, noite clara, mas não de lua.

Notícias boas, ruins, ou repetidas. Tudo sempre na mesma, só a impressão de uma grande mudança para o futuro que nem se sabe como será. 

O amanhã não cabe a mim escolher, ele chegará.


Simone de Paula - 18/6/2021

 

https://www.gsd.harvard.edu/2020/04/the-global-pandemic-has-caused-an-unprecedented-reckoning-with-digital-culture-and-architecture-may-never-be-the-same-again-and-thats-okay/

 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Chegamos a Marte

Qual dos deuses decidiu meu destino?

Que gênio é esse que me marcou nessa existência?

Guerra limpa dos feitos meticulosos, recortados pelo saber disciplinado.

Passo sem fim de uma estrada previamente pavimentada.

Ei, Marte, deus da ação, aqui me tens ao teu dispor!


Simone de Paula - 11/06/2021




sexta-feira, 4 de junho de 2021

Matches

O tempo corria, mas a espera fazia tudo parecer uma eternidade. 

A ansiedade tomava conta de cada sopro de ar que entrava e saia pelas narinas de José. Por baixo da pele entorpecida pela concentração, a pilha de nervos estava tomada de tensão.

Na mesa do bar, girava o copo sem vontade de beber mais nada. Já tinha tomado o bastante, não sentia mais vontade nenhuma, apenas pensava em acabar com aquele estado de suspensão. 

Queria acender o cigarro, mas ali dentro era proibido. Soltou a mão do copo e girou o maço que tinha empilhado com a caixinha de fósforos, como se o movimento e o cheiro leve que vinha dali pudessem substituir a tragada que o manteria mais um tempo no aguardo. 

Abriu o maço e segurou um cigarro entre os dedos. Colocou nos lábios, quase gozou. Tirou da boca e ficou olhando, analisando cores e formas. O que não podia fazer era acender, o resto, podia fazer tudo. Sentiu os olhares dos garçons e das pessoas em volta. Todos diziam com os olhos que ele não deveria nem ameaçar, que era bom guardar novamente aquilo no pacotinho que repousava na mesa, abandonado. 

José resolveu fazer o contrário, tirou todos os cigarros do maço e começou a alinhá-los. Tentava montar objetos com aqueles bastonetes brancos como se fossem peças de lego. Esse jogo tomou tempo dele e o relaxou de fato. Resolveu incluir na brincadeira os fósforos. Antes de despejar todos os palitinhos na mesa, fez uns batuques na caixinha, remexeu o corpo, quase ficou feliz, quase se transportou para outro lugar.

Despejou tudo, chegou a sacudir a embalagem como se algum palito tivesse ficado esquecido lá dentro. Alinhou a caixinha com o maço, como se fossem containers no cais. Espalhou tudo, tentou formar palavras, empilhar o máximo de palitos, colocá-los de pé. Tirou recheio do cigarro para tentar embutir um fósforo ali dentro, fazendo quase uma bombinha. Perguntas iam surgindo na cabeça dele sobre o que aconteceria, se isso ou aquilo. Com aquele material todo, ele ficou muito tempo ali. Se concentrou de verdade e o corpo relaxou de fato.

De repente, parece que voltou o José da espera novamente. Tensão subiu. Pilha de nervos ao lado das pilhas de fósforos e da fila de cigarros. Tentando recuperar a calma, perguntou ao garçom se ele tinha mais uma caixinha de fósforos para ele continuar sua arte. Recebendo um sim como resposta, se animou e em posse a mais ripinhas de madeira com explosivo na ponta, montou uma estrutura de fogueira. Já era junho e ele lembrou das festas animadas da infância, adorava ver o fogo queimando, olhar balão subindo, soltar rojão. Ele era fogo!

Embalado pelas memórias, reconstituiu o cenário do passado. Tomado pelo prazer em relembrar o que sentia ao ver o fogo, ter nos olhos as labaredas incandescentes, nos ouvidos o crispar da madeira, hipnotizado por todo aquele desejo de ser transportado para aquele lugar mágico da infância, riscou um fósforo e acendeu sua mini fogueira em cima da mesa. Não se deu conta que ali tinha papel e tecido, além de bebida alcoólica, que ele tinha derrubado e encharcado a mesa. Sim, virou um fogaréu. 

Os outros fregueses do bar saíram correndo, o garçom veio com com água para apagar, gritaria e confusão. E José ria sem parar. Tinha causado um frenesi. Pagou a conta, se desculpou e saiu. Estava tão tranquilo e realizado que por alguns momentos esqueceu a pressão que tinha sentido pelas últimas horas que esteve sentado na mesa do bar. 

O diagnóstico de uma doença grave, sem saber como o tratamento seria, ou mesmo se morreria repentinamente nas próximas semanas, deram lugar ao menino travesso que fez arte, e como castigo, foi expulso do lugar onde nem queria mesmo estar, mas estava por não ter mais para onde ir. Depois de botar fogo em tudo na sua frente, percebeu que ele mesmo não tinha mais tempo para esperar e que deveria escolher o que faria com a vida que ele ainda tinha.


Simone de Paula -04/06/2021




sexta-feira, 28 de maio de 2021

Outono

O dia amanhece e já é quase inverno. Demora até o céu ficar claro, mas vale a pena pela qualidade do azul que se forma, rodeado do alaranjado que se projeta nas formas dos prédios espalhados pela rua.

Hoje ainda é outono, mas meu corpo já anuncia um tempo de frio e recolhimento, faz parte de mim, dos ciclos da natureza do mundo.

Gosto dos meios termos. Outono e primavera me agradam mais do que inverno e verão. Mas, mesmo preferindo as transições, menos intensificadas das polaridades, é impossível não passar por elas. Para contornar o círculo todo é preciso passar pelos polos.

Temperatura baixa, tempo seco, clima frio, tudo converge para o desejo por corpos, algo que nos eleve desse estado que reflete solidão e tristeza. Não é exatamente isso, mas simula. Se busca intimidade, acolhida, calor. Essa é a melhor parte, querer ficar junto.

Vivemos tempos aflitos, que fazem arder nossas almas. Medos das perdas, inevitáveis. Pressa pelo futuro próspero, incerto pela própria lógica. Solitários no nosso individualismo, caprichoso pela busca de prazeres exclusivos. E o inverno chega, nos abate, nos derruba e sussurra baixinho nos nossos ouvidos: escolhe seu canto!

Enquanto escrevo isso, o azul quase cobalto ficou mais suave, clarinho, e o laranja, fechado, se tornou mais vivo: o sol acende no céu.

Bom dia!


Simone de Paula - 28/05/2021

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Desespero

Contrariando a minha espera permanente pela sua chegada, sou tomada pela força invasiva de você em mim.

A cabeça foi invadida pelos pensamentos mórbidos, coloridos com a intensidade de Almodóvar, mas na escuridão de Tim Burton.

O corpo agitado, controlado por essa camisa de força que é a racionalidade, só te faz mais potente.

Quero sair daqui! Quero você fora de mim! Como faz?

Fujo e te carrego comigo, não só como uma sombra que me acompanha, isso seria melhor. É pior, é você no centro do meu peito, espalhado pelas veias, tubos e cabos, todas as formas de transmissão de informação que possa ter em mim. 

Pane geral, olho para fora e grito para dentro. Te expulso, mas os pulsos me descontrolam mais ainda. Não sou dona de nada em mim. Sou tua!

Não é o que falta que me aflige, mas o que me entope de você. 

Quem te enfiou aqui? Veio devagar, ocupando os espaços vazios e me tomou por inteiro. E agora, eu nesse desespero, não posso mais responder aos seus pedidos repetidos e vazios.

Rasgo a pele, furo os tímpanos, racho o crânio na parede. Nada funciona, ainda resta você em mim. 

Preciso de ar, espaço que seja ocupado de circulação do invisível, faxinando a via principal e, quem sabe, as extremidades mais escondidas. 

Te pedi aqui e agora, mas não te quero mais. É egoísmo?

Refém sem chance de fuga. Resgate?

Negocio. Será? 

Antes fosse possível desistir. Não, é você em mim. Não há desistência, só insistência na sua inação.

Suportar o estado de sítio. Esperar, drenar. 

Livre!

 

Simone de Paula - 21/05/2021

sexta-feira, 14 de maio de 2021

As maçãs de Edimburgo

Era Edimburgo e tinha maçãs.

A surpresa estava por toda parte. E eu, rodeada do vento gelado e úmido de um final de outono.

As formas descortinadas na cidade iluminada pelas luzes da rua e enegrecida pela superfície molhada do asfalto só comunicavam insistentemente isso: é Edimburgo. A repetição dessa frase, vinda do mais lúcido da minha mente, vinha em auxílio ao não reconhecimento de nada que estivesse diante dos meus sentidos. Tudo era mistério mesmo que estivesse declaradamente exposto.

A excitação era atravessada pelo frio. A ansiedade se conformava na pressa do caminhar. A fala não tinha o que dizer, mas transbordava com frases inócuas, referências banais, apenas buscando sair do desconforto.

Rua, prédio, porta, chave, sala de estar. Ufa, cheguei!

Exploração do território de 60 metros quadrados confortáveis e aquecidos.  Investigação de armários, em busca de chá para esquentar o interior do corpo que deveria se manter em aproximadamente 37 graus.

A ansiedade baixou, o corpo acostumou, a cabeça decifrou: estava tudo ali, me entendia naquele universo estranho, com todos os elementos conhecidos necessários para aquela noite de descanso.

Exploração II, comida! 

O anfitrião gentil tinha deixado pão, leite e maçãs!!! Que curioso, que excêntrico, que prazer! Quem deixa maçãs para o café-da-manhã? 

Nem todos tinham gostado dessa opção, e saímos em busca de mais. Eu só pensava nas maçãs. O que eu comeria com elas? Sim, iogurte e flapjack, aquela gororoba de aveia e mel que só pode ter sido inventada por elfos, tamanha suavidade ao paladar.

Os dias seguiram e eu, nas maçãs frias e chá quente. Me pergunto de onde veio o gosto pelas maçãs. Talvez as histórias da Branca de Neve. A oferta na infância foi a mesma que com outras frutas, então, acho que não foi por aí. Confesso que essa queda pela maçã, que veio desde Eva, também tem uma carga de fazer diferente do comum. Mas, seja por isso ou por outra coisa, realmente é uma fruta que me seduz. 

Maçã do amor, cozida, assada, picada, em compota, todas elas. No entanto, o prazer de enfiar os dentes naquela carne firme, experimentar o suco úmido e doce que acompanha a massa seca e neutra, tem um efeito muito erótico. Misturada com iogurte, que frescura! Acompanhada de chá, que aconchego!

Bem, mas voltando a Edimburgo e seus dias iniciados com maçãs, me lembro que tenho que voltar.

Simone de Paula - 14/05/2021




sexta-feira, 7 de maio de 2021

O silêncio das esferas

Podia ser um sonho, thetahealing, ou imaginação ativa, mas era mesmo o espaço.

Imenso vazio, habitado por incontáveis corpos fixos e móveis. Silenciosos. Que seguem seus ritmos com a tranquilidade da eternidade. Sem som, sem cheiro e nem textura, apenas uma imagem, que só se vê pela teimosia humana de querer encontrar o mais-além da sua humanidade: deus.

Se a ausência de som absoluta nos permite ouvir nossos órgãos funcionando, o que seria possível ouvir das esferas celestes? O planeta tem som?

Stockhausen compôs para as estrelas, criou música para as constelações. Já que as vemos, por que não ouvi-las?

O que é possível inventar além dos sentidos, através do sensorial, para tocar o sensível?

No silêncio do universo particular de cada um de nós, essa é a arte de viver.


Simone de Paula - 07/05/2021

 



VOZ DO SILÊNCIO

O silêncio brada vazios inconfessos
Num linguajar da emoção em espera
Desatados da tribulação tão megera
Tecendo sensos selvosos e travessos

No silêncio escoa solidão em esfera
Soprando suspiros turvos e espessos
Dos enganos emudecidos e avessos
Do tormento, ásperos, tal uma tapera

É no silêncio que se traga a memória
Desfolhados das sílabas da estória
Do tempo, despertando os momentos

Tal o vento, o silêncio é uma oratória
Que verborreia o pensar em trajetória
Nos lábios lânguidos, frios e sedentos

© Luciano Spagnol
Poeta do cerrado
Setembro de 2017
Cerrado goiano


sexta-feira, 30 de abril de 2021

Migalhas

Plaft!

O som seco representava a queda do saquinho de mini-pães de queijo caindo no chão.

Laisse colocou o focinho no saco da forma mais veloz que conseguiu. Joca, tranquilão, como sempre, abaixou pra pegar. Não olha pra ela, nem notou o olhar dela que se dividia entre o cheiro atraente e a submissão ao dono. 

Ela quer, não sabe como pedir. Ele tem, e decide se quer dar ou não.

Sai andando, ela atrás, louca pra conseguir um pedaço do petisco. Ele abre o saco, faz barulho, pega um, morde, olha para o horizonte, dá mais uma mordida.. Enquanto isso, Laisse anda meio de lado, abana o rabo, não olha mais nada a não ser a mão dele. Aliás, mão e boca, seguindo aquela bolinha amarela pálida que despertou os demônios da cachorrinha. 

Na perseguição cega ao pão, e a confiança completa no dono, nem olha para a rua quando atravessa, correndo o risco de atropelamento num caso desses. O dono, sabe que ela quer, consegue ver pelo campo de visão todos os movimentos dela. Mas gosta de controlar a situação. Ameaça dar um pedaço, de forma dissimulada, só pra mantê-la o seguindo. 

Finalmente ele joga um pedacinho pra ela. Ela come, nem sabe o que entrou na boca, nem sabe que gosto tinha. Tão sedenta pelo que tinha desejado, engoliu sem nem perceber. 

Em um micro segundo, lá está ela de novo, olhando em desespero para o dono, olhar fixo entre a mão e a boca, na esperança de que em algum momento, mais um pedacinho, ou uma migalha, caísse no chão pra ela pegar.


Simone de Paula - 30/04/2021

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Extremos

O branco bem branco, da neve do pólo, é esse que eu quero.

Ou o preto fechado, a tal asa da graúna, é isso que eu espero.

Anseio o extremo, decidido, desenfreado, sem espaço para titubear.

O branco bem branco, sem nuances, sem olhar que duvide que aquilo  É o branco.

Na escuridão total, do fundo do buraco do centro da terra, nem me venha com micro brilhos da lava incandescente, É breu.

Promessa feita, último passo antes do abismo, fim da linha, fim da terra, é lá que vou estar.

Mergulho direto nas profundezas do oceano, em que os peixes são transparentes, cegos, não precisam de sentidos, só totalidade absoluta. Me ache fusionada com o nada.

Instante único, do além do último limite, mor(r)o lá.


Simone de Paula - 23/04/2021


foto: Michael Schlegel



sexta-feira, 16 de abril de 2021

Cigarettes

Eu não diria que foi engraçado, longe disso. Mas foi como podia, ou melhor, como devia ter sido.

Ainda que  o sexo nunca tenha sido a nossa, a decisão foi selada como o cigarro bem fumado no after sex.

Desligamos, decididos, era um fim ou não, mas era um ponto dando basta a tudo que veio antes.

Foi a dança mais sincronizada que tivemos. Nem chá,chá,chá, nem bolero, mas um passo após o outro, no ritmo lento e preciso, calculado e arriscado na mesma medida: fazia sentido.

Estava tudo tão presente, sem nada que sobrasse, até os corpos se encontraram e se moveram.

Desvio da rota. 

Valeu!

 

 

 

Cigarettes after sex 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Stand up

Hoje o silêncio.

Ainda em pé, parada diante de ti, esperando.

Esperando que você pegue o que te ofereci, mesmo que sem ter pedido.

Tentei vias diversas de fazer chegar às suas mãos aquilo que levava mais do que o imaginado.

Mais do que o imaginado, só você poderia ver além daquilo ali.

Não invadi o espaço que a mim não pertencia, aguardei o seu passo decidido.

Não veio, eu vim. E fui, hoje eu fui.


Simone de Paula - 09/04/21

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Destinatário: Amor

Ainda não decidi se essa missiva seria carta ou bilhete. Só sei que optei, finalmente, por colocar o destinatário no seu devido lugar.

Te escrevo há muitos anos tentando acertar as palavras que fariam você se curvar, ceder da eterna posição de quem dá as cartas e termina o jogo, antes mesmo de termos um vencedor. E, pela lógica, ganhou aquele pra quem bastou o que tinha sido jogado.

Mas não era nada disso que eu queria te dizer. Vamos voltar ao começo: carta ou bilhete?

Bilhete. Pode ser curto. Não é nada demais a não ser um detalhe, um lembrete, uma coisinha que não pode passar em branco.

Amor, não sei porque insisto em te colocar no lugar de outro, muitas vezes no lugar do pai, sabe-se lá o que é isso: genitor, protetor, orientador, mito, deus? Bem, mas te escrevo para dizer, te quero! Só não sei se te posso.

Ficaria bom? Não. 

Nem sei como te escrever, Amor, porque as palavras são banais diante dos sentimentos intraduzíveis que sinto diante de ti, todas as vezes, arrebatada, disposta para tentar te alcançar.

Confesso, o que eu queria mesmo é que você me ensinasse a habilidade com as flechas. Estar no seu lugar, fazer o que você faz, sentir prazer no match bem mal feito, em que as partes em questão se desencontram na tentativa de fazer dar certo a promessa da união.

Inveja, é isso. Um dom como esse, quisera eu. Poder experimentar sem precisar me deter tempo além do deleite dos primeiros lampejos da inspiração. 

Me dá! Só quero um dia de você. Todo, completo, inteiro. Seu dom em mim e você arrebatado assistindo meus comandos. Me dá!

É, acho que um bilhetinho assim ficaria bom. 

 

Simone de Paula - 02/04/2021

 


 



sexta-feira, 26 de março de 2021

FDP

Para um filho da puta, só resta uma puta para ser sua mãe.

Era isso que ele era, um filho da puta. Não que tenha nascido assim, nem que tenha sido parido por uma puta. Mas, quando se deu por gente, foi assim que se viu. 

Uma rejeição, cedo demais. Não que não nos aconteça o mesmo, porém, lá dentro dele, era particular.

Um abuso, vindo de onde menos se espera, na confiança e na intimidade. Nem sempre é o mesmo pra todo mundo, tem a questão da sorte, quem tira cara, coroa ou curinga?

E eis o filho da puta! Só pode, porque para não encontrar contraponto pra rejeição e nem proteção ao abuso, só pode ser um abandonado, trocado pela moedinha que vale um litro de leite e o gozo do outro. 

Mas daí, já foi! 

Ele encontra em cada puta a visão da santa mãe, mas não consegue ter mais do que o corpo e a mão aberta à espera da nota que paga o breve encontro imaginado. Busca em cada mulher aquela que por trás da imagem de puta, deveria ser a mãe.

Encontrou os litros de leite, nas mais variadas formas, até mesmo no leite de vaca. Descolou moedinhas para ter a paga no lugar do outro. Não precisava de mais nada, porque já tinha as vias de tê-la só para si. Quando chegou bem perto, teve medo, medo de perder a busca. Jogou as moedas fora, esvaziou as garrafas de leite, se abandonou, quem sabe assim a mãe viria como mãe, mesmo repartida entre outros. 

Fez isso tantas vezes isso, que um dia viu que a mãe não vinha, esperou, definhou, entendeu que o que tanto esperou morreu. Não tem mais como ficar buscando em substitutas aquela que era a matriz desejada. Com a puta morta, morre o filho da puta. O que resta agora? Quem vem no lugar?

Simone de Paula - 21/03/2021

Obs.: história verídica que só podia ser contada a partir do lindo filme Rosa e Momo, de Edoardo Ponti, com a diva Sophia Loren.


 

sexta-feira, 19 de março de 2021

Ãh?!?

- oi?

- quê?

- como?

- ãh?

- oi?

- quê?

- como?

- ãh?

dúvida ou mal-entendido?

a natureza nos faz falar, desencontro.

a arte faz poesia, sublime sublima.

 

Simone de Paula - 18/03/2021



 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Rio de lama

O céu escurecia, atravessado pelo fim de tarde. Não se poderia dizer se era mesmo o sol que se escondia, marcando a chegada da noite, ou as nuvens que anunciavam a forte chuva, típica da estação. No olhar disperso de Caetano, isso pouco importava. 

Os remos se moviam lentamente, enquanto suas mãos faziam o esforço necessário para empurrar o barco através do lamaçal. Perpassar aquele rio de lama não era tarefa diária, mas acontecia nesse dia. Homem feito, seguia adiante. 

Se uma fotografia fosse tirada naquele momento, poderiam ter dito que a imagem trazia certa beleza melancólica. Mas isso seria apenas o olhar externo ao que verdadeiramente se passava.

Tudo começou anos antes, quando Caetano ainda era um jovem, obediente aos mais velhos e temente a deus. A vida já estava escolhida, sem que isso pudesse ser uma questão a ser pensada. A vida. 

O destino estaria traçado e seria descoberto com as situações que chegassem até ele. Olhava para frente e via os homens com suas famílias, seu trabalho na terra e as caçadas periódicas. Olhando para trás, via meninos muito pequenos, brincado, felizes à espera de tomarem o posto dos homens daquela vila. Caetano era entre eles, estava de passagem, contava já com seus 15 anos e sabia que muito em breve aquele estado transitório teria terminado. Porém, enquanto ali se encontrava, nada podia fazer para antecipar o que viria de qualquer modo.

Silencioso, fala não tinha. O barulho dos pássaros e do vento, o fluído da água, o riso escancarado das crianças e o ritmado som da tarefa, era isso que se ouvia. Palavra não tinha. 

Durante o dia, o trabalho. Tinha força pra mexer com a terra, com a madeira e com a água. Quando precisava mexer com fogo, tarefa que era destinada às mulheres, era mais cuidadoso. Sabia colocar força nas coisas, mas não era habilidoso com a sutileza das labaredas. À noitinha, ficava olhando pra cima e esperava as estrelas forrarem o céu. Era seu momento de encontro com deus. Olhava e esperava. Quando a noite estava plena, se banhava, comia e o sono trazia toda a sorte de sonhos para aquele jovem.

Não contava a idade, mas sabia que ainda estava crescendo pelo tamanho do pé. Os chinelos insistiam em  diminuir e ele ralava o calcanhar no chão áspero. Também perdia a roupa. A camisa já agarrava no braço e a calça só chegava no meio da canela. Pedia pra mãe fazer um remendo enquanto não ganhava roupa do irmão mais velho.

Começou a ver as estrelas caindo do céu. Surpreso, pensou, de onde tinha despencado aquele pedacinho de luz? Se pudesse sair do povoado, sabia que era atrás da estrela que ele ia. 

Perguntou para o pai, se era comum estrela cair. O pai resmungou sem se fazer entender direito. Caetano olhou para a mãe que recolhia os pratos da mesa e sorria para ele. Uma levantada de sobrancelha e pareciam ter se entendido: o pai não tava bom pra conversa.

Aquela noite passou e no dia seguinte, se demorou mais observando o céu. Notou mais uma estrela riscando o azulão que ocupava o horizonte. Nem notou direito se tinha lua, mas a noite dele estava iluminada. Entrou na casa pensando no caminho que a luz fez lá de cima até o chão. Perguntou pro pai novamente: a estrela é feita de fogo? E o pai olhou nos olhos dele, sem saber nem porque ele tinha feito aquela pergunta, e disse: não! A mãe dessa vez foi quem levantou a testa, torceu a boca e depois voltou a sorrir para o filho.

Naquela noite, Caetano teve sonhos com luzes multicoloridas atravessando seus olhos. Vinham de todas as direções e passavam pelas órbitas oculares. Ele sentia os olhos virarem, se remexerem ali mesmo no meio da cara. Acordou diversas vezes e quando dormia de novo, lá estavam as luzes passando pelos olhos novamente.

De manhã cedo, trouxe os ovos pra mãe e ainda com a xícara de café na mão, encostado na pia da cozinha, perguntou: mãe, o que é sonho?

A mãe passou a mão pelos cabelos e rosto do filho e respondeu: os mortos falam com a gente nos sonhos, eles contam o que eles sabem sobre o futuro. 

Ele coçou a cabeça e passou o resto do dia disperso, pensando na resposta da mãe e no sonho, tentando entender o que queria dizer aquilo do futuro. Naquele dia, o trabalho não rendeu e o pai lhe deu uma bronca. Ele aceitou quieto e durante o jantar não disse nenhuma palavra, não queria deixar o pai mais bravo.

Se o jantar foi silencioso, a noite de Caetano foi num barulho ensurdecedor. Dessa vez não viu luzes vindo do céu, mas sons saindo debaixo da terra, dos troncos das árvores e do seio das pedras. Ele não via nada, mas os ouvidos eram invadidos com barulhos potentes. Tinha o ronco da terra, as batidas fortes da madeira e o som agudo das facas que se afiavam nas pedras. Caetano sentia o corpo pulando na cama, os pés balançando e batendo como se ele estivesse dançando. Mas tudo isso só acontecia pra ele, dentro dele, ninguém tinha acordado quando ele despertou assustado com um estampido de fura-tímpano. 

Mais um dia e ele aflito perguntou pra mãe: mãe, como a gente sabe o que o sonho tá dizendo? A mãe riu e disse: menino crescendo tem noite mal dormida, agitada, é o corpo que quer esticar.

Ele saiu correndo pra roça, era dia de trabalhar duro com a enxada e o pai ia ficar de olho nele. Tentou não pensar no sonho, mas os ouvidos captavam os sons que ele tinha ouvido. Na mão de todos, os barulhos que ele tinha sonhado estavam ali. Tentou fazer combinar o som agudo, com a lâmina na pedra, ou o soco surdo da enxada na terra. Percebeu que o que os mortos tinham falado era uma coisa que ele conhecia, ficou quase feliz porque parecia entender um pouco o que era o futuro.

Voltou pra casa e quase perdeu a janta olhando o céu. Estava tão agitado que ficou lavando a louça com a mãe. Deitou e se remexeu na cama tanto que o pai mandou ele ir pra fora até quando estivesse pingando de sono e só então voltar. Ele se esticou no chão, olhou céu e lua, tentou ver a forma das estrelas e acariciava a terra seca com a palma da mão. Adormeceu e um sonho o tomou de assalto. A água do rio levantava como um jato e circulava no corpo dele todinho. Era uma molhança gostosa. O corpo parecia derreter, afundar na terra, virar planta e voltar a crescer até o céu. A mão encostava na estrela, era de fogo e gelada ao mesmo tempo. Sentiu um choque e acordou. O dia já estava clareando.

Os sonhos continuaram acelerando o coração e a cabeça de Caetano. Todo dia tinha pergunta pra mãe e ela respondia sem muita atenção. Porém, ela era de longa tradição de mulheres que interpretavam os sinais do destino. Ela ficava intrigada como o menino tinha acesso aquilo. Pensou que como não tinha nascido menina na família, o dom tinha vindo nele. Mas pra ela, homem não carrega magia dentro de si. Foi se preocupando, mas esperou que isso passasse quando ele se encantasse com alguma moça.

Não passou. Caetano queria guardar os sonhos. Começou a desenhar no caderno que ficava guardado na gaveta da cômoda das roupas da mãe. Mostrava pra ela o que tinha visto dormindo pra ver se ela sabia o que era o futuro. Perguntou como fazia pra colocar cor no desenho. A mãe ensinou a arte de extrair das plantas os pigmentos de colorir. Ele desenhava e pintava toda noite depois do jantar, sentado na mesa, do lado da mãe, que cozia as roupas ou consertava algum utensílio. Falavam pouco, mas a mãe sabia que deveria dar algumas pistas para ele. Começou a perguntar sobre o sonho e enquanto ele falava, ela ia interpretando na sua cabeça.

Caetano que já sabia bem como ler o livro onírico que era escrito através dele, percebia que o futuro não parecia tão bom. Se sentava à noite sob as estrelas e conversava com deus através delas. Começou a perguntar o que ia acontecer no amanhã. E durante o sono, alguma coisa aparecia como resposta.

Passou muito tempo. Caetano já tinha tamanho de homem feito e roupa que cabia direito. Os sonhos agora não vinham toda noite, mas eram mais longos e mais tranquilos. Traziam sempre elementos passando pelo corpo do menino e ela resolveu conversar com as outras mulheres leitoras do destino. Ela levou o caderno com os desenhos e elas se preocuparam. Cada uma avisou o marido para se preparar, porque alguma coisa ia chegar e atravessar aquele povoado todo.

A mãe chamou Caetano e disse que o futuro dele era fora dali. Ele, ainda na inocência infantil, disse que queria ir atrás da estrela que cai. E perguntou pra mãe se ela sabia se ele deveria ir para o norte ou para o sul, porque não sabia se ela caía em um ou em outro. A mãe sorriu e fez o gesto que fazia com ele desde que era criança, passando a mão pela cabeça e rosto. Agora ela sentia a barba dele raspar na palma da mão dela.

O pai chamou ele e o irmão mais velho, teve conversa séria, dizendo que ali chegaria alguma coisa pra destruir o povoado. Caetano sentiu um arrepio forte, mas prestou atenção a cada palavra do pai. Estava preparado para qualquer mal que pudesse aparecer por aquelas bandas. Mas essa preocupação fez os sonhos ficarem mais claros, mais intensos. Sentia a terra em solavancos, o rio se sacudir, as árvores balançarem e se chocarem umas contra as outras. Acordava com medo. Corria pra fora da casa e parecia tudo tão calmo que nem o ar se mexia. Ficava com mais medo. 

Certa noite sonhou que estava num barco que sacolejava com ferocidade. Quando acordou percebeu que não era só o sonho, a casa balançava, porque a terra parecia se levantar do chão. Saiu correndo, gritando para o pai e para a mãe. Mas eles não saiam do lugar, estavam deitados na cama, imóveis. Ele não sabia se fugia para fora da casa ou sacudia os dois. Quando chegou perto, percebeu os olhos deles arregalados, estavam mortos. 

Apavorado, correu para o mais longe que podia. Viu o rio levantando a terra e entrando nas casas de todos. Ele tropeçava, era atirado para cima, caía escorregando na lama que se formava. Não tinha tempo para ver se alguém ainda estava ali. Se segurava nas árvores que já mostravam as raízes profundas expostas pela terra que agora tinha sido dragada pela água violenta que inundava tudo. Não conseguia parar e nem sair dali. Respirou fundo e deu o grito mais alto que conseguiu. Não tinha palavra, era só o urro do horror e a vociferação em pedido de salvação. Olhou para o céu e viu a estrela que rasgava a noite escura. Correu atrás daquela luz, a única que apareceu na sua frente. Não queria olhar para o chão, que já não existia mais. Não podia parar e olhava fixamente para cima, para não perder da memória o caminho que a estrela tinha feito. Tropeçou num barco. Nem sabia de onde aquilo tinha saído, porque ali naquelas bandas não tinha aquele tipo de embarcação. Pulou para dentro e achou os remos presos na parte de dentro. Começou a remar, com força, com medo, em desespero. Não conseguia evitar a correnteza, teve que seguir o fluxo da lama que agora tinha se tornado o rio. Só usava o remo para não enganchar em algum tronco e virar o barco de cabeça para baixo. Atravessou todo o povoado. Não viu ninguém, mas atropelou as casas dos parentes e amigos de uma vida. Depois de um tempo, aquilo passou, agora era só o caminho do rio. De tanto sentir medo, até o medo passa.

Ele era um só naquela imensidão. O sol começava a raiar e ele percebia a destruição. Estava vivo, bem, mas não tinha mais nada e nem ninguém. Só podia remar, tentar achar onde tinha caído a estrela que o salvou da morte. Enquanto não acabava a lama, não tinha onde parar. Era a grande devastação, não existia mais nada em toda região. Dois dias depois, quase desmaiado de fome e sede, começa a avistar a claridade da água. Não tinha divisão, não tinha terra à vista, mas a tonalidade parecia outra. Tinha azul manchando aquele ocre avermelhado que o acompanhou por tantos dias. Não sabia se era miragem, se era o raio do sol que fazia aquilo mudar de cor, mas sentiu vontade de remar mais forte, mais rápido. Parecia que tinha tirado força de vida de dentro de si. Lembrou de ouvir a mãe um dia rezando, na mesa da cozinha, conversava com deus e perguntava: como esse menino tem magia dentro dele? como ele carrega futuro? Sentiu um grande aperto no peito, chorou de soluçar por tanto tempo, remando sem parar, secando o rosto com o braço. O remo foi ficando leve, fluía na água limpa, deslizava.

Olhou para o céu, queria ver a estrela, queria um sinal de que ela tinha caído ali, naquele mundo de água. Sede, lembrou que tinha sede. Largou o remo, colocou a mão no líquido transparente e levou à boca, era salgada. Como podia, água salgada? Ouviu de longe alguém. Era grito cantado, voz feminina, procurou firmando a vista e tampando a luz do sol. Viu a estrela, branca, brilhando, chamando ele. Mudou a rota, fixou o olho nela e partiu pra lá. O corpo quase chegou antes do barco. Viu a moça, viu os olhos, a boca sorria. Encostou na praia e quando saiu, caiu desmaiado. 

Acordou doído, ardido, zonzo. O corpo arrepiava em calafrios e tinha gente em volta dele. Tava salvo e a estrela brilhava nele, diante dele.

Passou uns dias. Alguns rezavam, outros cantavam. Elas cuidavam. Voltou a sentir o corpo. No sono, o sonho vinha, era apenas a estrela brilhando no céu, ele aqui e ela lá. Quando acordava, a estrela estava cá, perto, esperançosa, sempre sorrindo. Ele agora conseguia sorrir de volta. 

Certa manhã, ele levantou e saiu pra ver o dia. Foi na surdina, ninguém notou. Se encantou com a beleza que tinha diante dos olhos. Ela veio perto, perguntou o nome dele e ele disse, Caetano. Ela mostrou um caderno pra ele e perguntou, é seu? Ele respondeu, sim. Não lembrava de ter pegado o caderno durante a fuga. Folheou aquilo tudo, parecia que tinha previsto o que ia acontecer. Ficou ali, colado na estrela, sonhando com o céu e o mar.

 

Simone de Paula - 12/03/2021