quinta-feira, 31 de março de 2016

Reencontro


Mumbai, 01 de abril de 2016.

Estive fora por uns dias, agora de novo em Mumbai.
Quente, muito quente.
O sol esquenta a cabeça, acentua os sentidos, a sede.
Depois de andar um pouco, o corpo amolecido já pede descanso, vento, água fora e água dentro.
É um banhar-se constante. É um pedido de renovação.
Um batizado para o que nasce e compõe corpo, terra, música, oração.

Sexta-feira santa. Viajamos. Ônibus, 8 horas de buzina pela estrada.
Mahabaleshwar, cidade de montanhas.
Chegamos a tempo para o chai da manhã.

O chai da manhã.
O mango lassi.
Cheiro do gengibre no mel.
A temporada de morangos.
É disso que estamos falando.

Depois o descanso e o jantar.
Se prepare, hoje teremos coisas raríssimas.
Puseram a mesa e imaginei que estivesse pronta. Digo, imaginei que eu estivesse pronta.
Mas o tempo me pega desprevenida por aqui, não sei nunca se meu ponto de cozimento está certo, perdi as medidas da temperatura.

Chegam os bolinhos.
Aparentemente inofensivos, douradinhos pelo ghee, crocantes, sedutores.
Abri e precisei de alguns segundos diante do seu exótico recheio.

-       O meu está estragado, olha, está cinza, mole, vamos trocar o prato?
-       Não, está ótimo, é assim mesmo, cérebro é assim.
-       Oi?
-       Cérebro, de carneiro, precisa provar, é uma iguaria indiana.

Mordi, mastiguei e engoli.
Um soco no estômago.

Foram dias de recuperação.
Indigesta, faminta, imóvel diante da dor.
Dor de limite, de corpo querendo ser ouvido.
E nos ouvimos, atentamente. Pensei no bicho, na sua força, na minha raiva.
Somos parte do abraço que não nos damos, os braços frouxos demoram a se entender diante da sua falta de costume.
Foi uma solidão nova. Uma profunda intimidade entre o meu medo e a minha escuta.

Eu estava no mundo e agora cabia em mim.

De volta, em um barco em pleno mar, oceano indico, ia em direção a gruta da Elefanta, em pouco tempo estaria diante das enormes esculturas de olhos fechados, dançando pelas pedras, homenageando Shiva, a deusa da destruição.

Em entrega de onda, em pleno movimento sou fisgada de novo.
Olho para o meu pé e vejo, ele ali, cinza, mais cinza.
Um rato me pegando pelo dedão.

Um grito tão poderoso saiu de mim que ele fugiu desesperado, de repente não estava mais sozinha, tinha um barco inteiro comigo. Em solidariedade. Solidariedade de rato.

Para se chegar na gruta é preciso subir inúmeros degraus.
São tantos que achei que tinha me perdido, que o roedorzinho tinha levado uma parte da minha orientação. Estou vermelha, a voz não sai, o sol me queima, onde estou?
Quando um senhor indiano de pernas trançadas, como de costume, me olha com todo cuidado, passa mais um fio enquanto tece seu artesanato e diz:

-       Você está no caminho, mas ele ainda é longo, pode continuar por aqui que vai chegar. Mas lembre-se: go slowly.

É aí que você sabe e confia na sua jornada. Encontre os bichos.
Estamos todos em comunhão.
















terça-feira, 29 de março de 2016

Como contar - parte dois

(...) Estava sozinha quando decidi viajar e não avisar ninguém. Já me sentia sozinha há algum tempo e não tinha porque compartilhar isso com alguém. E, também, gostei da aventura de comprar uma passagem, arrumar as malas e ir.

A escolha pelo lugar se deu pelo tamanho do tédio que ultimamente me acompanhava. Fui para um país onde minhas fantasias já tinham me levando algumas vezes. Aliás, se existe uma coisa que sempre me ocupou, desde a infância, foram minhas fantasias. Escolhia um canto da casa e ali inventava todas as outras vidas que teria quando fosse adulta. Não imaginava o quanto isso determinaria a mulher que viria a ser. A mulher adulta que compra uma passagem, não avisa ninguém e vai. Vai em busca de uma outra vida, com menos tédio, assim esperava.

Nunca imaginei que seria perigoso ou que estaria dando um telefonema como esse, para avisar onde estava e contar que estava com problemas. Como iria imaginar que tudo iria pelos ares? Enfim, aquilo que teria começando apenas como um símbolo de independência e liberdade, terminou em algo extremamente estúpido. E o que me restava era um telefonema de quinze minutos para explicar algo que aconteceu em segundos e que mudaria tudo.

Ainda continua na próxima terça...

Carla - 29/03/2016

sexta-feira, 25 de março de 2016

O pulso da vida, a morte.

Meu coração só pulsa por você. E ainda ele pulsa!
A revelação aconteceu num noite quente, num sonho desencontrado, na angústia ao acordar e na insônia que me impedia de voltar a dormir. 
O que eu queria, voltar ao sonho que insistia em dizer que a lacuna era grande demais, ou devanear e tentar reparar a lacuna, inventando a reaproximação que só existia na minha imaginação?
Nós estávamos no mesmo lugar, onde ainda estamos.
Eu esperava. Te esperava. Te via e sabia que você me via, mas não me olhava.
O que aconteceu com nós dois?
Como as coisas acabam é um mistério? A gente sabe que terminou e aí tenta reconstituir os fatos para saber o que foi que levou ao fim, e descobrimos que foi quando tudo começou.
Tudo que começa um dia acaba, diz a música, diz a vida.
O convite veio dela, que não sabia de nada, mas como boa anfitriã, reuniu alguns dos amigos queridos. Será mesmo que ela nos queria ali? Eu te vi chegar. Eu já sabia que você iria. 
Sentada naquele sofá de couro marrom sem nenhum charme, ansiosa e decepcionada, esperava. Não te daria o gosto de ir até você mais uma vez. Tudo começou assim e naquele dia eu resolvi esperar, não pelo seu tempo, mas pela tua angústia e/ou tua atitude.
Quieto, como sempre, vestido com a máscara da gentileza, que te serve tão bem. As meninas animadas seguem o grupo que te leva. Você vai e eu espero. Será que o que eu espero é mesmo você?
Você não vem e a minha desistência é acordar. Que covardia a minha, fugir da verdade acordando.
Um dia, quem sabe, ao invés de acordar, eu levanto e vou embora, acreditando no fim.

Simone de Paula - 25/03/2016

quinta-feira, 24 de março de 2016

Maria re



Aap ka nam kya hain?
Quer dizer: Qual o seu nome?
Ao pé da letra: Que nome compõe sua identidade?
Respondo, mera nam Maria re.

Repito isso a quatro ventos, como se fosse um bom dia, orgulhosa do meu avanço nas lições de hindi. As pessoas acham graça do meu sotaque, da minha falta de jeito tentando impor fofura em uma fala áspera pela sua própria natureza. 
Me ajudam na pronúncia, repetimos juntos.
Uma frase simples se transforma na porta de entrada. Bato três vezes, peço permissão.

Entramos.

Aqui do outro lado, desse lado do mundo, nada é uma referencia sabida. Ninguém imagina se sou do dia ou da noite, se meu cabelo conta do meu trabalho, se estou mais para música do que para o silêncio. Não tenho medida definida.
Estou desatada de molde. Desmodelada diante do olhar do outro e da sua cultura.
Em busca de espelhos para Maria re definir.

Deixar ir e.
Deixar chegar.

Assim sou recebida pela Índia.

Outro dia conheci Panki, uma garota linda de 28 anos, nascida e criada em Mumbai, socióloga, em profundo comprometimento político e moral com sua história e país. Ela não me diz seu sobrenome, não diz a quase ninguém. 
Onde está sua identidade?
Ela mesmo assim não vai dizer, porque não quer ser reconhecida pela sua casta.

Aqui os sobrenomes determinam a casta que você e sua família pertencem, sistema de divisão social estabelecido há mais de dois mil anos, onde você é imediatamente classificado, pertence a um lugar ou outro, louvado ou humilhado. Seu destino está traçado e pouco poderá fazer diante disso.
Uma amarra triste e quase intransponível.

Ela me conta de seu trabalho, da voz que não pode calar diante do que vê, da sua profunda dor, a dor da desigualdade.
Seus olhos baixos apenas se levantam para me dizer com sincero orgulho:
Viver na Índia não é só viver, é viver e lutar.

E luta bravamente diante do desejo de ser o próprio desejo.

Homens, mulheres, claros, escuros, ricos, pobres, hindus, mulçumanos, cristãos, budistas, um deus, mil deuses, intocáveis. 

Todos habitam.

A diferença mora dentro de mim.
Entre o que vejo e o que não sei.
O que sei e não toco.
Entre o que imagino e nunca saberei.

Minha identidade está em plena composição.

Dança entre nomes e mundos.
Hoje é o dia do festival das cores. Corpos e ruas estão pintados.
Celebremos, todas as cores e corações.
Misturando-se, nutrindo-se, entregues.
Me entrego.

Happy Holi!




terça-feira, 22 de março de 2016

Como contar - parte um

Falaram que eu tinha direito a um telefonema de 15 minutos.

Como iria explicar em quinze minutos como cheguei ali e o que estava acontecendo.

E, ainda contar que ninguém poderia fazer nada para me tirar dali.

Tudo isso em 15 minutos.


Continua terça que vem...

Carla 22/03/2016

sexta-feira, 18 de março de 2016

Outra gata borralheira



Um dia, fui empurrada para fora de casa. Nada traumático, eu precisava encontrar a minha própria vida. Ganhei a chave da porta e um adeus simpático que indicava: quer mais, vá buscar.
Fui, busquei, mas para onde eu levaria aquilo? Tentei voltar, mas ali já não era mais o meu lugar.
Fui, busquei mais, voltei. E ainda não tinha voltado a ser o meu lugar.
Percebi que aquilo que eu trazia, uma melhoria de mim mesma, não bastava para voltar a ter lugar naquele altar. Saí novamente e deixei que o mundo dissesse o que dessa vez eu estava buscando. Fui encontrada, gostei de ter aquilo com que me deparei, mas não podia levar comigo. Voltei, certa de que ia sair de novo e me deixar ser encontrada. Fui e voltei, e fui e voltei.
Compreendi: eu funcionava ao contrário do conto de fadas, eu era a gata borralheira do lado de fora e a cinderela do lado de dentro. Ficou tudo tão mais fácil. E, mesmo que eu não queira, não tenho escolha em não voltar.

Simone de Paula – 04/02/2016

Conto inspirado no filme ‘Yes’, de Sally Potter. E ainda num céu qualquer de um dia muito especial na vida de uma pessoa.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Embarque

Quando você viaja encontra uma parte sua que fica trancada na mala até o dia do embarque. Reaparece aos poucos, conforme a distância daquilo que aparentemente se sabia, aumenta.

Nossos avessos se cansam de ficarem guardados.
Há algo no caminho, você abrirá a caixa e se perguntará o que tem dentro dela, não há mais volta.
Entramos em contato.

Hoje encontrei uma mulher no metrô, por volta dos 60 anos. Eu ia para o sul de Mumbai, procurava pelo famoso Crawford Market, ela percebendo minha falta de localização, vendo meus olhos desesperados diante de sinalizadores em hindi, pede para que eu a siga.

Fomos juntas ao vagão somente de mulheres. Ela se senta na minha frente e com uma atitude diferente da maioria, me pergunta de onde sou, o que estou fazendo, quanto tempo fico. Vou dando toda a corda do mundo, adoro falar com as mulheres indianas, quero saber delas, trocar, dizer que a roupa e o cabelo estão lindos, que elas são lindas, que as pulseiras douradas, azuis, vermelhas só exaltam um brilho que já está dentro de cada uma, mesmo diante da realidade dilacerante que vivem a maioria e que o tecido, as voltas, o volume, a textura e a estampa, o bordado e o desenho, que tudo isso cresce diante dos meus olhos, do meu lado do escuro, que olhar para ela me faz perceber o outro, a outra dentro de mim, em tantos sentidos, em processo contínuo de revelação.
A experiência.

Não nos entendemos na língua, mas sabemos o que nossos corpos conversam.
São prosas do feminino, o que mora em mim saudando o que mora nela e assim nos sabendo como parte de um mesmo mundo e portanto de um mesmo afeto.

Ashima era só um breve anúncio do que viria logo ali, logo mais, bem perto.

Ela me aconselha a descer na estação Marine Line, mais próxima do mercado. Aceito. Sem saber que dizia sim para algo muito maior.
Nos despedimos, desci do trem.
Chego na saída, olho para rua.
Por um momento não acredito no que vejo.

São dezenas, não.
São centenas.
Mulheres em marcha.
Cantam, repetem, cantam, são coloridas, estão vivas.
Determinam o ritmo das ruas com seu clamor, a cidade está atenta, como eu.
E emocionada.
Faço parte do passo, vou com elas.
Uma me pega pelo braço, me quer perto, conta um monte de coisas, não entendo nada.
Enfim, estamos em plena sintonia.
Eu digo para ela que não falo sua língua, não importa, ela continua, continuamos.
Em um intimo laço de reconhecimento. Nossos sorrisos sabem.
Só temos o caminho e seguimos.

Descubro mais tarde que são pescadores e suas mulheres em busca de melhores condições para viver.
Seu peixe está contaminado, seu prato vazio, o corpo cansado, seus filhos tem fome, de tantas coisas.

Me dão uma bandeira amarela.
Pegam minha mão, levante! Levante!

Não sabia o que era o amarelo, não conhecia suas cores, mas sabia que em memórias de amor cabem todas as impressões.


Maria Laura, Mumbai, 18 de março de 2016.




terça-feira, 15 de março de 2016

A queda foi de quem?

A única certeza que tinha é que era inverno. Não sentia mais meu nariz e a sensação era que meu rosto iria rachar a qualquer momento. Estava em uma estrada de terra e tomada por uma neblina muito densa que não me deixava enxergar nada. Por isso, resolvi me concentrar nos meus passos, um pé na frente do outro. Essa é a melhor forma de andar por um caminho que nos cega, um passo por vez.
Não sabia ao certo o que estava fazendo ali e na dúvida continuei andando. Depois de um certo tempo percebi que estava ali mesmo para andar. Caminhando já sem neblina e podendo voltar meus olhos para frente e não mais nos meus pés, vi longe uma árvore solitária em cima de um monte com suas folhas todas vermelhas. Era única e passei a caminhar até ela. Já sabia para onde estava indo, mesmo que não soubesse exatamente o porque.
No decorrer do caminho até a árvore, percebi que quanto mais caminhava, mais as folhas da árvore caiam. Era uma queda suave, mas constante. Comecei a pensar que no momento que chegasse na árvore, ela estaria nua, não haveria mais nenhuma folha. Caminhava em direção a algo que já teria outra forma quando chegasse perto. E no momento que alcancei a árvore, as últimas folhas começaram a cair. Antes mesmo que as folhas tocassem o chão, nesse intervalo entre estar na árvore e estar no chão, meu corpo despertou. E, tive a sensação que tinha sonhado com algo importante, mas não lembrava o que.

Carla - 15/03/2016

sexta-feira, 11 de março de 2016

Caquinhos de Voz

Os olhos se fecham, os ouvidos não.
Passou a juventude abrindo os olhos. Tentando ver melhor, olhar por buracos e frestas, encontrar segredos que pudessem despertar sua emoção. Via muito, ouvia pouco.
Era surda para o que estava sendo dito, visto que só via.
Fragmentos de cenas, pedaços de imagem, recortes de revista, tudo no intuito de formar uma imagem perfeita, que encaixasse na cegueira dela.
Um dia, a cegueira chegou de fato, mas não apenas porque os olhos já não respondiam aos anseios do olhar, mas porque ela não sentia mais luz e brilho no mundo que a atraísse para algum lugar. Parou de tentar enxergar, descobriu que tinha muito que ouvir.
Ouvia tudo que podia, mas já não usava a lógica da busca do som perfeito. Ouvia as pausas entre as frases, as brechas entre as palavras e até o intervalo entre as sílabas. Podia perceber cada letra sendo pronunciada. Notou que um canto se misturava com uma buzina e entre eles tinha uma risada, uma pisada e uma confissão. Tudo se misturava, era uma sinfonia numa bela sintonia.
Se divertia esperando pelos sons todos os dias. Mas a graça acabou, a surda ouvia, mas não tinha mais o som que a atraia. E no silêncio forçado, encontrou o frio que ardia e o fim que já existia.

Simone de Paula – 09/03/2016

quinta-feira, 10 de março de 2016

Onde? Aqui. Todo lugar.


Mumbai, 10 de março de 2016.

Visitei a Índia no ano passado e volto 14 meses depois.
As imagens que criei estavam carregadas da primeira experiência, da leitura, filmes, temperos, uma fantasia alimentada do que encontraria.

Nada é igual, nem perto.
Tudo se transforma assim como nós.
Traduzido no que encontro do lado de fora.
A comida está mais difícil. O ardido me toma a garganta, não me deixa engolir, o sol, o calor parecem me tirar da órbita comum, da temperatura conhecida e confortável.

Estar aqui é profundo. Ouvir a buzina, pisar na terra, ser observada, conversar com o corpo, tudo é mais e mais dentro.
Porque atinge um solo desconhecido. No entanto, arado, preparando-se para nova colheita sem saber exatamente qual e como se dará o fruto. Mas certo de que está fértil.

Tempo e silêncio.
Sentidos em plena ação.
Vivos, movendo-se.
Como os carros que seguem um sistema aparentemente ilógico, mas sabem exatamente onde querem chegar e chegam.
Só precisam confiar no caminho.
E confiam.

Atravessar a rua é um projeto audacioso na cidade indiana.
Pensei que nunca chegaria do outro lado, mas algo surpreendente acontece. Alguém te ajuda achando seu jeito engraçadinho, o carro sabe de longe sua presença e a velocidade já está calculada, mesmo que você só perceba isso com uma roda de tuk tuk a dez centímetros do seu pé.

Vou fechar os olhos agora para dormir até que os aromas da manhã entrem pela janela me contando a nova do dia.

Um passo, depois outro passo.
Eu reconhecendo a ti.
Vamos juntos.