sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Disk-sex

- Alô!?!
- Bom dia, senhor!
- Infelizmente não podemos mais atendê-lo. Agora o serviço é exclusivamente para mulheres.
- Pois é, as coisas mudaram por aqui.
- Nossa equipe de marketing detectou uma queda no share e resolveu redirecionar os negócios. Acredite, a situação melhorou muito.
- Sim, foram feitas muitas pesquisas, quali e quanti, e chegamos à conclusão de que as mulheres são muito mais disponíveis a experimentar novos produtos. Elas usufruem o serviço de forma mais livre, aproveitam tudo que nós oferecemos, são mais corajosas e ousadas. 
- Inicialmente o serviço era direcionado para homens, o senhor tem razão. Mas percebíamos que com o passar do tempo, a procura diminuía. Quando alguns produtos relacionados eram oferecidos, raramente algum dos usuários aceitava experimentar, então, abrimos novas frentes. Observamos o mercado e percebemos que existia um público ávido por nosso produto e que estava sendo deixado de lado. A ação foi rápida e a aderência imediata.
- Senhor, apesar da sua insistência, não posso abrir exceção.
- Entendo, são anos usando nosso serviço. Mas o senhor estava inativo há quase dois meses. 
- Sim, temos os registros de sua frequência e sabemos que nos primeiros dois anos o senhor era assíduo. Algumas vezes nos acessava duas a três vezes no mesmo dia. 
- Entendo. Mas o senhor sabe que as ligações são gravadas e temos não apenas a frequência registrada, mas também a sua performance. Também notamos que sua animação diminuiu, parecendo mais uma manutenção do que fruição. E, o senhor sabe, nosso serviço é voltado ao entretenimento e prazer do usuário. Oferecemos alternativas inclusive para que sua experiência seja a melhor possível. 
- Sinto muito pelo senhor não ter atentado ao contrato quando concordou que seria monitorado. Mas são as regras do serviço. 
- O senhor é bastante insistente. Parece que está mais interessado no serviço agora que não pode ter do que no início da ligação. Percebo que conseguimos reativar seu desejo.
- Haha... vou verificar com a minha supervisora se podemos fazer alguma coisa no seu caso. É preciso que eu lhe informe que nossa supervisora, Michelle, foi colocada no cargo justamente para saber avaliar cada caso. Nossa empresa visa diversidade. Michelle é trans e não cai nos estereótipos que geralmente pessoas em cargos de poder caem. Nem é cruel como muitas mulheres quando podem mandar e nem assedia a equipe como homens nessa posição. Garanto que o senhor terá a melhor pessoa para avaliar o seu caso. Aguarde dois minutinhos na linha.
- Senhor, já tenho uma resposta. O senhor poderá, apenas hoje, usufruir do nosso produto clássico, aquele que o senhor já vem utilizando há alguns anos. Mas há algumas condições. É preciso que o senhor possa desfrutar como as mulheres desfrutam. Se soltar, poder dizer aquilo que pensa e quer, fazer barulho mesmo. Como o sistema é monitorado, caso o senhor esteja apático demais, a ligação automaticamente cairá. E, evidentemente, seu número ficará nos arquivos banidos. Pois, regras são regras.
- Entendo o seu lado, cada um aproveita o serviço como pode e quer. Mas é que nosso foco está em poder tangibilizar a experiência para oferecer um serviço cada vez melhor. Espero que agora o senhor entenda o meu lado.
- Ótimo, chegamos a um acordo: o senhor tem uma última chance com o serviço e nós podemos avaliar como um homem pode aceitar as novas regras sem definir as coisas pela sua vontade particular. Vai ser interessante perceber isso e quem sabe teremos um retorno dos usuários do sexo masculino no futuro.
- Uma última informação: o senhor tem uma voz bem bonita, gostaria de trabalhar conosco? Estamos contratando homens para substituir algumas vozes femininas. Se tiver interesse, entre no nosso site e aplique para as vagas que estão abertas. Se quiser, posso incluir seu linkedin no relatório de atendimento que irá para nosso RH para que eles entrem em contato com o senhor. Me diga o que prefere.
- Ótimo! Tomara que dê certo.
- O senhor já anotou o número de protocolo da ligação, certo?
- Nossa empresa vai lhe oferecer um voucher especial no final da ligação, não desligue, por favor.
- Obrigada e aguarde na linha, sua ligação será redirecionada para outra pessoa, escolhida especialmente para o senhor, levando em conta tudo que o senhor mais gosta. Aproveite!
- Tenha um bom dia!

Simone de Paula - 27/12/2019


quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Rito Mutu al

Festas e votos de acontecer diferente.
Os ritmos interiores pulsam,
encontrar onda nova, sair da velha conhecida.

O banquete logo será servido.
Romã, fita azul, branca, amarela, calcinha, patuá,
folha de louro, canela, samba pra Iemanjá.

Come o bicho que não anda pra trás,
lentilha, sete sementes, nove, guarda na carteira, joga em cima do ombro,
pisa na grama, mergulho no mar, ojalá!

Conecta: a si, mesmo.
Então: ano novo.




sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Transa

Nem toda transa é feita de sexo. 
A palavra veio caracterizar uma modalidade de sexo com mais tesão do que procriação. Mas, como toda gíria, vai circulando na boca do povo e vira um monte de outras coisas.
Eu uso transa pra qualquer coisa que possua um compartilhamento de algo comum. Transa precisa de dois, não só, mas ao menos. Até tem aquela transa com um livro e seu autor, mas nesse caso, temos três, se a edição for gostosa. 
Transa tem prazer envolvido. É a hora de por o que é nosso, e que a gente gosta, a serviço do outro. Se for um bom encontro, o outro faz o mesmo e a gente goza bem no final. 
Mas, tem sempre aquele outro que tem medo de por o pintinho pra fora, daí a transa fica desequilibrada, mancando, ‘mocando’* com a nossa cara. Eu, se fosse mais pessimista, diria que nesse caso teria sido um mau encontro. Mas como sou da turma dos transalhões, pego isso e invento um texto, transo em outro lugar.
Essa semana teve transa pra caramba.

Simone de Paula - 13/12/2019

*mocando: do verbo mocar - abrasileiramento do verbo ‘to mock’ (zombar, tirar sarro).

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Os meios, os fins

Meu bem, não se iluda, não vou ajudar você com a sua mentirinha. 
Você não procurou a mim para isso, mas apenas queria um jeito disso. Se isso fosse o meio para me buscar, eu saberia na hora e responderia sim. Mas meus ouvidos foram cavados para escutar quando eu sou feita meio, e com você, isso eu não quero. 
Mesmo por ti tendo desejo, resisto, mas não cabe aí ser apenas mensageiro. 
Não sinta isso como um castigo, ou pior ainda, um descaso. Faço o mesmo com aqueles que amo. Cada um deve encontrar meios, eu sei. Mas meus meios respeitam o vazio por onde deve circular a razão da minha busca e aquilo que quero. Só assim poderei saber o que quero daquilo que desejo. Se coloco alguém ali, atravessando por mim, posso acreditar ser essa a minha vontade, e aí, me iludir e decepcionar logo em seguida. 
Faça silêncio, não apenas com as palavras com que tenta me convencer a te atender, mas nas suas ideias, nas táticas viciadas, de atalhos para chegar lá onde você quer. E ainda evite ao máximo o clichê de pedido ou oferta de ajuda.
Te tirei da minha cena para que eu não faça mais isso com você, afinal, será que alguém, a não ser com um trabalho árduo de tirar os entulhos do caminho, consegue ver o que realmente quer atingir? 
Lá, sempre parece muito longe. Fazer o percurso acompanhado é sempre melhor. Então, tenho escolhido aqueles para me acompanhar no meu trajeto. Se o destino for para as mesmas bandas, pode ser um bom encontro e uma agradável jornada. Caso contrário, posso seguir só. Se durante, alguns eu encontrar, pode muito bem funcionar. Pense bem para onde você quer ir e depois me conte, quem sabe é justamente por ali que eu vou.

Simone de Paula - 01/12/2019

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Esquecimento

Estou te esquecendo... até uso reticências para mostrar o fluxo corrente que se instala em mim.
Tenho olhado para cores, cheiros e sabores mais suaves e coloridos. Contrastes aos seus, ora obscuros e pesados, ora neutros e desbotados.
Pensei hoje que esqueci algumas vezes daquilo que me uniu a você por tanto tempo. E quando me dei conta, tinha deixado de lado porque já não me fazia falta.
É muito curioso isso, por já não fazer parte da minha angústia, mesmo se ausentando, não faz diferença. 
Talvez, finalmente, a promessa do passado se torne presente e eu possa ter assim o que sempre deveria ter tido.
Estou te esquecendo e hoje lembrei sobre que tema meu você sempre me recordou.

Simone de Paula - 29/11/2019

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Velho sábio

Encontrei novamente com aquele velho rabugento. A cada volta e meia, e mais meia volta, dou de cara com ele. Já foram tantas vezes que agora fica a grata surpresa da manifestação de sua presença.
O aspecto sério é sempre mais forte do que a provocação instigante que ele traz consigo. Ele só quer se fazer notar. Se consegue isso, prepare-se porque de lá pode vir muito mais. 
Na última vez, esses dias atrás, percebi que essa riqueza toda, mais eu vejo nele do que ele mostra. Acho que ele a tem, porque também se não tiver, já valeu, na simplicidade a que expressa e que permite fazer reverberar o que deve vir à tona.
Dessa vez vou ficar mais um tempinho com ele. Acho que ele merece. Eu também mereço. Temos algo a trocar. 
E pra você que desconfia, não confia e nem quer me deixar entrar pra te contar, traquize-se, porque mesmo de longe, você vai acompanhar.

Simone de Paula - 22/11/2019

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Varetas

Toda vez é o mesmo jogo de palitinhos. Você espalha as varetas e me diz: “vai!”, e eu sei que naquele começo fica fácil sacar sem mexer demais na estrutura empilhada.
Sou muito cuidadosa, porque você está ali, louco pra me tirar do jogo. Com o passar das jogadas, nem lembro mais da competição ou da minha vontade de ganhar, porque aumenta demais a minha apreensão diante da sua gana de pegar meu erro. 
A partida de ontem foi muito boa. Você ganhou, mas eu não perdi. Olhei pra você dizendo” vou mexer naquela ali...”. Você sorriu, esperou, quando viu o movimento da peça indicada, encostou tranquilo na cadeira e afirmou: “é o que você quer..” 
Sim, quero. Quis. Mas quando você pegou a varetinha, me mostrou, a apontou pra mim, definindo o fim de jogo, minha mente se espiralou sem deixar espaço para uma nova partida.
Quero um novo jogo.

Simone de Paula - 15/11/2019


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

As Deusas

Estão todas em roda, atuantes.
Cada hora um pouco de sua vez.
Me encontra cabeça de porco, cabeça de touro e o ventre.
Solares, sombrias, avassaladoramente sutis.
Chama de um lado, o avesso.
À beira mar do mergulho,
não me deixam sem.
Uma me conta do seu corpo labirinto, tonterias, esconderijos.
Outra que diz: vá bem fundo, minhas mãos do chão impulsionarão seu corpo para o retorno.
Quase sem ar aprenderá a (re) respirar tão ouro quanto é.








sexta-feira, 8 de novembro de 2019

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Perséfone

A donzela colhe flores e mel
dança doce sem pisar o chão.

O deus, pasmo de amor, agarra sua cintura
nada se solta dessa força descomunal, criatura.

Deixe que eu te leve dentro,
para baixo, para baixo.

A terra chama, em volta toda dor
nada mais que semear nem em ti ou lugar algum.

Volte para mim, volte.






sexta-feira, 1 de novembro de 2019

E agora?

E agora que estamos sozinhos no elevador por três longos andares?
E agora que convivemos no entra e sai, oi e tchau, da rotina de trabalho?
E agora que sabemos mais dos nossos interesses e queremos estender o tempo de contato?
E agora que a sedução deu lugar à possibilidade?
Forçar a conversa mole para poder ainda ver o brilho do olhar, não deixar escapar.
Apelar para a conversa séria pra tentar fazer bater o coração e implorar para o olfato caçar por maior intimidade e quebrar a distância moralmente adequada.
Adoecer, reclamar, padecer de algum mal para invocar a atenção mais preciosa.
E agora que deu certo, que chegamos perto, que vamos fazer?

Simone de Paula - 01/11/2019

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A dora

Almoço no domingo.
Receita da família, segundo a memória da hora.
Ela, amorosa, vem nos visitar, se senta confortavelmente e observa.

Cada coisa tem o seu lugar, pensa.
Além tempo.

Azeitona preta moída no azeite,
pimenta vermelha e fresca,
tomate, abacate, limão, coentro,
mostarda arde, vapor, estalo, suspiro.

E o pão.

Ela disse, era a alegria no início de cada mês, era um dia, somente um dia de pão.
Lembrava a si própria em casa de 7 filhos, um pai e uma mãe, todos juntos, bocas desejantes, olhos sendentos e corações transbordando.

Seu afeto cruzou o meu e nos alimentamos.
Aos poucos compreendemos a saciedade e sua medida precisa.

Iguaria.



sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O dom de Orfeu

Hoje é dia de fazer uma declaração de amor.
Ganhei um Mercúrio em Escorpião e com ele a lembrança de Orfeu.
Orfeu que vagava pelos mundos infernais, implorando aos deuses que lhe pudessem devolver a mulher amada.
Orfeu, aquele que foi incumbido de usar sua lírica para que outros não fossem ao inferno, não sucumbissem à imagem e à miragem das sereias. Ele mesmo totalmente caído na mesma teia.
Orfeu, aquele presenteado por Apolo, com o dom da música e da poesia. E também foi marcado por Dionísio com o desejo e a paixão, ao encontrar Eurídice. 
Ele, tolo o bastante para acreditar estar nela tudo isso que pode sentir. Buscando desesperadamente reencontrar quem capaz de lhe manifestar.
Orfeu, que encanta e canta, também foi tocado pela morte e o desencontro que vem com ela. Não importa mais se os deuses lhe concedem o reencontro do amor, produzindo um novo retumbar no seu peito. Sentir a flecha de Eros atravessando o peito, é recordar a dor do punhal de Tanatos partindo o coração em dois.  Os ecos da morte nos assombram a cada novo amor. O que mais queremos encontrar nos chega maculado pela perda irreparável de quem achamos ser o dono, o portador do dom de sentir amor.
Eu mesma ia fazer uma declaração ao meu amor, que me abandonou um pouco e longe já não me permite encontrar palavras mágicas de invocação do que senti. Mas falei de Orfeu, e sua permanente falta, em Eurídice. 
Ele teria como cantar o desencontro, seu sofrimento por não mais ter a sua amada e sua insistente tentativa de reencontrá-la, se realmente pudesse deixá-la ir?

Simone de Paula - 24/10/2019







quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Mostra

Mostra-me
a imagem que constrói uma ponte
e essa ponte te leva bem mais perto
de você.

Caminho-me.


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Deus Mu Dança

Dispersão
Desrazão
Agitação
Não tem jeito, uma hora a coisa embola. Então...
Atração
Introspecção
Reflexão
Inação

Simone de Paula - 18/10/2019

Obs.: título-presente do anarquista astrólogo aquariano mais provocativo do Rí di Xanêro.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Sabático

Em tempo, segunda é boa como domingo.
Casa é carente e a suculenta.
As horas de respeito contribuem para toda criação.
Abraços amorosos são distribuídos pelo vapor da pressão o da panela, claro.
Feijão preto na hora, cenoura espaguete, semente de girassol em quase tudo.
Além do filme, da discussão e a opinião, da rivalidade sadia de dividir a vida.
Corpo alonga, cabeça alonga, almalonga.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Do jeito que dá

Nasci!
Ganhei um presentinho: vida.
Venho vivendo do jeito que dá.
Um dia eu chego lá e ganho outro presentinho: morte.
Daí a gente vê no que dá.

Simone de Paula - 11/10/2019

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Esses mares

Força, braveza, intensidade.
Ora nas ondas gigantes, onde o homem enfrenta seus maiores medos. Ora nas águas mais frias e cinzentas, onde o homem sonha em poder cruzar os mares e achar novos horizontes. 
Muitos poetas fizeram muito com tanta beleza... Eu só pude ver e dizer essas poucas palavras. Não consigo traduzir o que viram meus olhos. Estou em êxtase. 

Simone de Paula - 04/10/2019

PS - os mares de Portugal ... eu vi!


sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lisboa

As surpresas do caminho... sim, elas são os pedacinhos de toda história.
Ora o nome de uma rua, um brilho intenso do sol, um sorriso.
Ora o não vivido ou esperado, como ser turista e estrangeira na mesma língua. Isso tem sido diferente e bom. Há cumplicidade, afinidade, mas fica o respeito ao outro, como outro. Mágico.
Vi de onde vem a mania de se meter na conversa do outro, não por xeretice, mas para ajudar a que não se caia em ciladas desnecessárias. Sim, coisa de gente solícita.
Houve uma cena de boa sorte, daquelas que quem recebe só pode acreditar em Deus depois dela. Estávamos em Cascais e uma romena pedia esmola. Um acompanhante turístico, querendo ser garboso para sua cliente, oferece trabalho ao invés de dinheiro. A conversa dura muito, ele.pergunta de toda a família dela, informações da Romênia. É um misto de desconfiança, que com perguntas desmonta a mentira e a curiosidade. Fim do papo e ela segue pedindo e ouvindo não. Se liga na boa sorte. Volta e pede o trabalho oferecido.
Valeu!

Simone de Paula - 26/9/2019

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Subjetividades

Tem sido constante me perguntarem se não gosto de cinema. Claro que sim. Justo eu!?! Me intriga aqueles novos, que hoje me acompanham, não notarem uma verdade tão declarada das minhas subjetividades. Parece que o que é meu eu não mostro, nao preciso. Será?
Tenho meus diretores preferidos, seus estilos. Eles me levam  para a sala escura.  É como um ritual, devoção, paixão. Avaliar gostei ou não, nem importa. São mestres para um gozo meu. Sabem dizer pra mim com seus filmes. 
E meus atores, meus astros, que também me fisgam não importa muito o que fazem, porque eles estão lá e isso basta.
Do cinema americano gosto de entretenimento, mas também dos independentes que ousam mostrar a cultura paralela, ou como lado B ou como o deboche do pop.
Do cinema francês, aquela eterna discussão de relações, que não existem e exigem milhares de metros de negativo pra tentar fazer juntar. 
O cinema italiano e aquele descaramento alucinado.  E o cinema português, com sua poesia, seus silêncios. E dos ingleses o humor ácido, o suspende marcado.
Os suecos, dinamarqueses, alemães. Aquela frieza e síntese capaz de nos manter por semanas presos às imagens deslumbrantes e personagens densos. 
Os orientes, nos tempos longos, na geografia exuberante e nas diferenças estéticas. São tantas e tão distintas, com marcas de culturas antigas e tradições repassadas e recortadas.
A estranheza moderna dos japoneses, com a sexualidade que não se desculpa. A fantasia chinesa e indiana, mItificando ainda mais os mitos eternos. Persas e árabes, garantindo as particularidades de cada povo apesar de reunidos pelo islã.
E a África demora tanto pra chegar...
Hoje eu não vou ao cinema, mas o carrego dentro de mim.
Hoje assistiria Closer, pra deixar o erotismo.circular. 

Simone de Paula - 20/09/2019.



quinta-feira, 19 de setembro de 2019

No meio do caminho

Manhã no parque, manhã de sol no parque, manhã, das raras, no parque.
Árvore convidando pra abraço, calor batendo no rosto e na nuca, suor escorre gota depois de gota.
Anda e respira, anda e respira, deixa vir vida de dia de sol de parque, vida de ter a vida.

Um homem descalço e sujo veste um cobertor grosso nos ombros. Ele passa por mim, atravessa apressado. Vai até o lixo, já eram oito horas, já devia ter ali, ali naquele lixo do parque, de um dia ensolarado no parque, um café da manhã de lixo do parque.

Um café da manhã de um homem de um parque de um lixo, lixo. Atenção, lixo!

Está nos faltando tanto alimento. Tanto.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Braços cruzados

Não faz assim comigo, não.
Não cruza o braço, era só um sonho.
Usei as palavras que estavam lá, sem pavor, sem pudor.
Faz careta, finge que nem liga, olha pela janela, mas não cruza os braços nem feche os ouvidos.
Não estou aqui para brincadeira, falo sério, mas isso não quer dizer que é pra fechar a cara, recusar a fala. 
Deixa rolar, deixa fluir, no final da frase tudo fica mais suave e seguro. 
Larga a moral, deixa o tabu, entra no clima e brinca. 
Ri, porque eu sei que você sabe rir e se divertir comigo.


Simone de Paula - 13/09/2019

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Só um tantinho

Queria fazer um haikai, porque hoje tenho só um tantinho pra dizer.
Mas poema não sai, nem haikai.
É um talento colocar em doses mínimas coisas gigantes. 
E eu uso muitas palavras para falar de coisas diminutas, desimportantes.
Era só isso mesmo.

Simone de Paula - 06/09/2019

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Morrer de amor

Vou contar a história de um homem que morreu do coração. 
Ele era amado, amável, amante. Viveu nesse estado apaixonado. 
Sofreu, porque quem ama sofre. Mas não reclamou disso, porque quem ama, quer mesmo é amar e sabe que sofrer é parte do jogo.
Jogou sem pensar nas estratégias, como um tolo. Ganhou e perdeu. Não tentou recuperar as perdas, mas continuou no jogo. E foi aí que o destino deu sua grande cartada, colocando ele frente a frente com uma das maiores perdas da sua vida, que ele nem imaginava ter perdido, porque era um amor que não se perde. 
Olhava o retrato guardando na memória, congelado. Foi exposto à vida real e teve que fazer instantaneamente uma atualização do tempo que ele nem viu passar. Descobriu-se tremendamente apaixonado, mas sem saber como recuperar os anos de amor não vividos. Olhou para aqueles que de pequenos tinham crescidos. Os mesmos e tão diferentes. Como era possível esse amor à primeira vista de novo? Reviveu o que tinha acontecido a cada primeiro encontro, a cada nascimento. Sofreu dessa vez tremendamente. Não sabia o que fazer depois de entender que tinha perdido muito tempo de amor. Não podia mais continuar. E foi bem nessa hora, que o coração explodiu.
Essa não é a história de um amor romântico, de um casal desencontrado, mas apenas a história de um homem que amou.

Simone de Paula - 30/08/2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O futuro

Celina morria de medo de ir à cartomante e ver revelado o pior cenário para o seu futuro.Já tinha passado por situações difíceis na vida, em que as amigas a aconselhavam a procurar uma pessoa que pudesse lhe revelar o que iria acontecer. Mas ela resistia. Tinha sido criada em uma família religiosa e que colocava mau agouro naqueles que soubesses dos mistérios do mundo. Que dirá alguém que pudesse saber da vida de outro?
Mas a situação atual era muito perturbadora. Tinha se apaixonado e não sabia o que fazer. Não queria aquele amor, nem aquela pessoa, mas se via aprisionada às teias invisíveis da paixão. Fantasias e medos, expectativas e frustrações. Passava o dia combatendo os pensamentos românticos que invadiam sua mente. Tentava racionalizar, explicar, despistar todas as cenas insólitas que ela imaginava. Se excedia em afazeres, mas nada era capaz de eliminar o incômodo.
A situação era insustentável, pois lhe faltava concentração para as tarefas mais importantes e sobrava exaustão em uma mente excessivamente trabalhadora. Decidiu que só desta vez cederia ao conselho místico. Perguntou a uma das amigas sobre a cartomante que ela frequentava. Pegou o telefone, marcou, respirou fundo e foi.
Chegando, o ambiente era aconchegante. Nada sombrio e escuro como ela imaginou. Ar agradável, apesar do cheiro doce de incenso. Luminosidade vinda das luzes acesas nos outros ambientes, mantendo a casa harmoniosa. Sentaram-se frente a frente em uma mesa redonda, coberta com um lenço muito bonito, colorido e trabalhado com bordados. Dava para ver que tinha sido escolhido a dedo. 
Roberta, a cartomante, era, aos olhos de Celina, uma mulher normal, como ela mesma. Ficava difícil confiar que ela poderia saber alguma coisa que Celina não soubesse. Por outro lado, essa imagem familiar a deixava muito tranquila, solta na cadeira que ocupou. 
Primeiro passo, Roberta pediu que ela escolhesse um entre tantos baralhos que ela tinha. Eram cartas diferentes, coloridas, interessantes. Depois de alguns minutos admirando aquelas imagens, escolheu um que lhe parecia mais intenso nas cores e nos desenhos. A cartomante sorriu e a consulente achou que ela tinha alguma pista sobre sua personalidade só pela escolha. Ficou com a dúvida pairando sobre a sua cabeça.
Procedimentos padrões da leitura de cartas: embaralhar, cortar, selecionar, virar as cartas revelando o que foi sorteado e começar a interpretação. Isso ela já sabia de tanto ouvir as amigas contando para tentar deixá-la mais calma para o evento. Nada foi diferente e ela parecia se sentir no controle. Mas teve um pequeno detalhe em tudo isso. Antes de Celina começar a escolher as cartas, depois do corte, uma carta escorregou das mãos de Roberta, que olhou e a colocou de lado. O restante da tiragem seguiu tranquilamente.
Roberta já tinha pedido para Celina pensar em uma pergunta, que deveria ser respondida pelo oráculo. E, diante do jogo, Roberta sorriu e disse: "uau, que belo jogo, existe boa sorte e um final satisfatório. E então perguntou: é uma situação amorosa, né?" Celina não sabia se nessa hora mentiria ou revelaria tudo. Era tudo ou nada, tamanha aflição que sentia ao se deparar com final feliz e situação amorosa tão próximos um do outro. Balançou a cabeça afirmativamente. E Roberta seguiu dizendo que apesar de tudo parecer um conto de fadas com o encontro perfeito entre o par amoroso, havia um impedimento, algo nesse caminho, que aquela carta que tinha caído revelava. Era ela mesma, Celina, que impedia as coisas de fluírem. Roberta seguiu perguntando e interpretando a carta principal, a intrusa, que dava para Celina informações arrasadoras sobre si mesma. Ela era tão responsável pelo seu destino, que lhe assustava ter tamanho poder e não saber nada sobre isso, por se achar completamente impotente diante da vida e dos acontecimentos.
Finalizaram a consulta e Celina saiu muito balançada. Agora, ao invés de pensar nele, pensava em si mesma. Parou num bar perto de casa e resolveu beber tudo que pudesse, até ficar completamente embriagada. Conseguiu. Saiu do bar cambaleando, andou pelas ruas e se perdeu um pouco, mas chegou. Abriu a porta com dificuldade, tirou a roupa e se jogou na cama. tudo rodava, ela ria, apagou. Acordou no dia seguinte de banho tomado e com pijama, debaixo das cobertas. Ficou totalmente surpresa, ela tinha feito tudo isso sem lembrar. Começou a experimentar a vida dessa forma, vendo o que ela fazia sem saber que fazia. Para isso, precisava se entorpecer, ora com bebida, ora com maconha, mas ficou com medo de se viciar. Tinha lido em algum lugar sobre os efeitos da música e da dança para entrar em transe. E experimentou isso também. Rodar até cair de tão tonta, perdendo a noção de espaço. Ouvir mantras ininterruptos até não saber mais do tempo. Se divertia com esses experimentos. Não contava pra ninguém, porque essa não parecia ser ela, mas era. Aceitou que ela conduzia sua vida mais do que controlava. Resolveu ligar para o tal perturbador que ela tanto evitou. Deixou o papo rolar, marcaram um encontro, ficaram juntos, transaram e no dia seguinte ela se descobriu completamente desligada dele. Tudo aquilo era só isso, ir lá e ver pra crer. Crer que as cartas revelam mais do que o futuro, que o amor é bem diferente do que contam os filmes americanos, que a gente não sabe nada, mas faz tudo. Se despediu dele e da antiga versão de si mesma naquela manhã, com uma xícara de café na mão. Realmente Roberta estava certa, seria uma linda história de amor com final feliz. Ou, nas exatas palavras dela: "existe boa sorte e um final satisfatório"

Simone de Paula - 23/08/2019





sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Promessa

Aquilo que é sua promessa se realizará.

Os últimos dias têm sido de extrema clareza. Dias de sol ou nublados, não é a isso que me refiro. Águas claras ou barrentas, também isso parece que teria alguma diferença. O som distante ou potente da voz se tranquiliza diante de um silêncio fresco que permite que nenhum turbilhão atrapalhe a claridade.

Me afastei das sombras. Não me amedrontam, mas se alimentam de mim e depois de um tempo, ali não há mais como me sustentar.Quanto mais me afasto, mais densa e escura ela parece, até se ocultar em si mesma. Os raios de luz chegam despertos, definidos, mas sem muita intensidade, para não me explodir. Eles permitem apenas detalhes. São sinais de alerta, não por medo ou preocupação, mas por atenção. Alguma coisa está ali.

Passei uns dias nas reminiscências. Sem sofrer, lembrando aquele que abriu mais portas no mundo do que é possível calcularmos. Mas aquelas que me permitiram fazer um belíssimo giro em direção ao melhor entendimento que eu poderia fazer do ontem. 

Queria te contar, mas não posso te contar. Você iria escutar, mas possivelmente não entenderia. O obscuro das paixões doloridas dos desencontros ainda te acomete e impede que você saia daí. 

A você, você ou você, para sempre estarei aqui. 

Simone de Paula - 16/08/2019

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

E lá se vai

E lá se vai mais um dia.
Mais do mesmo, novo, inesperado, surpreendente, tedioso.
Começa igual, cansa.
Segue possível, mas nem sempre alcança.
Termina suave, balança.
Já nem é mais uma questão do tempo, porque ele já ficou pra trás.
É uma questão de linearidade, de inércia.
E segue então, deslizando, escorregando.
Passou.

Simone de Paula -  09/08/2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Comunicação improvável

Certa vez, numa dinâmica de terapia de grupo, fizemos o exercício da comunicação improvável. Um era surdo, o outro mudo e o terceiro cego. Ainda bem que não tinha o manco, pois cada um deveria orientar o outro para que chegássemos juntos, a algum lugar.
Apesar de estarmos num mesmo grupo, faltava a intimidade que permite se comunicar por outras vias, deixando de lado a palavra. 
Nem lembro bem que papel eu fazia, mas eu era uma das três faces de um dos pontos impedidos do nosso corpo, ou cega, ou surda, ou muda. 
No início fica aquela situação com o desconforto de estar evidenciando algo que deveria estar esquecido, o mal-estar de mancar em um ponto cardeal, ou melhor, sensorial. Risadinhas, o corpo recolhido, mostrando as inibições como se alguma peça de roupa tivesse sido retirada. 
Depois, a dificuldade em si: quem deveria decidir para onde ir, como guiar, se ali faltavam os conectores básicos, elementos comuns e compartilháveis, como olhar, ouvir e falar?
Olhos? tínhamos. Boca? também. Ouvidos? evidentemente. Mas eles realmente estavam apartados de nós. Era a fase da irritação, do desencontro, da vontade de puxar daqui e empurrar dali. Como é difícil não conseguir comandar o outro. A vontade própria aparece descarada, afinal, o que devo fazer, não sei, e ainda assim, faço.
Fase três, tempo se esgotando, indefinição em saber como chegar ao destino. Qual é o destino? E o destino, quem definiu qual seria? 
Dois tinham o olhar. Se olharam, se acalmaram, tocaram o terceiro usando do tato como voz para que cessasse seu movimento. Um de cada lado segurou no seu braço, enlaçando cotovelos e fechando os olhos. Respiraram e então, movimentaram os três corpos juntos, saíram do lugar, permitindo que todos finalmente estivessem nas mesmas condições, podendo chegar em um lugar possível, apenas isso.
Dez passos depois, encontraram uma cadeira no meio do caminho. Tatearam. Ao lado dela haviam mais duas. Se soltaram, sentaram. Tinham chegado aos seus lugares.

Simone de Paula - 02/08/2019

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Deixo pra vocês

Estive pensando esses dias de descanso e tédio o quanto eu deixo pra lá.
Uma discussão, um pedido, uma insistência, uma treta. Eu deixo muita coisa pra lá.
Algumas coisas que eu quero, muito, tento não seguir na mesma linha, mas daí, o mundo se acostuma com meu jeito, blasé ou desencanado, e acha que sou chata quando bato o pé. 
Outras coisas eu quero, mas nem tanto, e é pra essas que eu quero dizer um belo: deixo pra vocês!
Seja aquele projeto cheio de detalhes, aquela compra super interessante, aquele lugar super charmoso, ou aquela visita imperdível. Deixo tudo isso pra vocês. E deixo porque dá muito trabalho, pouca recompensa, ou nem faz parte do meu destino. 
E é nessa hora que eu preciso de um apoio aqui, do próprio destino, porque tem gente que não quer me deixar nessa ilusão deliciosa de que alguém possa se incumbir de girar a roda do mundo. E é uma ilusão também, mas menos deliciosa e mais obsessiva, em achar que é a gente que gira a roda sozinhos, né? 
E é nesse destino, ou naquilo que não deixo pra lá, que mora meu desejo. Desejo de libriana, das relações todas possíveis, das harmonizações das diferenças, dos detalhes das belezas, da suavidade do tato e do contato, da verdade do trato e do contrato, do compromisso permanente e persistente naquilo que sacode o pensamento.

Simone de Paula - 26/07/2019

sexta-feira, 19 de julho de 2019

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Não era Sol, era Lua.
Não era sol, era chuva.
O seco deu lugar ao úmido e ao ar, respirar.
O sul deu passagem para o norte, parar.
O amor suavizou, esfriou, para o coração descansar.
Eu ainda estou aqui e este é o meu lugar.

Simone de Paula - 17/07/2019

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Efeito

Parou na esquina e o semáforo abriu. Olhou para o relógio de pulso e depois para o céu. Escutou um apito de longe e do outro lado da rua alguém acena em direção a ela. Fecha levemente os olhos para ver melhor. É ele. Coração dispara, há tanto tempo não o via. Coração. Meu coração. Sente todo sangue fluir ardendo. A boca seca. Vai conseguir dar o passo? Semáforo está amarelo. Demore, demore tempo por favor. A roupa que veste está velha e um pouco suja, ele saberá, nota sempre os detalhes da vaidade. Há tanto tempo não o via, está cansado, sei de longe. Sinal vermelho. Pedestres seguem. Sangue. Coração. Boca. Desejo. A última noite. Ele não disse nada. Covarde. Tinha outra. Outra. Coração. Boca. Raiva.

- Oi! Você!
- Sim, eu.
- Você tá bem?
- Ótima!
- Eu também.
- Que ótimo!
- Sim! Bom te ver!
- Adorei também.
- Bora marcar?
- Bora!
- Legal então.
- Legal.
- Até.
- Até.





Tá verde. A vida corre.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Deplorável

Essa palavra segue suspensa na ponta da minha língua.
Deplorável.
Quero poder dizê-la. 
Quem deveria escutá-la, sabe bem que ela será pronunciada. E então, evita o risco de ouví-la.
Por questões de covardia, segue calado.
Como eu digo com frequência, o tempo sempre está a nosso favor.
No caso do deplorável, aguardo ao invés de implorar para poder dizê-lo.
De qualquer forma, não vou esquecê-lo.

Simone de Paula - 12/07/2019

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Hoje eu quero falar de amor

Como já disse o poeta, amar é verbo intransitivo. 
Ação que não precisa de objeto, mas que se satisfaz com o predicado.
Se a gente enfia alguém quando está amando, isso é por nossa conta e risco, porque quem ama, apenas ama. E digo assim, porque a gente que ama, quando ama, é tolo o bastante pra enfiar o outro ali, como um exercício de burrice sentimental, pra acreditar que aquilo não vai passar, ou que o outro vai poder sentir junto, brincar junto, fazer parzinho.
Essa história de par não tem nada a ver com amar.
Amo, muito! E aí você caiu na minha vida, apareceu na minha frente, sussurrou na minha orelha e pumba, achei que tinha te achado. Que estava te amando. Mas foi só porque eu ainda não entendia mesmo essas paradas de amor. Imaginei que era por você.
Diz o cantor que o acaso protege quem anda distraído. Eu acrescento que é aí mesmo que o Cupido encontra o espaço perfeito para produzir o encantamento.
Tudo isso não veio do livro, do professor, ou de quem consegue conceituar o que é inapreensível, exclusivo e intransferível. Isso veio do encontro com o Amor.
Faz tempo... 
O meu entendimento pedia suspensão da razão, coisa que para mim é muito complicado, porque parece que sou tomada pelo pensar. Foi no escuro da sala de cinema, com os olhos fixos nas imagens adoravelmente sortidas. Não adiantava prestar atenção ao filme, porque ele não estava ali para ser assistido. Era para experimentá-lo. Do outro lado, uma fada contava histórias, abria janelas, melodiava as cenas, simplesmente para tirá-las do senso comum, que é o ato de ver um filme como aprendemos a fazê-lo. Algumas horas depois, nenhuma cidade, pergunta ou atividade poderia tirar de mim o estado em que me encontrava. Eu era outra, eu amava. Foi ali que descobri que sim, amar é verbo intransitivo.
Mas claro, se dois amantes se encontram com seus amores prontos para serem enlaçados, não sou eu que vou fazer cerimônia nesse caso. Entro no clima e simulo que amo alguém. Mas tem gente que não, que evita amar, que morre de medo de perder. Mas perder o quê, se o amor não se perde? Ele é ou não é, e sendo assim, funciona sempre quando se suspende a razão.
Eu posso concluir isso aqui com a declaração mais verdadeira que posso fazer: te amo, meu Amor.

Simone de Paula - 05/07/2019

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Semana

Algo incontrolável, às vezes dá uma pausa, mas acaba voltando. Depende da situação. Depende de você. Essa danada. Esse termômetro de inúmeras angústias. É boa, é má, não é nada, qualquer coisa camaleoa. O melhor de tudo: a chance de jogar tudo fora e começar e começar. Olha aqui! Sua sua sua...expectativa!

Vem cá pra gente conversar.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

O protagonista esquecido

História a gente conta porque já passou.
Fico ruminando o futuro, planejando passo a passo daquilo que serei amanhã.
Por trás de mim, há esse outro que sopra baixinho, ao pé do ouvido, o que eu devo imaginar. 
Que serei eu quando fizer isso que ele me induz a pensar que devo fazer?
Protagonista eu? Só se for no aqui e agora do pensamento, porque amanhã, não tem nada além do relato do ontem feito pelo coadjuvante que parece ter visto tudo, mas não viveu nada.
Essa história já foi dos pais, avós, bisavós e tataravós. E eu ainda quero fazer de novo, igual, repetidinha? Pra quê? Pra quem? Pra saber o final?
Se fico contando essa história, nem coadjuvante sou, sou mesmo narrador. 
Quisera eu ser autor. Fazer diferente, mesmo que usando partes iguais. 
Na reorganização das cenas, dos pedaços, sempre sobra aquela pecinha que não encaixou em nenhum lugar e nem faltou no todo completo.
Protagonista eu seria, se tivesse que fazer alguma coisa com isso que ficou de fora, materializado, sobrando, esperando um destino.
Foi bom o tempo que os deuses, ou o dramaturgo, inventavam uma boa história para o pedacinho esquecido na montagem do todo. 
Sozinho no palco, eu e aquele extra, só me resta assumir meu corpo e viver uma cena inédita, sem pistas de como termina. 
Tudo isso só pra lembrar que eu estava esquecido.

Simone de Paula - 28/6/2019


sexta-feira, 21 de junho de 2019

Você

Você viu... vou te contar...
Essa gente com quem você anda.... esses seus amigos...

Você viu... que eu amo... vou te contar... sonho, imagino, penso o que não posso falar...
Essa gente com quem você anda.... que eu queria poder também estar... esses seus amigos... que estão com você em qualquer lugar...

Simone de Paula - 21/06/2019

quinta-feira, 20 de junho de 2019

(en) cara

A resposta que me deu foi a que não pude ouvir de mim.
Por que?
Era cruel demais para sair,
ficava dentro consumindo células.



sexta-feira, 14 de junho de 2019

Contar

Contar, seja com números ou letras. Somar, narrar, daí tudo muda?
Conto quase tudo para alguém, pensando narrar uma história, um fato, um episódio importante. Coloco muitos elementos acreditando adicionar todos os detalhes fundamentais para tornar valioso o relato.
Sou ouvida como uma caixa registradora, mostrando quantas notas e moedas foram empilhadas para dar conta da féria do dia.
O que tem valor pra mim, tem valor para o outro? Sim, mas deslocados de posição aquilo que imagino falar e o que de fato se ouve podem ser próximos, mas sob pontos de vista, menos óbvios.
Tudo é uma questão do enfoque que se dá.
Imaginar é bom! Com elementos, se imagina mais ou menos do que sem nenhum ponto de partida?
Quanto se conta os contos de réis? Essa já foi a nossa moeda, contos de réis. Nosso dinheiro.
Tira um detalhe ali, muda de cenário e ficamos com os contos de Reis. Nuance na escrita, acentuo na pronúncia e a coisa não apenas muda de figura como revela o que estava quase esquecido quando disfarçado no uso comum.
Se um dia eu chegar fazendo contas, te dando conta dos meus números, me ouça como uma contadora de histórias.

Simone de Paula - 14/06/2019


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Júnior

Entre o pai elegante e os brinquedos bem cuidados, o destino de Júnior parecia estar traçado. 
Mães e tias olhavam orgulhosas para o menino bem educado e obediente. Na escola também sabia cumprir bem os deveres que lhe eram passados. Mas o sentido da vida não segue a rota da moral de seu tempo. Aliás, o destino, esse pregador de peças, faz a moral rolar morro abaixo.
Chegou a adolescência e Júnior, que era o foco principal dos pais, deixou de ter importância que tinha. Agora, ele não dava nem trabalho e nem preocupação. O vazio da vida pré-fabricada dos adultos produzia silêncios desconcertados entre aqueles três membros da família bem ajustada. Conversas brandas vinham do pai comentando alguma nova promoção no trabalho. Da mãe, o assunto era as novas aquisições de vizinhos e parentes. Júnior ouvia aquela conversa e comentava alguma coisa do seu universo de jovem,  se enquadrando nos temas definidos pelos pais, localizado na sua rotina de estudante.
Alguém ali tinha que romper com isso. Quebrar pratos, bater portas, dar um berro. Mas ninguém fazia. 
Júnior, de fato, parecia ter o lugar do prometido para o sucesso. Mas olhando bem de pertinho, ele servia apenas para atrair olhares admirados aos pais. E ele sentia isso. Não sabia como dizer, mas tinha um estranhamento de ser alguém sem ser. Pensamentos surgiam nesse sentido, mas embaralhados com os sentimentos de deslocamento no seu próprio lar. 
Numa tarde de sábado, a mãe pediu que ele a ajudasse a mudar coisas de lugar. Ele  gostava desse movimento de bagunçar tudo e depois arrumar. Animado, falava com a mãe e dava dicas. Ela nem o ouvia, mas dizia docemente: “meu anjo, acho que isso não é funcional.” E recusou todas, exatamente todas as falas dele. 
Com 15 anos, ele não era mais nem anjo e nem inocente como imaginavam. Ele sabia quando sua opinião era considerada e quando nem era percebida. Queria pelo menos um momento de atenção. Não pensava exatamente como faria isso, só notou de fato essa intenção, depois do ocorrido. No transporte do espelho, que os pais ganharam no casamento, da avó da mãe, que o ato se precipitou. Era uma velharia cheia de importância, mas em realidade, era apenas um cacareco muito brega. A mãe caminhava de costas, ele de frente. Moviam o objeto de um canto da sala para outro. Uma dobra no tapete fez com que ele tropeçasse e fosse junto com o espelho para o chão. Cacos por todo lado, alguns machucados leves no rosto e nas mãos, e o presente da vovó espatifado. A mãe soltou um grito desesperado e socorreu o espelho. Olhou para Júnior com o olhar de ódio que ele sentira inúmeras vezes, mas nunca tinha interpretado assim. 
Ele levantou e foi buscar vassoura e pá para limpar a sujeira. A mãe imediatamente teve uma enxaqueca e se trancou no quarto. Limpando, ele lembrou das frequentes enxaquecas. Sim, a mãe odeia muito, mas se esconde do sentimento ruim. 
Ele não sabia o que fazer. Era um misto de culpa com êxito que abarcavam seu ser. Diante do pai, naquela noite, não sabia porque era tratado como alguém que cometeu um delito grave. Mas só, se via em posição de defesa, justificando e repassando o ocorrido. Depois de não acharem mais culpados, além do tapete, para que ninguém sofresse punição, o pai conclui o caso da forma mais definitiva que pode: “espero que a gente não tenha 7 anos de azar.” Falou e disse, os sete anos seguintes viveram sob um turbilhão de emoções. As cosias não pareciam mais tão bem arrumadas. A imagem perfeita agora não escondia as verdades que ocupavam aquelas vidas. Nem era nada grave, pelo contrário, eram desencontros entre o que foi bem projetado e mal executado, de acordo com a imagem bem alimentada  que exibiram durante anos. 
Júnior não entrou na faculdade logo que saiu do colégio, como imaginavam pelas notas do garoto. Tentou, mas não deu pra atingir a nota. Não ficou nem na lista de espera. Se decepcionou consigo mesmo. Também não conseguiu formar um grupo de amigos com quem pudesse sair, se divertir, conversar. Se via ainda grudado ao amigo de infância, tão obediente quanto ele, mas que não tinha nem mais papo. Continuava com o misto de sentimentos do dia do espelho, culpa e êxito. Anos passaram e ele era comandado por isso. Tentou entrar no grupo de jovens da igreja, mas nem isso dava perdão para ele. Um diabinho falava ao pé do ouvido, diariamente, "fuja, já!" 
Um dia, ele obedeceu. Mas como o Júnior que era, comunicou que iria fazer uma viagem para conhecer o Brasil. A natureza, a cultura, saber mais do seu país. Os pais ficaram levemente incomodados. Para quê ele precisava sair do grande centro em que viviam? E mais, por que não estava estudando para a bendita faculdade que era adiada a cada ano para o seguinte? Mas, como o dinheiro tinha sido presente do tio, irmão do meio do pai, não puderam opinar. 
Ele arrumou a mala e partiu. Viu vidas, percebeu a sua vida. Não tinha muito o que contar, mas ouviu histórias sem fim. Notou que as pessoas se preocupavam muito com imagens, espelhos, fotos, bom acabamento de casa e carros. Achava curioso ver que se lavava carro em dia de chuva e calçada para o cachorro cagar logo depois. Ria quando notava as mulheres se arrumando no espelho dos carros, passando batom mesmo sem ver direito a boca. Mas ele mesmo, nem se olhava, nem se via.
Resolveu brincar de Narciso, olhar seu reflexo na beira da água. Fez isso. Se reconheceu, mas nem sabia direito o que aquele rosto significava no mundo. Era familiar, mas ao mesmo tempo, não dizia nada, só sabia que era ele. 
Quis fazer um experimento, era a situação ideal, pois ninguém o conhecia. Perguntava para estranhos o que achavam dele. Recebeu muitas opiniões. Ora falavam sobre como achavam que ele chamava e o que fazia da vida. Outros iam mais fundo e descreviam a personalidade que imaginavam para ele. Pedia também que fizessem fotos, que o registrassem de formas inusitadas. Só queria ser visto, lido, definido, para sair daquela múmia em que tinha se transformado para ficar perfeito diante do cacareco da vovó.
Voltou pra casa com duas resoluções, estudaria antropologia e assumiria o mais inusitado do que tinha sido dito dele. Comprou peças de roupa que ele nem imaginava vestir antes de ter saído de casa. Frequentou lugares diferentes, que nem sabia que existiam na cidade que ele nasceu. Se chamava de nomes diferentes cada vez que se apresentava para um estranho e o nome correspondia com uma personalidade também escolhida.
Foi se definindo, se assumindo, se montando. O ponto final foi o nome. Pegou o registro de identidade e leu em voz alta o próprio nome: Hélio. Largou o Júnior para trás. Era a criança. Agora, seu tempo de adulto era outro. Ascendeu no céu, brilho para o mundo. 
Nasce novamente a cada dia.

Simone de Paula - 07/06/2019





sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pradarias

Ainda tenho longas pradarias para percorrer.
O esforço não é mais um contraponto ao alívio vindo do término da jornada de subidas leves e íngremes. Ele ainda segue o corpo já usado, desgastado, ativo desta vida.
Talvez os declives cheguem. 
Se isso se der, preciso de força extra para segurar a marcha, garantir o passo mais lento e firme. 
A atenção redobrada viabilizará a continuidade fluída da estrada. Paradas programadas possibilitarão o prazer dos sentidos ativados no desfrute dos sons, imagens e cheiros que fazem parte da natureza, que então me rodeia e também lá estará. Os descansos meditativos já seguem desde muito comigo. O sono restaurador possivelmente será mais frequente. 
Sol e Lua determinarão o tempo. Chuva e céu, estrelado, azul ou acinzentado, definirão minhas escolhas. Sei que esse dia está lá adiante. Mas ainda aqui e ali, as pradarias me acompanham. 

Simone de Paula - 25/05/2019

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Não é loucura

Eu não queria falar do final do GoT gótico. Mas já que ficou a brecha, falarei do ponto mais interessante pra mim.
Daenerys não ficou louca, nem de tpm, né mores? 
Como assim, Cersei, uma mulher, mata Missandei? 
Ela pode fazer toda crueldade em nome do poder, jogar como eles, interpretar direitinho o papel para continuar por ali, no lugar de, em nome de. Porém, há o pedacinho da identificação que garante o ardil, disfarçar o jogo, mas manter a reunião com o grupo ao qual se pertence. Ela rompeu isso.
Já temos que conviver com a rivalidade intensamente alimentada. Mulheres no ringue, rixa de galos, gozo de quem sai sempre ganhando no final. 
Agora, se passamos para esse patamar, está tudo acabado mesmo. A civilização, o laço social, a vida. Portanto, queima porque já ultrapassamos o último limite, só resta destruir o que estiver pela frente, porque já está tudo acabado.
E ai,  Dionísio não podia nos abandonar naquele momento. Invocação Não tem loucura. 
Se o melhor laço da nossa união é cortado, o mundo acabou.

Simone de Paula - 24/05/2019

quinta-feira, 23 de maio de 2019

O fantasma era o pote de colheres de pau caído da janela.

É madrugada, um barulho, alguém está na casa. Boca seca, coração dói. Estou ouvindo, está perto. Pulsa a dor do medo. Arrepio de corpo inteiro. Não há onde me esconder. Serei ferida. Vou pular a janela. Vou me quebrar da janela. Olhos arregalados. Deserto escuro. Garras imaginárias apertadíssimas e afiadas. Pulsa a dor do medo.

Quem me invadiu?


sexta-feira, 17 de maio de 2019

Fix

Rabisquei isso aqui antes de colocar um título. Quando escrevo, ou começo pelo título, ou uma frase que ecoa na minha cabeça, ou ainda uma história que eu quero contar. Esse foi diferente, veio sem muita definição. E saiu assim:
 
A gente para no tempo, no momento em que nossa vida nos faz experimentar um elemento surpresa.
A suspensão que se dá em nós, no corpo, na alma, faz o espírito entrar em combustão e produzir uma calcificação inabalável.
É comum encontrarmos pessoas que estão naquela mesma idade em que a maior experiência de suas vidas aconteceu.Fixou lá.
É um chamamento íntimo, vindo do real explícito do inesperado, que declara um sim de nossa parte, sem nenhuma possibilidade de evitar esse sim. O sim segue implorando mais e mais que esse momento, esse chamado, se repita, promovendo o tempo eterno.

Isso aconteceu com uma amiga. Jovem, cheia de energia. Não pensava no amanhã porque o hoje era tudo de melhor. Estudante, tinha na escola e nos colegas seu mundo inteiro. Inocente, descobria nos meninos as suas habilidades e nas meninas as suas rivalidades. Não sofria, só reagia. 
Se surpreendeu com uma situação comum a cinquenta por cento das moças da sua geração, se viu grávida do namoradinho da ocasião. Parou ali, na menstruação que não veio, no teste positivo, no feto na barriga, nos 17 anos. Jovem, eternamente jovem. O namorado virou marido, pai, mas ele também, parou no tempo. A vida deles seguiu o fluxo natural da moral generalizada. Família, trabalho, tudo certo. Não teve ruptura em nada que mudasse o ponto de parada de lugar. Ainda hoje, pensa, fala e sente com 17 anos, repetindo as mesmas habilidades com meninos e rivalidades com meninas.

Já um outro amigo, com ele foi bem diferente. Eu diria que ele tem tantas rupturas na vida que envelheceu antes da idade. Ainda na infância perdeu o pai. Acidente de moto. Teve que dar conta dessa falta, tentando ser um pouco igual ao pai que conheceu. Mas era difícil acomodar conversas de um pai com um menino de7 anos, tendo 25. Mas ele tentou. Como nasceu numa cidade pequena, foi estudar num grande centro e essa reorganização espacial o fez pular dos 7, onde estava parado, para os 21, mesmo ainda com 17. Emancipado, foi sem mãe, sem muito dinheiro e teve que trabalhar duro. Queria sair da cidade pequena, mas não sabia que tudo mudaria. Nada dava muito certo, não queria estudar, sentia vergonha de não acompanhar a turma. Se envolvia com quem estava na mesma posição rebelde, causada pela ausência da rede de segurança diante do abismo. Sem conseguir se equilibrar, caiu. Se envolveu com agiota, traficantes e usou todas as drogas que encontrou. Parou numa sarjeta, quase tendo uma overdose. Sair de lá, como? Foi resgatado da rua pela polícia, em uma operação de limpeza da região em que estava morando. Enviado para uma clínica, já não sabia mais como viveria sem entorpecentes. Queria remédios o tempo todo. Ficou lúcido e limpo quando veio a notícia da morte da mãe, de câncer. Não a encontrava há uns dez anos e não podia acreditar que ela adoeceu e ele a perdeu. Ele não voltou pra casa e se culpou. Ouvia dos amigos da clínica, alcoólatras com mais mais de cinquenta anos, que as mães ainda estavam esperando por eles. Ia sair dali para onde, fazer o que? No dia da liberação, foi com um colega da clínica para a casa dele. A família o recebeu e a mãe era a dona de tudo, mandava. Ofereceu para ele trabalhar na pizzaria dela. Ele só tinha isso para fazer. Cozinhava à tarde e à noite. Pela manhã a ajudava com reparos na casa e compras para a pizzaria. Achou uma família. Em seis meses estava de mudança, morando na casa da vizinha, namorada cuidadosa que arranjou. Ele queria filhos, mas ela já tinha dois, de um casamento anterior. Os meninos tinham mais de vinte anos e ele não sabia bem como se encaixar no papel. Toda vez que a gente se fala ele reclama nas dores no corpo, da falta de esperança no futuro e da última vez me disse que vai ser avô com 32 anos, rindo um riso triste.

Que idade será que tenho? Quantas vidas já vivi? Esse papo de vidas passadas e reencarnações não seriam as rupturas surpreendentes do tempo na nossa vida que nos faz girar para uma nova existência numa aparente mesma vida vivida?

Simone de Paula - 17/05/2019

quinta-feira, 16 de maio de 2019

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Diário de Bordô

Embarquei com a cara e a coragem.
Cheguei sem nada.
Descobri o querer e agora quero muito.
Me ofereceram o primeiro. Um tanto amargo, pegou um pouco na boca.
Tomei o segundo, pareceu mais agradável. Era diferente do anterior, mas carregava certa semelhança, especialmente a impressão de pesar na língua, me fazer perceber que tinha passado por ali. 
No terceiro tentei segurar mais antes de engolir. Já tinha aprendido que não era para a sede que aquilo servia, mas para me marcar, deixar restos na pele.
O quarto chegou e eu já não tinha mais como ficar calada, silenciosa. Articulei boca e lábios, língua e garganta, jorrando as notas musicais da minha voz. Falei, recitei, cantei.
No quinto, meu corpo inteiro estava inquieto. Levantei, andei, circulei, dancei.
O sexto chegou e nele ainda tinham bolhas, suavidade, doçura e uma explosão de prazer. Andei pelas nuvens, toquei as estrelas, me entreguei ao solo.
Eu já não sabia mais quem se movia, se era o corpo, a alma ou o mundo.
Um toque e uma voz grave sussurrou: quer o sete? Sorri. 
Dali em diante, nem sei se resisti.
O mundo é uma festa e Dionísio está entre nós.

Simone de Paula - 10/05/2019