sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Calores, vapores



O sol nascia no horizonte e se levantava, revelando cenas na penumbra, e sombras na rotina.
A gente seguia o ritmo lento do dia-a-dia, esperando o fim que chegaria.
Cidade pequena é assim: tudo acontece, todos se conhecem, nada muda.
João trabalhava na ferrovia. Fazia de tudo um pouco e quando o trem estacionava, era a vez dele se espertar, correr, preparar tudo para a nova partida. Tinha o trem que tinha rodado a noite toda, chegava e ficava parado até o meio da manhã. Tinha o expresso do meio-dia, que parava só pra descida do pessoal que vinha resolver negócios na cidade. E tinha o trem do fim da tarde, que ficava parado durante uma hora na estação. Quem tinha chegado ali descia e quem ia seguir com o trem subia. Mas, era o trem novo, moderno, que chamava atenção. A criançada, que já tinha saído da escola, entrava e corria pelos vagões, fazendo uma baita algazarra. João gostava, ria, queria correr junto com eles. Mas, quando via o chefe da estação, saía dando bronca nos meninos e fiscalizando o trem, para ver se estava em ordem para a nova saída. Sim, ali ainda o mundo estava no século passado.
Ercília era a moça que tinha uma banquinha de doces na estação. Vendia bolo, cocada e geléia caseira. Sabia que os passageiros que vinham pela manhã compravam o bolo e esperavam encontrar um gole de café fresco da banca da Ivone. O pessoal do meio dia, mal olhava os doces, passava voando e quando muito, pegavam um doce na volta, para matar a fome de quem nem teve tempo de almoçar. Mas, quem passava no final da tarde, geralmente levava um pacote com alguns agrados para aqueles que iriam encontrar no destino final.
Ercília saía da estação logo depois que o trem das 18 horas partia. Passava na mercearia, comprava algum ingrediente e seguia para sua casa para fazer os doces do dia seguinte. Ligava todas as bocas do fogão e o forno. Batia o bolo na mão, tinha braços fortes e rosto vermelho de tanta energia que colocava no batedor para o bolo ficar bem fofinho. Bolo no forno, era hora da cocada, que não podia parar de mexer até dar o ponto. E a geléia era fácil, era só deixar as frutas com açúcar no fogo bem baixinho, até derreter tudo. Ela adorava essa rotina, sentia o perfume açucarado pela casa e isso lhe fazia companhia. Os vizinhos, quando sentiam o cheiro forte dos quitutes, gritavam comentários elogiosos e ela ficava toda satisfeita.
João saía da estação depois das sete da noite. Ia pra casa, tomava banho e tomava a sopa que a mãe tinha preparado. Era jovem, solteiro, mas pensava em casar. Saía toda noite para passear pelas ruas da cidade, gostava dos pequenos sons rompendo o silêncio: o latido dos cães, as conversas ouvidas nas janelas das casas por onde passava.
João e Ercília tinham muito em comum, trabalhavam na estação de trem, eram jovens, solteiros, acreditavam na vida e em deus. Mas algo que era muito particular deles era a mania de coletar caquinhos de voz. Ela com o que ouvia de dentro de casa, sobre o que o cheiro dos seus doces provocavam na vizinhança. Ele com o que ouvia das histórias das famílias daquela vila, os segredos, as brigas, os amores, as despedidas.
Os dois se encontravam diariamente, se cumprimentavam e ele, vez ou outra, comprava um pedaço de bolo depois do almoço ou um pote de geléia para levar para a mãe. Mas ela tinha muita vontade de conhecer o trem novo, andar pelos vagões enquanto ele estava parado na estação. Mas não podia deixar sua banca de doces, principalmente porque era a hora de maior movimento. Então, toda vez que João ia comprar um doce, Ercília perguntava como era o trem por dentro. E João contava. Descrevia o vagão de passageiros, o restaurante, o de carga. Da outra vez, falava as mesmas coisas, mas Ercília, na sua imaginação alimentada pelas altas doses de odor açucarado, queria saber mais. João resolveu contar a ela o que ouvia pela cidade, como se fossem fragmentos de conversa s de passageiros que embarcavam no trem.  Ercília se deliciava com as histórias e João podia contar o que tinha ouvido para alguém e dividir aquilo que muitas vezes o tinha surpreendido, encantado ou horrorizado.
A conversa acontecia no intervalo entre os trens. Os dois, ociosos, papeavam divertidamente. Ercília presenteava João todo dia com um doce e ele lhe trazia mais histórias.
Mas João se afeiçoou à moça e achou que ela poderia se sentir enganada se soubesse que eram histórias da vizinhança e não dos passageiros. Tolo, achou que se ele fosse sincero iria ter dela mais carinho e atenção. 
João era tagarela, falava o tempo todo, e contou para o chefe o que estava acontecendo. E, como o chefe era casado e conhecia mais as mulheres, poderia dizer-lhe se era acertado contar à Ercília sobre as histórias inventadas. O chefe gostava muito de João e achava que estava na hora dele namorar. Combinou que João deveria convidar Ercília para conhecer o trem, que seria melhor. Mas não sabia como fariam com a banca de doce. O chefe, gostando de bancar cupido, pediu à esposa que substituísse a moça por uma tarde. Pronto, combinação feita, tudo certo, João convida Ercília e ela, toda animada, aceita.
É um momento solene para ela, que se arrumou melhor e passou batom e perfume para entrar no trem. Olhava encantada e perguntava a ele qual história tinha acontecido onde. Riram muito. E João, inspirado pelo ambiente, contava mais e mais histórias. Sentaram nas poltronas e ali ficaram sem notar que o trem tinha partido e os dois foram naquele passeio, com o destino  definido, mas sem saber onde aquele caminho os levaria.
A noite passou, dormiram e quando acordaram estavam numa cidade grande, sozinhos, sem bem saber o que fazer. Mas um tinha o outro e João entendia muito das escalas de trens. Ele se informou sobre o trem de volta, que sairia de lá só no final da tarde. Tinham 12 horas para passear por uma cidade estranha, ver gente nova, observar tudo que era diferente. João ia mostrando para ela como era bom ouvir os caquinhos de voz, pedaços de conversas, como ele fazia na cidade deles. Ela ficou fascinada.
Na volta estavam exultantes, queriam contar aquilo para alguém. Pegaram o trem de volta sem problemas, afinal, ele era um empregado da companhia ferroviária. Mas chegaram e perceberam que não tinham com quem compartilhar. O chefe achou engraçada a aventura, mas não queria saber o que João tinha visto. Ivone, a amiga do café, estava mais preocupada com a unha lascada pelo fecho da saia do que para tudo que Ercília tinha vivido. Perceberam que tinham mais uma coisa em comum, o desejo de compartilhar histórias, emoções, de inspirar um ao outro. Sabiam que aquela amizade duraria muito tempo, talvez a vida toda e resolveram fazer uma brincadeira, ela contou a ele o que ela tinha vivido e ele a ela e perceberam que mesmo juntos, os dois viam as coisas de um jeito diferente, particular. Descobriram que ainda que estivessem juntos, vivendo as mesmas coisas, ainda assim poderiam contar um ao outro uma versão diferente.
É claro que tamanho apaixonamento pela vida provocou um estado amoroso de um pelo outro e essa dupla se tornou conhecida por todos na cidade como o casal dos contos de fadas.

Simone de Paula - 27/1/16

Inspirado no romantismo dos antigos contos destinados às "mulheres".

Obs.: o título promete e não cumpre... uma hora sai o conto condizente com Calores, vapores, tesão!

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

FaltAR

A vida se apresenta quando nos tira o ar. Aquele milésimo de segundo em que paramos de respirar e sentimos que tudo pode e vai mudar. Talvez, nunca iremos nos recuperar desses momentos sem ar. Quando o ar some, o corpo se paralisa e algo gelado percorre você por dentro. Nada do que se tenha feito até ali nos prepara para o momento em que a vida se apresentará.

A falta de ar que alcança um pai ao saber do nascimento do seu filhinho, aquele segundo onde se espera um sinal de que tudo foi bem. Uma mãe diante de uma filha que vai embora - quando vamos nos ver? Será que vai ser feliz tão longe? Alguém na frente de um médico esperando um diagnóstico - o que acontecerá com o meu corpo? O que vou passar? É sempre nesse segundo de falta de ar que a vida apresenta o que ainda virá.

Engraçado a vida se apresentar na falta de ar, não? Não é porque respiramos que estamos vivos? Parece que não. É quando nos falta ar que nos damos conta do que se é e do que se pode ainda viver.

Carla - 26/01/2016

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A tempestade

A tempestade se aproximava avassaladora. Rajadas de vento sopravam com toda força sacudindo árvores, estremecendo janelas, agitando seu coração.
O estrondo dos trovões e o brilho intenso dos relâmpagos a fizeram fechar as cortinas, num impulso automático de se proteger daquela ameaça da natureza.
No entanto, quanto menos ela enxergava, mais ela se agitava. Parecia que algo a tomaria, engoliria, destruindo seu corpo frágil e sua alma delicada.
Durante toda a sua infância, viveu naquele castelo imenso, sozinha, sem crianças, sem adultos. Apenas serviçais a proviam nas suas necessidades. E, com o passar do tempo, ela os dispensou, um a um, buscando declarar a solidão em que sempre esteve.
Herdou o castelo, mas não herdou os habitantes do castelo. Perguntava-se por que um lugar tão grande para ninguém viver ali. Ela também era ninguém.
‘Cabrum!’, um sobressalto num estrondo mais forte a tira de um devaneio. Imaginava hordas de pessoas adentrando e tomando o castelo. Vivia um misto de medo e desejo de perder toda aquela proteção, queria que aqueles muros viessem abaixo e que ela pudesse realmente ver além, além das janelas, do jardim, dos portões.  Queria ver tão além que se mantinha sempre no andar mais alto do castelo, confinada no cubículo que servira como quarto do castigo.
Ela gostava de ficar ali porque sentia que preenchia o lugar. O espaço pequeno era bastante adequado à pessoa que ela era: pouca superfície e pouco recheio.  Um corpo pequeno com poucas histórias, poucas ideias. Gostaria de saber o que tinha sido esse quarto pequeno no topo da torre. Fez muitas pergunta a todos com quem conviveu, mas ninguém lhe respondeu. Fuçou nas gavetas e baús, achou muitas informações, mas nada sobre aquele espaço, o lugar que ela escolheu para habitar, seu canto. Como poderia saber de si se não sabia do lugar que assumiu como seu?
‘Crash!’, mais um estrondo, agora tão forte que ela jurava ter balançado a torre, será que ela cairia de lá, será que o vendo seria tão forte a ponto de derrubá-la do seu cantinho?
Já tinha inventado várias associações para sua condição: uma gaiola com um passarinho sem asas, um aquário com um peixe solitário, uma galinha botando ovos. Achava curioso só conseguir pensar em animais, por que ela não se achava parecida com gente?
Desde cedo foi ensinada. Sabia ler, escrever, tocar, pintar e bordar. Sabia também como se comportar com elegância à mesa de jantar, como dançar uma valsa e também como portar um belo vestido. Tudo isso fora ensinado por diversos professores, que vinham, ensinavam e iam embora. Certa vez se afeiçoou a um professor muito sério. Ele a ensinou a tocar flauta. Enquanto ele falava ou mostrava como ela deveria segurar ou manusear o instrumento, ela observava seus gestos, o brilho dos seus olhos, tinha certeza que tinha uma personalidade muito mais ousada do que aquilo que ele mostrava. Passava os dias nas aulas e as noites sonhando, supondo quem era aquele homem misterioso que se expressava através das peças de Mozart.
Sem aviso, um belo dia, apareceu uma professora de piano em substituição ao belo senhor da flauta. Foi bem decepcionante, o piano nunca foi seu principal instrumento. Como era teimosa aquela mulher exigente, que vivia a respirar fundo quando se errava uma nota.
Pensando bem, aquele ar todo que passava pela flauta, que produzia aquela beleza de som, a levava muito longe, além daqueles muros. O coração do pássaro voava alto e se inundava de paixão e desejo.
Ela foi crescendo. Como já sabia tudo que precisava, os professores foram sumindo. Sempre se perguntou quando usaria tudo que aprendeu. Afinal estava isolada, sozinha, com quem dançaria uma valsa? Para quem tocaria Mozart?
Sabia que algo não estava certo, mas não imaginava o que poderia estar errado.Tempestade forte. Muita água caía do céu, escorria pelos vidros, devia fazer grandes poças no jardim.
Pensou no professor de flauta, aquele homem misterioso. Relembrou sua certeza de que ele era ousado. Tudo isso provocou naquela alma frágil um desejo de fazer algo inusitado, inesperado. O que ela poderia fazer? Já estava saltitando pelo pequeno dormitório e o corpo se agitava cada vez mais. Tomada pela falta de ar que já começava a sentir abriu as cortinas num gesto brusco e veloz. Olhou a água escorrendo pelo vidro. Viu a si mesma se misturando com aquela imagem. Pareceu sentir aquela água escorrendo pelas suas mãos, pelos braços. Precisava de ar, queria respirar, produzir um som como o da flauta.
Abriu a janela, sentiu o vento, a chuva, tudo inundou seu rosto e aquele pequeno cubículo. Olhou em volta, a imagem daquela tempestade mudou, o tormento da ameaça se transformou num convite a um baile cheio de vida, de som, de luz. Aquele quarto realmente ficou pequeno demais, não para o corpo ou para as ideias, mas para o desejo. Ela queria, precisava ir lá fora, sentir o corpo todo envolvido pela presença daquele presente, daquele céu e terra.
Tudo era tão urgente que ela tinha apenas dois caminhos, ou pular da janela ou descer desesperadamente o monte de degraus que a distanciava da realização daquele desejo enorme. Tinha pressa, o corpo gritava. Ele estava tão vivo que precisava se mover, o salto pela janela impediria o corpo de participar ativamente dessa louca aventura, ela opta por descer, correr em direção ao lado de fora.
O corpo se move, numa corrida desenfreada. A alma se entorpece e ela se deleita com tanta emoção. Ela chega em frente a porta que dá acesso ao jardim, ao mundo. Sem pensar,abre e sai, para e deixa que tudo aquilo continue sem tempo, sem juízo, sem medo.
Ela não poderia dizer quanto tempo durou esse estado de prazer, mas certamente foi o bastante para mudar de vez aquela existência. Deixou pra trás aquele alguém que esperava uma história para ser. Assumiu seu caminho, sozinha, em direção ao além.

Costumava contar que nasceu num dia lindo, durante uma tempestade amedrontadora. Misturava histórias do passado e do presente criando uma nova linha do tempo para sua existência. Inventava as mais divertidas situações para aquele quartinho em que viveu. Criou uma árvore genealógica, decidindo quem eram seus antepassados. Confirmava tudo com as informações tiradas dos baús, das gavetas e de todos os livros lidos e canções aprendida, além das fantasias anímicas que fizeram parte da sua solidão. Fora daquele castelo, percebeu a riqueza que existia lá dentro, mas que era impossível de ser compartilhada quando não havia liberdade e nem um outro que queria saber.

Simone de Paula - 28/1/2015


Conto inspirado nos concertos de Brahms e Liszt e nessa pintura que não sei de quem é.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Sem retoques.


Todos os dias a cena era exatamente a mesma: ela levantava, caminhava até a cozinha, preparava seu café e depois se vestia para mais um dia. Saia de casa com uma determinação visível em seu corpo, como se estivesse a caminho de algo que exigiria grande esforço.

Quando chegava à entrada do teatro, sempre parava e lhe lançava um olhar. Olhar de reconhecimento do espaço e de si. Todos os dias chegava precisamente no mesmo horário, sentava rigorosamente na mesma poltrona do lado esquerdo, mais ao fundo e conferia o relógio. E, logo, ficava irritada com qualquer atraso.

O ensaio começava e ela fazia parte de todo aquele cenário. Era a menina que religiosamente assistia aos ensaios e depois simplesmente ia embora. Como se cumprisse uma missão. Oficialmente, não fazia parte de tudo aquilo, não fazia parte da orquestra, apesar de todos ali a reconhecerem. Nunca tinham trocado nenhum palavra. A única relação que se estabelecia era o olhar.

Quando o ensaio começava, ela nem piscava, não desgrudava os olhos dos músicos e nada passava do seu crivo. Por fim, o pensamento claro de que se fosse ela no palco, nada precisaria de retoques. Levantava e voltava para casa com a certeza da sua perfeição. Perfeição sustentada em seu corpo imóvel na poltrona, sem qualquer risco de fracassar. Todos os dias, sentada na pláteia, ela era a violinista irretocável, a obra prima por essência.

Carla 19/01/2916

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O aniversário de Virgínia

Viirgínia estava completando 52 anos naquele dia. Acordou e seguiu sua rotina normal. Chegou ao trabalho e ganhou algumas saudações carinhosas dos colegas. Recebeu alguns telefonemas de familiares e amigos ainda na parte da manhã. No email tinham cartões padronizados das lojas nas quais fez cadastro alguma vez na vida. Estava feliz. Sentia-se parte daquele mundo em que vivia.
Almoçou com os colegas e ganhou a sobremesa pela data especial. Tudo correu bem.
Passou o dia pensando se iria comemorar no final de semana com uma festinha em casa. Ao mesmo tempo sentia o coração aquecido, pois essa situação lhe trazia a impressão de ser querida.
Chegou em casa, tomou um banho mais caprichado e sentou confortavelmente no sofá, enquanto esperava a comida que chegaria em alguns minutos.
Todo o burburinho do dia a impediu de voltar a pensar em si como vinha pensando na última década. Sabia que tinha envelhecido, que não era mais a mesma. Havia deixado de fazer muitas coisas que tinha imaginado que seria, parte da sua história, que o tempo tinha passado. Foi interrompida pelo toque da mensagem do celular. Alguém lhe escrevia mais um recado de felicitações e quando leu, percebeu algo que nunca tinha notado, seu próprio nome. Ler as letras V i r g í n i a coladas uma na outra, pronunciar tudo emendado, nunca tinha revelado para ela o sentido que ela acabara de ver: ela era virgínia, virgin, virgem. Sim, era a verdade mais absoluta que poderia existir, era virgem da própria vida.
Virgínia era sozinha. Filha única, bem cuidada e muito educada. Estudou como era esperado. Teve as amigas que fizeram parte da sua vida, aquelas com quem estudou e trabalhou. Sempre atenciosa com os familiares e muito cuidadosa com os pais. Namorou pouco. Teve seu primeiro namoro sério aos 21 anos. Ficou com Everton até os 29. Noivos, prestes a casar. Mas ele desistiu porque pretendia seguir carreira de diplomata.
Atônita, era assim que se sentia.
Começou a se lembrar que as pessoas à sua volta cometeram atos impulsivos, rebeldes ou inconseqüentes. Ela não.
Forçou um pouco mais a memória e foi atrás dos piores, daqueles que foram vândalos, ilícitos, proibidos.
Ela nem conseguia se lembrar se alguma vez teve vontade de fazer alguma transgressão, pois se tivesse pensado, desejado, já teria valido a pena.
Era virgem, completamente, e não tinha ideia por onde procurar o que seria o gatilho da mudança.
Desde a morte dos pais, parecia que ela estava esperando a sua própria morte para reencontra-los, pois seguia a rotina e os pensamentos vigiados como se estivessem ainda morando juntos.
Começou tentando fazer uma bagunça, mudou os móveis do lugar. Com o esforço, ficou com os cabelos meio desgrenhados e assim permaneceu, queria muito que o entregador de comida chegasse e a visse assim, descabelada.  Subiu no seu quarto e puxou os lençóis. Riu por serem atitudes tão infantis e ingênuas. Mas estava excitada com a possibilidade de fazer 'bobagens'.
Se isso era infantil, o que seria adolescente? Pensou ela. Com um olhar satisfeito, começou a falar palavrões, todos que lembrava, mas sabia que era tudo muito suave, palavras que se ouvia na tv, nas novelas, mas para ela, era algo bem forte.
Tocou a campainha e ela se ajeitou um pouco para atender o entregador. Um ato automático, mas que era próprio dela demais para ela deixar de fazê-lo.
Quando abriu, deu de cara com o Zeca, antigo colega de bairro, que vinha no lugar do entregador. Ela estranhou e ao mesmo tempo reconheceu o colega. Perguntou educadamente da vida e da família, da mulher e dos filhos, e ele respondeu sem muita animação. Ela olhou com carinho para ele e ele se sentiu querido por ela.
Ela então teve a ideia de continuar se desvirginando. Convidou Zeca oara dividir com ela a comida, pois era seu aniversário e ela estava sozinha. Aliás, disse que esteve sozinha a vida toda. Ele aceitou. Estava também com 52 anos. E sua vida era bem decadente: entregador de comida para pagar a pensão de 3 filhos.
Entrou, comeram, relembraram o passado e a noite terminou assim. Ele saiu, agradeceu a gentileza e foi embora. Ela entendeu que as coisas não poderiam ser tão rápidas, pois ela queria mudar tudo, mas o que era tudo? Mudar de quê para quê? Eram mais perguntas do que respostas. Ela tinha feito 52 anos e descobriu numa fração de segundos que as certezas que ela tinha de mais de meio século de vida tinham se tornado dúvidas que duravam uma eternidade. Melhor, que eram dúvidas da humanidade. E que, diante da falta de resposta para elas, inventaria um jeito de viver novo. Foi o que ela fez, escolhia algum tipo de mudança quando percebia que era o jeito antigo de agir, ou pensar, ou mesmo sentir. Dizia assim: quando entendo o 'o quê' e posso saber para quê mudar.
Em um ano ela tinha viajado 3 vezes. Gastado parte do dinheiro deixado pelos pais com uma pequena reforma na casa, que agora tinha mais a sua cara. E tinha aceitado mais convites para tomar a tal 'cerveja no bar' com as conhecidas.
Na manhã do aniversário de 53 acordou mais tarde. Estava na praia e tinha tirado a semana de folga no trabalho, pois estava comemorando o primeiro ano de sua vida. Com o raiar do sol, raiou também mais um desejo, dessa vez o de andar de lancha e deixar que o vento fresco e a água salgada lhe abençoassem.  Queria agora ser batizada.

Simone de Paula - 13/1/2016

Conto inspirado no livro 'Memórias de minhas putas tristes', de Gabriel Garcia Marquez

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O tempo que não me pertencia.

Estranhei a presença de todos no aeroporto, mas nunca esperava receber tal notícia. Entre abraços, beijos e choros um dos meus irmãos tomou coragem e falou: "Nosso pai faleceu no mês passado."

No momento exato da notícia não consegui me concentrar na informação da morte do meu pai. Só consegui pensar onde estaria no mês passado. Já faz algum tempo. Quem eu era no mês passado? Não me comovi com a notícia, apenas flutuei nesse tempo que existiu entre o momento da morte e sua notícia. Nem sequer perguntei como ele morreu ou o que aconteceu. Só pensava em como vivera um mês inteiro com a ideia de que tinha um pai vivo. Fiquei um mês sendo filho de um pai morto sem saber. Depois, consegui perguntar algo: onde ele está? Ou melhor, onde foi enterrado? Enquanto perguntava, dentro de mim estava fazendo um enorme esforço para tentar encontrar onde eu estava há um mês. E a primeira coisa que lembrava é que estava em um país que não era meu, mas com a sensação de ter encontrado um lugar.

Sentei na mala, o único objeto que me dava referências. Sabia exatamente o que tinha trazido. Arrumei de forma sistemática tudo que iria me acompanhar nesse retorno temporário para resolver questões burocráticas. Só não imaginara que teria que resolver a ausência total de burocracia quando se tratava da morte do meu pai. Diante de mim, uma família que vivenciou toda a burocracia, ritos e encontros que uma morte exige - obituário, corpo, velório, enterro, missa de sétimo dia e de um mês. Eles todos sabiam onde estavam no mês passado e eram detentores de um acontecimento que não me pertencia. Eles choravam ali um pai que tinha morrido e eu chorava um tempo de um pai morto.

Me senti excluído e impossibilitado de viver tudo aquilo. Teria que matar meu pai sozinho, sem corpo e acontecimento, com retalhos do que escutaria e do que vivi no último mês. A notícia não anunciava nada naquele momento. Teria que ficcionar a minha história, o meu momento de perda. Não havia
perdido meu pai ali, quando minha família me dava a notícia. Perdi meu pai em um tempo que vivia
sendo filho de alguém morto.

Carla Paiva - 12/01/2016

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O tolo e a prova



Me vi estúpida. Não porque menti, mas porque tentei lhe convencer de que a mentira era verdade.
O tempo era exato, presente absoluto. No entanto, desviei covardemente de assumir a culpa que era minha, não pelo ato, mas pelo fato.
O que mais eu queria como prova da minha ilusão se não as inúmeras mentiras que eu mesma contava a mim e aos tolos que esperavam de mim uma verdadeira certeza da plena liberdade?
Mas isso não é de hoje, vem lá de trás. Não digo a culpa, mas o fato. Não, não o fato, mas a ilusão de que não se prova, mesmo que se possa provar.
Prova é uma palavra curiosa, pois serve tanto para experimentar, como para confirmar. Por isso é estúpido tentar provar, pois está do lado da tolice achar sentido na experiência.
Volto novamente ao fato sem ato, a prova experimentada, sem garantia de encontrar a medida exata que encaixa na conexão entre paladar e tato.
Lembro que eu deveria escrever um conto. Mas contar o que, o fato ou o ato? Qualquer coisa que se conte não contaria como registro exato, nem do ato, nem do fato, nem da culpa inexistente do responsável pela ousadia em usurpar de mim a necessidade de prova, provando e comprovando, experimentando e confirmando o que eu já sabia: nunca existiria ato, pois era fato, tudo não passara de uma ilusão da tola que fui por querer ser aquilo que já era.

Simone de Paula - 05/1/2016

Conto inspirado em: "Tolo é quem deseja uma prova do que não consegue perceber; Estúpido é quem tenta fazer o tolo acreditar." - O casamento entre o céu e o inferno, de  William Blake

Este conto participou do 1º Concurso Casarão de Minicontos. Infelizmente não ganhei, mas foi minha primeira participação em um Concurso Literário na vida adulta. 
http://casaraodepoesia.blogspot.com.br/2016/04/normal-0-21-false-false-false-pt-br-x.html
http://casaraodepoesia.blogspot.com.br/

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Conto porque conta!

O projeto ‘Conto porque conta!’ nasce da vontade de soltar o verbo, a caneta e a imaginação.

Formamos uma dupla afinada que gosta das letras, palavras e sentidos. Percebemos que somos tocadas pelo mundo, e o que nos preenche fica dentro da gente.

Decidimos começar a escrever mais, não deixar acumular. Fazer circular as ideias e a energia que nos fazem querer viver nesse mundo, aproveitando o que de belo e instigante existe.

Pretendemos publicar dois contos por semana, um na terça e outro na sexta. Sabemos que a freqüência é alta, mas acreditamos que essa regularidade ajuda a melhorar o que se produz. Veremos no final do ano.

Vocês não encontrarão o famoso ‘quem somos nós’, pois deixaremos que os contos nos apresentem.  Afinal, a escrita carrega mais de nós mesmos do que imaginamos. Queremos que esse nosso retrato seja criado na relação entre o que se escreve e o que se lê.  Descobriremos o que nem nós mesmas poderíamos imaginar, pois é assim que a narrativa se constrói: livre.

Benvindos!

Arte: Katharine Morling