sexta-feira, 30 de junho de 2023

Beth

Beth, breathe!

Ela poderia usar esse apelido de escola na vida, mas optava por fumar e beber para aliviar a pressão que sentia.

Começou a notar uma dormência na ponta dos dedos, que inviabilizada suas ações. Mexia as mãos aflitivamente, mas escondia que estava em descontrole das suas ações e sentimentos.

Vaidosa, escondia todos os podres sob a pele alva, a beleza nórdica, a personalidade cordata.

O colapso veio no dia em que dirigia com os filhos voltando do supermercado. No rádio, uma música abriu uma brecha de memória do último jantar em que estava com o marido e olhava tudo que poderia estar acontecendo sob seus olhos, mas que ela não deveria saber. Na mesma hora que essa lembrança apareceu na sua mente, os dedos começaram a trimilicar. Se descontrolou e enfiou o carro no poste. Ninguém se machucou, mas ela precisou admitir que tinha alguma coisa errada com ela.

Foi ao médico, que a mandou ao psicanalista, que ouviu ela falar as banalidades da vida burguesa, sem entrar nas angústias que carregava no peito. Pedia para acender um cigarro toda vez que se aproximava do assunto que provocava o descontrole. Segurava o cigarro apagado entre os dedos, os mantendo controlados. 

Meses depois encerrou o tratamento, não queria mais ter que encarar a si mesma, era difícil continuar escondendo o que não deveria vir a tona. 

Encontrou outra forma de disfarçar o saber que não podia ser revelado. Tentava fugir, cavalgando diariamente, sem destino e com vigor. 

Desejo e raiva misturados, intensificados a cada ciclo de vida. Insatisfação em cima de insatisfação, banhados com fumaça e álcool. Vaidade e vergonha duelando para ver quem ia vencer a parada a cada encontro social. Não havia maquiagem que escondesse a tristeza que aparecia por trás do semblante altivo e realizado. 

Pensava em tudo, tentava de todas as formas contornar a realidade, só esquecia de uma coisa, coragem. 

Dormia ouvindo a si mesma: Beth, breathe!

Simone de Paula - 30/6/23

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Alma

Alma é uma pesquisadora de linguagens arcaicas e extremamente dedicada ao seu trabalho. Chefe da equipe do departamento de pesquisa de um respeitado museu, passa o dia no laboratório investigando lascas de pedras antigas, no intuito de decifrar a origem de uma língua que pode ter chegado até os dias de hoje, tentando recuperar o que foi perdido.

Por outro lado, conserva uma fachada de mulher inabalável, mantendo fora de seu horizonte as próprias perdas. Sofreu perdas fortíssimas nos últimos anos. Todas inesperadas, como geralmente a perda acontece. Algumas delas até puderam se tornar uma espécie de raiva, atribuindo a culpa à alguém. Mas outras, só poderiam ter sido obra do destino, do acaso, ou de deus, três figuras que Alma optou por não incluir no jogo da vida. Não sabe o que fazer com elas, nem com as perdas, nem com as figuras.

Mesmo ressentida por tudo que tinha vivido, Alma conseguia manter o ritmo, especialmente com as atividades do trabalho. Porém, o diretor do museu a chamou para dar duas notícias. Segundo ele, uma boa e outra ruim. Ela realmente não via graça nesse tipo de clichê, mas jogava o jogo de responder, para não criar um caso com uma coisa boba e tocar no ponto sensível que era a vaidade daquele chefe. Pede que dê a notícia ruim primeiro. Ela escolhia a ruim sempre, tinha uma explicação para isso, era realista e nenhuma boa notícia tiraria de cena, ou aliviaria, a ruim. Não se via como pessimista, mas tinha escolhido trabalhar com dificuldades, com coisas que raramente poderiam se realizar plenamente. Era movida por compromisso e obstinação, por mais fugaz que pudesse ser o sucesso do seu empenho.

Ele a comunicou do corte de verba que a pesquisa dela teria. Já havia muito tempo que os estudos estavam em curso e os resultados, ou descobertas, eram constantemente questionados. Preferiam investir em algo que pudesse ter maior repercussão pública, atraindo olhares para o museu. Ela reagiu, argumentou, mas percebeu nele um olhar de piedade no empenho dela, pois não teria como reverter a decisão. Primeiro, a raiva movia sua argumentação, mas diante desse olhar, tomada pelo orgulho, se calou e disse aceitar. Perguntou como fariam com tudo que já tinha sido produzido. O olhar dele mudou, tinha traços de segredo no ar. Disse que agora vinha então a boa nova. Ela ficou meio atordoada com esse jogo, ainda com o misto de raiva e humilhação, colocou a mão na cabeça e perguntou do que se tratava a boa notícia. Uma empresa de alta tecnologia, que trabalhava no campo da robótica, já vinha desenvolvendo robôs há décadas. E agora, o novo protótipo, eram robôs humanizados, com o intuito de serem pares românticos de pessoas solitárias. Mas eles precisavam de alguém para testar esse novo produto, e em troca, dariam uma boa quantia para a continuidade de alguma pesquisa. Ele tinha pensado nela, pois além da seriedade como pesquisadora, também era uma mulher disponível no campo amoroso. A primeira reação dela foi dizer que não, que jamais se prestaria a esse papel por dinheiro. Mas ele a elogiou, apresentou o valor que estavam dispostos a oferecer, e ainda disse que tinham outros pesquisadores que poderiam dispor dessa verba. Concluiu dizendo, "vai acontecer, com você ou outra pessoa." Mais uma perda, agora, no entender dela, da dignidade. Aceitou, não tinha como desperdiçar a verba, afinal, sua equipe de pesquisa também seria dispensada caso tivessem que abandonar o trabalho.

Ela recebeu por email um questionário longo, cheio de detalhes e pormenores, que ela levou mais de uma semana para responder. Além do tempo real para prencher tudo, ainda existia a resistência dela, deixando para depois, fingindo ter esquecido, mas realmente muito perturbada com aquele 'estranho' em sua caixa de emails. Uma vez enviado o questionário, era a vez de trabalharem na programação do robô e marcarem um primeiro encontro de teste. 

Ela chegou na sede da empresa, um prédio high tech, muito iluminado e cheio de vidros e colunas de metal prateadas, respondendo ao nosso imaginário futurista. Foi encaminhada para um corredor e passando por uma cortina de veludo, entrou numa sala que simulava um bar tipicamente para encontro de casais. A hostess indicou sua mesa e a apresentou para Tom, um homem bonito e bem arrumado que a cumprimentou de forma amigável, mas sedutora. Ela entendeu que aquele era o robô. Ficou surpresa e achou graça em tudo, mas mantinha as defesas ativadas, pois não cairia naquela falácia de achar que por parecer um ser humano, aquela máquina seria capaz de enganá-la completamente. Começam a conversar e ela percebe que há uma possibilidade de criar um paradoxo no assunto em que estão. Faz isso, lança mão da sua competência, da sua inteligência humana e seu profundo conhecimento no funcionamento da linguagem, que provoca um bug no sistema do robô. Como ele não conseguia decidir o que responder, como sair daquele indecidível do paradoxo, ele pifou, deu tilt. Ela saiu de lá vitoriosa, imaginando que cancelariam o projeto. Mas isso sim foi uma ilusão, pois foi apenas uma questão de ajuste no sistema operacional e na programação e ele estava pronto para o novo encontro. Levou menos tempo para resolver o problema que ela criou do que ela levou para responder o questionário com informações pessoais. Novo encontro e ela saiu de lá com ele a tiracolo.

Foram para a casa dela, ele programado para o romance e ela programada para inviabilizar o processo. Começam a conviver e ela praticamente o coloca dentro do armário do quarto dos fundos, ou seja, ela manda ele ficar lá e vai viver a vida dela, sozinha, como de costume. Mas ele está ali, comprometido a realizar o propósito da sua existência, ser o parceiro amoroso de Alma. Ele atua como um namorado perfeito, dando atenção a ela, fazendo tarefas domésticas, oferecendo mimos e cuidados. Ela não cai em nenhuma dessas armadilhas, pois isso não a seduz, pelo contrário, a faz ficar mais resistente, pois é estereotipado demais. Porém, ele foi programado com dados dela, e ela nem percebe que pode ter desejos de ter um homem nesse estilo. Ela nem se questiona, só segue na fé cega de que vai, no final do período de algumas semanas, dizer que é impossível esquecer que um robô é um robô. Ela, uma pesquisadora respeitada, quebrava uma importante regra de pesquisa, que é não saber a priori o resultado do que está sendo investigado. 

Alma vai se incomodando mais com a presença de Tom, algo exagerado para a situação. Porém, o que vai se passando de fato é que ela vai caindo no jogo de conquista pelo simples fato dele estar ali. A presença dele, a insistência dele, o compromisso vão abrindo a alma dela para aceitá-lo nessa posição de casal. 

A vida dela vai se mostrando maior do que apenas o trabalho. O pai idoso, com problemas neurológicos, o ex-namorado que agora está em outro relacionamento, o aborto sofrido que levou a relação dela para o buraco, tudo isso vai aparecendo e Tom, não tem muito o que fazer, a não ser estar ali, permitindo que ela possa, através dessa presença e aceitação que ele oferece, viver os lutos das perdas sofridas. Alma vai se envolvendo com Tom, deixando de lado a resistência em aceitar um outro ao seu lado. Ele permite que ela viva as emoções sem que precise se explicar ou se segurar. Ela pode reclamar, brigar, atacar, o usa da forma que quiser. Ele vira companheiro quando ela não quer estar só e nisso, pode contar com a divisão do peso das experiências dolorosas da vida. 

Alma agora está dividida, entre ter aquele homem-máquina ao seu lado (com quem pode dialogar, compartilhar, destruir, numa relação que possibilita a permanência e a consciência), e de que ele não é humano, mas uma máquina (ele faz o que ela manda, ou seja, ele executa comandos). Alma se vê encantada, quase se apaixonando, mas isso é demais para ela. Ela o manda embora, ele vai, e ela entra em crise de ser a verdadeira responsável, dessa vez, por essa perda. E, além disso, tinha que se haver com a empresa, que não sabia onde encontraria o protótipo que estava sendo testado. 

Ela está tão perdida quanto ele. Quando se conheceram ela estava perdida sobre como processar o que já não fazia mais parte da vida como ela conhecia. Mas ela estava inteira nisso. Agora, o que a deixava perdida é não saber mais muito de si mesma. Ainda estava levemente deprimida sobre o que não tinha mais, mas Tom abriu nela um novo desejo de amar, permitiu que ela se sentisse viva novamente, quebrou a rigidez que a acompanhava para não se entristecer e abandonar tudo. Porém agora, que tudo isso foi experimentado, inclusive um desentendimento entre eles, ela não quer mais viver tão fechada em si mesma. 

Sai de casa se rumo, mas com um destino, o mesmo lugar em que desde a adolescência ela tinha se permitido amar. Chegando lá encontra Tom, que sabia que esse era o lugar de segurança dela, portanto poderia ser o dele também. Novamente ao lado dele ela pode relaxar. Encontra a origem e o destino no mesmo lugar.

Simone de Paula - 23/6/23







sexta-feira, 16 de junho de 2023

Aconteceu

Por que tem coisas na vida que só acontecem? Foi assim, fácil, porque só aconteceu. 

Não foi num dia único, como um evento com hora marcada no céu estrelado. Também não foi uma coisa programada, planejada, organizada para tal acontecimento. Aliás, como foi 'SÓ', nem dá muito para classificar como acontecimento. Foi mais um fenômeno observado no dia seguinte do que um efeito de um ato.

Nem dá para saber direito como começou, se foi numa conversa, num olhar, numa chateação pelas coisinhas complicadas da rotina diária de dar soluções para os problemas criados pelos outros em troca do dinheiro injusto para pagar pelas bobagens que parecem agradar aos sentidos ou à vaidade do ego. 

Também não dá para saber quando acabou, porque nem acabou, mas já não é mais faz tempo. 

Eu sou meio masoquista, gosto de uma coisa difícil, sei lá, parece que eu escolho pelo que não está lá, disponível, neurose clássica. Porém, não foi bem isso que aconteceu nesse caso. Aliás, teve uma outra historia, nesse mesmo contexto, com os mesmos elementos envolvidos, que foi muito, mas muito difícil. Tanto foi, que desisti, porque tentar empurrar a montanha do lugar que ela acredita estar, é tarefa impossível. Mas daí, que depois da desistência, de minha parte, as coisas mudaram de rumo, foram se desenrolando. Foi aí então que começou a se dar a facilidade, e aconteceu.

Foi tão puro que brotou lágrimas. Não em mim, que sou meio insensível, sei lá se porque me chateei muito na vida e quase tudo pouco me importa, mas teve essa aguinha salgada lubrificando os olhos cheios de expectativa, querendo só dizer, "foi isso!"

Parece cheio de mistério, né? Mas não é não, é que pela facilidade da coisa, por não ter direito um evento que inaugura, por ir fazendo até que apareceu feito, fica difícil contar de forma mais explícita e encadeada. Foi assim, começou sem se saber como, e está aí, acontecendo. Terminou sem terminar, sabe? Sem dor, nem perda, só passou, sem acabar.

E pra concluir, logo, logo vai ter uma prova concreta disso tudo. Mas essa prova concreta é tão apenas um pedacinho, que nem dá pra ver na prova o ocorrido.

Nem vou anunciar um 'aguardem', porque não tem nada para criar suspense, como disse desde o início, foi fácil, só aconteceu, sem expectativa, sem espera, sem nem saber que ia ter.

Simone de Paula - 16/06/23

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Espaço

 Eu quis espaço.

Luz, ar, vazio.

Tirei parede, abri porta e janela.

Os detritos ficaram no caminho, impediram circulação.

Fiz limpeza. Água, vassoura e rodo. A trilha apareceu.

Ainda tinha um calombo aqui, uma barreira ali, só vi porque tirei o que tinha sobrado das quebras.

Cortei um pedaço através de uns buracos novos, pequenos, só pra passar uns cacos.

Saiu tudo.

A estrutura está lá, segurando o espaço, visível, possível.

Agora sim, mais luz,  ar, circulação afetiva e tempo de passagem.


Simone de Paula - 09/6/23

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Intervalo

Há pouco mais de um ano parei. Interrompi esse exercício de escrita, ficcional, reflexivo, pulsional.

Era um esvaziamento - palavra tão repetida atualmente que nem representa direito o que ela pode significar - de ideias, de desejo. 

Intervalos e pausas são fundamentais, especialmente nos momentos que tantas coisas estão por vir. E vieram. Algumas esperadas, outras já imaginadas e outras tantas, essas, de surpresa total e absoluta. 

Morri, sobrevivi, renasci.  Escrevi, publiquei, mudei, reconquistei.

Nesse processo longo de escrever semanalmente adquiri músculo e fluidez. Os dedos engrossaram e a língua amaciou. Por isso, estou aqui, mas também ali, que é onde desfilam os melhores instantes.

E o mais interessante disso tudo, especialmente nessa retomada dos Contos semanais, é que quanto menos palavras eu tenho para dizer, mais possibilidades se expressam ao escrever. Tiveram momentos que a escrita foi um jorro de coisas não ditas, pelo ensurdecimento e endurecimento do meu outro. Mas hoje o vetor inverteu. Primeiro, porque esse outro, tanto faz, se for surdo ou bom ouvinte, será preciso que seja leitor. Depois, porque quem não quer falar sou eu, daí, que não tem som pra circular, mas letras para perfilar.

Acabou o intervalo, estamos de volta!

Simone de Paula - 02/06/23

Kathy Womack