sexta-feira, 28 de maio de 2021

Outono

O dia amanhece e já é quase inverno. Demora até o céu ficar claro, mas vale a pena pela qualidade do azul que se forma, rodeado do alaranjado que se projeta nas formas dos prédios espalhados pela rua.

Hoje ainda é outono, mas meu corpo já anuncia um tempo de frio e recolhimento, faz parte de mim, dos ciclos da natureza do mundo.

Gosto dos meios termos. Outono e primavera me agradam mais do que inverno e verão. Mas, mesmo preferindo as transições, menos intensificadas das polaridades, é impossível não passar por elas. Para contornar o círculo todo é preciso passar pelos polos.

Temperatura baixa, tempo seco, clima frio, tudo converge para o desejo por corpos, algo que nos eleve desse estado que reflete solidão e tristeza. Não é exatamente isso, mas simula. Se busca intimidade, acolhida, calor. Essa é a melhor parte, querer ficar junto.

Vivemos tempos aflitos, que fazem arder nossas almas. Medos das perdas, inevitáveis. Pressa pelo futuro próspero, incerto pela própria lógica. Solitários no nosso individualismo, caprichoso pela busca de prazeres exclusivos. E o inverno chega, nos abate, nos derruba e sussurra baixinho nos nossos ouvidos: escolhe seu canto!

Enquanto escrevo isso, o azul quase cobalto ficou mais suave, clarinho, e o laranja, fechado, se tornou mais vivo: o sol acende no céu.

Bom dia!


Simone de Paula - 28/05/2021

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Desespero

Contrariando a minha espera permanente pela sua chegada, sou tomada pela força invasiva de você em mim.

A cabeça foi invadida pelos pensamentos mórbidos, coloridos com a intensidade de Almodóvar, mas na escuridão de Tim Burton.

O corpo agitado, controlado por essa camisa de força que é a racionalidade, só te faz mais potente.

Quero sair daqui! Quero você fora de mim! Como faz?

Fujo e te carrego comigo, não só como uma sombra que me acompanha, isso seria melhor. É pior, é você no centro do meu peito, espalhado pelas veias, tubos e cabos, todas as formas de transmissão de informação que possa ter em mim. 

Pane geral, olho para fora e grito para dentro. Te expulso, mas os pulsos me descontrolam mais ainda. Não sou dona de nada em mim. Sou tua!

Não é o que falta que me aflige, mas o que me entope de você. 

Quem te enfiou aqui? Veio devagar, ocupando os espaços vazios e me tomou por inteiro. E agora, eu nesse desespero, não posso mais responder aos seus pedidos repetidos e vazios.

Rasgo a pele, furo os tímpanos, racho o crânio na parede. Nada funciona, ainda resta você em mim. 

Preciso de ar, espaço que seja ocupado de circulação do invisível, faxinando a via principal e, quem sabe, as extremidades mais escondidas. 

Te pedi aqui e agora, mas não te quero mais. É egoísmo?

Refém sem chance de fuga. Resgate?

Negocio. Será? 

Antes fosse possível desistir. Não, é você em mim. Não há desistência, só insistência na sua inação.

Suportar o estado de sítio. Esperar, drenar. 

Livre!

 

Simone de Paula - 21/05/2021

sexta-feira, 14 de maio de 2021

As maçãs de Edimburgo

Era Edimburgo e tinha maçãs.

A surpresa estava por toda parte. E eu, rodeada do vento gelado e úmido de um final de outono.

As formas descortinadas na cidade iluminada pelas luzes da rua e enegrecida pela superfície molhada do asfalto só comunicavam insistentemente isso: é Edimburgo. A repetição dessa frase, vinda do mais lúcido da minha mente, vinha em auxílio ao não reconhecimento de nada que estivesse diante dos meus sentidos. Tudo era mistério mesmo que estivesse declaradamente exposto.

A excitação era atravessada pelo frio. A ansiedade se conformava na pressa do caminhar. A fala não tinha o que dizer, mas transbordava com frases inócuas, referências banais, apenas buscando sair do desconforto.

Rua, prédio, porta, chave, sala de estar. Ufa, cheguei!

Exploração do território de 60 metros quadrados confortáveis e aquecidos.  Investigação de armários, em busca de chá para esquentar o interior do corpo que deveria se manter em aproximadamente 37 graus.

A ansiedade baixou, o corpo acostumou, a cabeça decifrou: estava tudo ali, me entendia naquele universo estranho, com todos os elementos conhecidos necessários para aquela noite de descanso.

Exploração II, comida! 

O anfitrião gentil tinha deixado pão, leite e maçãs!!! Que curioso, que excêntrico, que prazer! Quem deixa maçãs para o café-da-manhã? 

Nem todos tinham gostado dessa opção, e saímos em busca de mais. Eu só pensava nas maçãs. O que eu comeria com elas? Sim, iogurte e flapjack, aquela gororoba de aveia e mel que só pode ter sido inventada por elfos, tamanha suavidade ao paladar.

Os dias seguiram e eu, nas maçãs frias e chá quente. Me pergunto de onde veio o gosto pelas maçãs. Talvez as histórias da Branca de Neve. A oferta na infância foi a mesma que com outras frutas, então, acho que não foi por aí. Confesso que essa queda pela maçã, que veio desde Eva, também tem uma carga de fazer diferente do comum. Mas, seja por isso ou por outra coisa, realmente é uma fruta que me seduz. 

Maçã do amor, cozida, assada, picada, em compota, todas elas. No entanto, o prazer de enfiar os dentes naquela carne firme, experimentar o suco úmido e doce que acompanha a massa seca e neutra, tem um efeito muito erótico. Misturada com iogurte, que frescura! Acompanhada de chá, que aconchego!

Bem, mas voltando a Edimburgo e seus dias iniciados com maçãs, me lembro que tenho que voltar.

Simone de Paula - 14/05/2021




sexta-feira, 7 de maio de 2021

O silêncio das esferas

Podia ser um sonho, thetahealing, ou imaginação ativa, mas era mesmo o espaço.

Imenso vazio, habitado por incontáveis corpos fixos e móveis. Silenciosos. Que seguem seus ritmos com a tranquilidade da eternidade. Sem som, sem cheiro e nem textura, apenas uma imagem, que só se vê pela teimosia humana de querer encontrar o mais-além da sua humanidade: deus.

Se a ausência de som absoluta nos permite ouvir nossos órgãos funcionando, o que seria possível ouvir das esferas celestes? O planeta tem som?

Stockhausen compôs para as estrelas, criou música para as constelações. Já que as vemos, por que não ouvi-las?

O que é possível inventar além dos sentidos, através do sensorial, para tocar o sensível?

No silêncio do universo particular de cada um de nós, essa é a arte de viver.


Simone de Paula - 07/05/2021

 



VOZ DO SILÊNCIO

O silêncio brada vazios inconfessos
Num linguajar da emoção em espera
Desatados da tribulação tão megera
Tecendo sensos selvosos e travessos

No silêncio escoa solidão em esfera
Soprando suspiros turvos e espessos
Dos enganos emudecidos e avessos
Do tormento, ásperos, tal uma tapera

É no silêncio que se traga a memória
Desfolhados das sílabas da estória
Do tempo, despertando os momentos

Tal o vento, o silêncio é uma oratória
Que verborreia o pensar em trajetória
Nos lábios lânguidos, frios e sedentos

© Luciano Spagnol
Poeta do cerrado
Setembro de 2017
Cerrado goiano