sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A palavra por vir

Se Blanchot escreveu o livro por vir, esses dias descobri a palavra por vir em mim.

Não tem forma, não tem letra, não tem nem impulso. É uma coisa que trava, sufoca, faz sofrer.

A boca cheia, o peito oprimido, o estômago estufado, o intestino entupido, o ânus rasgado. 

De fio a pavio no corpo os restos daquilo que está lá, mas sem ter como falar.

Amélie Nothomb conta da metafísica dos tubos, começa aqui e termina ali, passando liso sem nem marcar. 

É um tubo, um oco, um buraco, ou é a massa amorfa que precisa se moldar para atravessar?

Falta dente, falta músculo, falta pressão, falta tesão. 

A frase volta: eu queria encher tua boca de....

Porra! 

Mas aí é que está - A boca cheia, o peito oprimido, o estômago estufado, o intestino entupido, o ânus rasgado.

A garganta! Aspirar, engolir, regurgitar, vomitar. Sair, parir, expelir, criar.

A palavra por vir.

Simone de Paula - 28/08/2020




sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Te ver partir

Te ver partir me fez sentir uma dor imensa no meu peito.

Não tenho mais lágrimas que ajudem a jorrar pelos meus olhos tamanho sofrimento.

Tudo é de uma dimensão enorme e eterna, mas você se foi e levou o meu coração, minha alma, minha paz.

Agora só me resta esperar o dia que o sol vai brilhar novamente no céu sombrio que por ora ocupa o meu peito.

Eros soberano, assuma o controle do tempo e alivie esse mal que me toma.... devolva meu respiro que hoje se fez suspiro, adoce o som que se tornou ruído.

Simone de Paula - 21/08/2020

 

 

 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Vôlei

O jogo já estava nos últimos minutos. Era continuar jogando independente do placar. Em campo não importa quem está ganhando ou perdendo, especialmente num jogo dinâmico como o vôlei, que em qualquer momento tudo pode mudar. Tudo é justo: o tamanho da quadra, o número de jogadores, a participação da torcida, até o uniforme. Não tem sobra.

Lá no fundo da quadra, ela se preparava para o saque. Uniforme vermelho em destaque, energia concentrada, a intenção era pontuar. Aqui, eu bem colada na rede, olhava entre ela, lá no fundo, e a outra, aí na minha frente. Não tinha muito espaço para desviar o olhar, era uma posição delicada de entrever as duas, ver por entre elas, como se cada olho, mirasse em cada uma, de uma única vez. 

Uma saca bem pertinho da rede pra desestabilizar. Eu recuo e consigo recepcionar. Faço como posso e mando a bola para o lado de lá. Não posso me distrair vendo a movimentação entre elas, que pulam e se deslocam querendo rebater da melhor forma e levantar a bola e pontuar. Respiração suspensa, piscada de olho quase automática e ouço um sonoro apito ali, do meu lado direito, despertando a minha atenção. Solto o ar cansada e olho para o juiz, quero saber o que aconteceu, afinal, a bola ainda estava no ar, não tinha caído nem aqui e nem lá, e muito menos deslizado pela borda da rede. Ele manda parar o jogo, chama a mim e a oponente que dividia rede comigo. Avisa a ela que houve toque na rede, invasão no meu campo, ponto pra mim. O jogo não acaba e é hora do meu time sacar. Da beira da quadra, a melhor sacadora do time se posiciona. O jogo corre, mais um ponto. Seguimos marcando e o placar beirando o set point e com ele o match point, mas, mesmo ganhando essa, o jogo estava ganho para o lado de lá que tinha aproveitado melhor as chances anteriores. 

Apito final, juiz da ganho de jogo para elas. Mas isso não acaba aí, pra quem gosta de jogo, sempre é tempo para um novo campeonato.

Simone de Paula - 14/08/2020


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Livro do travesseiro

Se eu tivesse que escrever um livro do travesseiro, ele não seria um diário sobre os acontecimentos do dia ou as belezas da natureza. Eu colocaria ali as desventuras noturnas dos meus sonhos.

Dormir é um prazer delicioso. Pode parecer redundante qualificar prazer, mas se faz necessário porque os prazeres podem ser muito diversos. Eu mesma tenho um prazer ou outro que é mais culpado do que deleitável. Possivelmente eles aparecem mais saborosos nos sonhos, disfarçados, e aí cabem bem nesse livro mágico que se escreve noite após noite depois de dormir.

São tantas histórias que falam disso.... 

O próprio 'livro do travesseiro', de Sei Shonagon, é um deleite e se colocado no mundo onírico, funciona plenamente. As mil e uma noites, totalmente uma transmissão onírica. E tem também Alice no país das maravilhas, mas, diferente das histórias do oriente, Lewis Carroll precisa revelar que se trata de um sonho. 

Curiosidades ocidentais: ou é sonho ou é vigília. Não pode ser os dois ao mesmo tempo? É uma habilidade, sem dúvida, escrever sem definir o que é real e o que é sonho.

Voltando ao meu livro macio, que acomoda minha cabeça e permite que a transmissão de imagens e ideias inusitadas, vindas de algum lugar impreciso....

As coisas se repetem muito naquele campo, ora declaradamente reprisadas, ora colocadas em outros termos. Mas também podem trazer coisas completamente diversas. É uma surpresa atrás da outra. Quando acordo, como um leitor que termina um capítulo, posso compreender que eu já tinha visto aquilo em algum lugar, ou mesmo captar que eu já havia sonhado com aquele mesmo tema. Mas, enquanto durmo, tudo é novo, sempre. 

Sonhar é ter a capacidade criativa de escrever muito bem, com signos inesperados, sequências inusitadas e cortes surpreendentes. Como minha cabeça produz meus sonhos? Descrevê-los, ou melhor, escrevê-los, já não tem o mesmo impacto, afinal, não saber nada do que vai acontecer é a magia real que embala uma boa narrativa.

No meu travesseiro hoje tinha uma imagem linda que me levou direto ao filme O livro de cabeceira, do Peter Greenaway, mestre dos magos. A cama, o desejo, os corpos, as tatuagens cobrindo aquele torso nu, a conversa em fragmentos, o tempo. 

Acordei, sem querer acordar. Registrei, para poder deixar passar.

Simone de Paula - 07/08/2020