sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Rotina

Gosto de ter hábitos. Certamente essa afirmação causará arrepios e descaso em muitos, mas me satisfaço com uma boa rotina. Evidentemente gosto de novidades e acontecimentos que surpreendam. Mas justamente o que faz deles isso, é não serem frequentes. É na falha do hábito, na mancada da rotina, que surge o novo. 

O que me emburrece mesmo é a repetição, essa é de outra ordem para mim. É aquela velha coisa que permanece, que de tão insistente, vira fixa, estática, cristalizada. Essa sim é um pé no saco. Entra ano, sai ano, é tudo a mesma coisa. E não é como na rotina, que há uma estrutura de funcionamento com um objetivo bem definido. Não, a repetição tem uma estrutura mal-ajambrada, com um único objetivo de enrijecer mais ainda. 

Diante daquela frase: 'quem espera sempre alcança', fico aqui me perguntando, esperar o quê? que uma surpresa aconteça ou que a velha máxima não se repita?

Olho para o céu, pisco bastante para ver se as estrelas mudam de lugar. Não, elas estão lá, quase para sempre, habituadas a não fazer nada além de brilhar e se consumir até sumirem. Isso lá é assim, sem mais nem menos, apenas isso. 

Piso na terra e caminho pelo chão, ora frio, ora quente, molhado ou seco, áspero ou liso, e assim por diante. Aqui na Terra, nada é fixo, cada coisa, em cada momento, funciona de um jeito diferente. 

Mas aí, eis que entra em cena, a nossa habilidade mais humana, a falastrice. Inventamos essa faculdade de transformar as coisas em outras coisas. E, uma vez que a gente faz uma passar pela outra, selamos o destino: o futuro que é a imagem e semelhança do passado. Mas o que passou não é mais aquilo, porque, como disse acima, a falastrice travestiu isso de aquilo. Daí que justamente repetimos chamando isso de aquilo, esperando que aquilo seja isso.

Toda essa volta para dizer o que já afirmei lá no começo, gosto de rotina, é só nela que isso pode ser isso mesmo. 

Simone de Paula - 25/12/2020

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Escrever o Conto.

Eu queria escrever uma história, com começo, meio e fim. Mas para isso, era preciso primeiro saber o que contar e de quem contar. 

Decidi falar de uma mãe e seu bebê. Os primeiros meses, as impressões, sentimentos e pensamentos que naquele encontro poderiam se passar. Mas daí lembrei do pai e ele me exigiria começar antes do bebê, na história de uma mulher e um homem. Desisti, ia ficar longa demais, complexa.

Então, resolvi que poderia escrever a aventura de uma criança de sete anos passando as férias na casa dos tios. Mas daí percebi que a situação pedia uma explicação. Se eu quiser escrever sobre isso, o simples fato de ter o que contar disso me levaria a ter que explicar o porquê dessa criança, nessas férias, estar na casa dos tios. Possivelmente, os personagens aumentariam e a história dos pais entraria na narrativa.

Bem, poderia escrever sobre o envelhecimento de um homem, seu corpo, sua vida, suas desculpas. Mas como uma biografia, isso pediria ir voltando até sua infância, nascimento, encontraria de novo os pais. 

Entendo então, que aquilo que se conta faz um movimento retrógrado, em busca do início do que parece pedir para ser contado. E, quando caminhamos de volta ao princípio, na gênese estão eles ali de novo, os pais. Antes de tudo, o pai. 

Já chamamos de deus, mas a ciência encontrou um nome melhor, espermatozoide. Cada um que nomeie o primeiro de todos, o início de tudo, com o nome que quiser.

Mas nessa caminhada, pensando no pai, aquele lá do bebê da primeira história, olhando pelos olhos dele, registro um rasgo de pensamento: "ufa, dei Y, parte da dívida já está paga!"

Simone de Paula - 18/12/2021

Ilustrador: Davide Bonazzi


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Aparição

Eu queria mesmo era poder traduzir em palavras o que foi aquela aparição.

Eu estava sentada, num papo amigável, sobre questões íntimas, dores do corpo e da alma. 

O clima não era sombrio, bem como o ambiente também não estava escuro. Tinha luz, sol, cor, sorrisos e simpatia. 

O convite veio com o prévio aceite combinado: "feche os olhos!" E eis que naquele exato instante de pálpebras cerradas, o bichão pulou no vidro.

Eu estava em outro lugar. Ao mesmo tempo eu via minha silhueta de costas, numa sala escura. E via ao fundo, duas pessoas conversando numa sala de meeting. E, entre esses dois planos, um terceiro, espécie de aquário, em que a criatura apareceu.

Realmente não tive um susto, mas uma surpresa. Tinha uma cara de Gólum, zumbie, cadáver de capa de disco de heavy metal, algo desse tipo, mas jamais assustador, era uma coisa que me olhava curiosa.

Eu estava do lado escondido do vidro, tipo sala de interrogatório, ou estúdio de rádio e tv, ou ainda a chamada sala de espelho, aonde quem está do lado iluminado não vê do outro lado. 

Ainda agora, quando eu escrevo, sorrio pela carinha inocente e perversa daquela coisa e não consigo dizer mesmo a cena toda.

Somando, eram três planos, observados por um quarto olho. Dois de dentro para fora e dois de fora para dentro. E o som, do lado de cá era silêncio, que combinava com o ambiente escondido. E, do lado de lá, era vácuo, causado pela separação entre as salas. No vidro e na cena de dentro, a luz toda era vermelho alaranjada, quente, vibrante. E, na penumbra, era apenas um cinza preto e branco, ao mesmo tempo que as cores da realidade, apenas apagadas pela falta de luz do ambiente.

Surreal, sobrenatural, onírico, não dá para capturar, e isso só acontece quando a gente não planeja.

 

Simone de Paula - 11/12/2020



sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Mística

 Já se passaram alguns anos de abandono do dom. Senti cansaço e excesso. O dom não me parecia mais profético, tinha se tornado mecânico.

Foram muitas páginas de palavras plenas e mágicas tomadas como lemas a seguir. Nem sempre resultaram em vida além da mesmice dos índices e títulos que refletissem a totalidade absoluta de ser o topo da lista.

Releio, relembro, ainda desânimo em pensar que o destino está aí, permanente, imutável, cíclico, sem satisfações a dar nem para o Homem e muito menos para Deus.

Desisti de negar para aquela que mais almeja a verdade do querer e persegue o oráculo com a persistência de quem treina para obter um resultado objetivo. Aqui, as palavras são em vâo, sem sentido e nem intenção. Só visando mesmo o disfarce do controle da ação.

Simone de Paula - 04/12/2020