sexta-feira, 30 de julho de 2021

Um passo além

Acostumada com o treino estruturado que fazia desde a infância, Idália se viu tentada a experimentar um passo novo. As amigas da companhia de dança estavam animadas com a chegada de um coreógrafo, que tinha praticado com mestres do corpo em movimento. Algumas já estavam inscritas no workshop, que deveria acontecer em algumas semanas. Outras, pensavam em como organizar a vida para fazer um curso completo de formação com ele, fora do país. Ela sentia a agitação na voz e no corpo das colegas e um borbulhar na sua barriga, mas não conseguia decidir se as acompanharia nesse programa.

Guardou para si a vontade, mas toda noite, deitada na cama, fantasiava o que seria um novo exercício. Deixava a mente correr pelos devaneios até adormecer. Acordava com um gosto amargo de frustração, como quem desperta de um sonho bom e vê que não era a realidade.

Rondava a mãe com frases incompletas sobre tudo isso que preenchia a sua cabeça. Comentava que um coreógrafo famoso chegaria no mês seguinte. Depois acrescentava que as meninas da dança iriam participar da aula do final de semana, tentava sondar a opinião da mãe em busca de um empurrãozinho.

Na dança, um empurrão pode derrubar, mas Idália não lembrava disso.

Como a mãe não respondia suas falas soltas, entendeu isso como um veto. Aceitou que deveria se concentrar no que tinha. O treino ficou mais forte, ela mais dolorida, a imagem da coreografia bem executada era inegável. A determinação diante do não, buscou a excelência.

Enquanto ela se dedicava, as colegas se dispersavam e as broncas da treinadora eram constantes. Se sentia a aluna obediente, mas se isolava cada dia mais, porque não queria ver a alegria no rosto delas. Uma coisa nova ia acontecer para elas e Idália não queria afirmar para si mesma que ela não teria o mesmo.

A irritabilidade aumentava, ela não sabia como lidar com as emoções e se esforçava mais. Olhava feio para as amigas, dava respostas ríspidas, parecia amarga, quando isso não era comum nela. A treinadora notou a mudança e investigou o que se passava ali. Ela sabia que as meninas iriam experimentar o método novo e as incentivava. Mas não foi capaz de se antecipar ao acidente daquela tarde de treino. 

Idália, resolveu fazer um passo que era desafiador para ela e se desequilibrou. Nem precisava ser psicólogo para entender que ela seria a única a parar a si mesma. A socorreram e não era nada grave, mas ela precisaria ficar 2 meses sem treinar. Sob o rosto entristecido, o olhar brilhava fortemente.

A treinadora então sugeriu a ela que continuasse a ir às aulas, mesmo que não fizesse os exercícios. Com o tempo livre na sala de dança, procurava na internet informações sobre o coreógrafo, o método, vídeos e mais vídeos dos seus workshops. A mente se deslocava para aquele universo paralelo e só voltava quando ouvia a voz mais alta da professora corrigindo as colegas. 

O pensamento então acompanhava seu desejo e inventava modos de sair daquela proibição em que tinha se metido. Escreveu para a organização do evento, perguntando se ela poderia participar como ouvinte, pois estava machucada. A justificativa para si mesma era: 'se eu não dançar, não desobedeci.' Recebeu um sim como resposta, e não disse a ninguém, pois não queria ser o centro das atenções das colegas, que fariam uma festa em saber que ela finalmente tinha decidido ir ao programa com o coreógrafo gringo.

No dia do evento, saiu de casa sem muitas explicações. Encontrou com as amigas na entrada e a reação delas era exatamente como ela tinha imaginado. Entraram no salão e ela foi orientada a ficar num canto, pois não poderia participar com o corpo machucado. O coreógrafo cumprimentou a todas, sorriu para ela e começou a bagunçar todo o espaço.  Chamou-a para junto, pois tinha mudado de ideia quanto ao treinamento que deveriam fazer.

Conversou com o grupo de maneira informal. Contou um pouco de sua história e as dores de ter que se enquadrar nos métodos tradicionais. Além disso, expressou a angústia que vivia a cada método não tradicional, pois tinha se acostumado a ter coreografia estruturada e a improvisação lhe parecia quase impossível. Envolvia as meninas com a voz enquanto mostrava o corpo ocupando o espaço da sala. A música veio quase imperceptível. Os corpos das meninas pareciam se soltar, deslocando-se no espaço. Idália mexia olhos, cabeça e pescoço em busca de uma visão melhor do bailarino. Ele circulava o ambiente, tocava nas meninas, ora no cotovelo de uma, ora no joelho de outra e a cada toque elas moviam o corpo instantaneamente. Incluiu Idália, mesmo com a perna imobilizada. 

O tempo ia passando sem que ninguém percebesse. Ele parou de contar sua história e chamou a atenção das meninas para as notas da música que já preenchia o ambiente. Cantarolava e fazia trejeitos com o corpo e o rosto. Algumas respondiam da mesma forma, outras respondiam com surpresa. O corpo de Idália se mexia cada vez mais para acompanhar aquela movimentação imprevisível.

De repente, silêncio! Ele parou, firme como um soldado, olhando sem foco para um além dali. Todas ficaram sem saber o que fazer. Ele ficou parado muito tempo. Algumas seguiram com exatidão a imobilidade dele, outras esperavam inquietas o que aconteceria, Idália levantou e se apoiou num pé só. Ela, tal como ele, era capaz de ficar longo tempo parada, como uma estátua. 

Num giro ininterrupto ele as surpreendeu novamente. E desta vez, ele passou a selecionar uma a uma para se apresentar. Pediu que não dissesse nada, mas mostrasse sua característica mais marcante com o corpo. As meninas inventavam modos de expressar algo e ele usava adjetivos que pudessem representar o que elas diziam. Quando ele acertava, passavam para a próxima. Na vez de Idália, que tentou não participar por estar com a perna imobilizada, ele a definiu como engessada. Mais do que uma condição pontual, ela confirmou que isso era sua principal característica. 

Ao final do exercício, quando todas já tinham sido definidas por suas particularidades, ele moveu cada uma delas para um canto da sala e pediu que fizessem aquilo que tinham feito, todas juntas, sob uma música completamente atordoante. Idália, engessada, sentada, parada, junto às colegas. A coreografia era gravada pela assistente e acompanhada por ele, que as imitava uma a uma, causando estranhamento e graça. 

O ambiente já tinha sido completamente tomado pela energia vibrante que ele tinha construído. Mais uma vez o silêncio, e pediu que todas sentassem no chão, incluindo Idália, que foi ajudada pelas amigas. As luzes ficaram bem baixas, numa penumbra que permitia intimidade, vulnerabilidade e confiança. Ele colocou no centro do grupo uma flor e pediu que elas dançassem aquela flor, que traduzissem aquela imagem em movimento. Disse que elas teriam tempo para sentir e depois fazer, que a música que começariam a ouvir, e a luz fraca com que o ambiente estava iluminado, as ajudaria a achar cada uma o seu movimento. Permitiu que o tempo passasse. Cada uma delas foi se movendo e criando sua manifestação. A assistente acompanhava o exercício de longe, com a câmera e ele olhava sem interferir.

Idália fechou os olhos e deitou no chão. Espalhou pernas e braços e começou a se mover, se contorcia, esticava, enrolava, parecia uma semente brotando. Parecia fazer esforço demais, pois a impossibilidade do apoio da perna impedia maior agilidade. Quando todas estavam em transe completo nos seus movimentos, a música cessou e a luz se apagou completamente. Todas pararam.

O bailarino voltou a falar, pedindo que todas sentassem em meia lua, ligou o telão e elas puderam ver os movimentos que fizeram durante todo o tempo. Elas percebiam o que o espelho ou a treinadora não podiam revelar. Idália se impressionou com ela mesma, gostou do que viu, se sentiu segura com a improvisação, com sua possibilidade criativa.

Fim do dia, se despediram e foram embora calados. Não cabia palavra ali.

No dia seguinte, o workshop funcionou como um treinamento, com técnicas, conversas, ensinamentos, tanto das competências formais como das experimentações inusitadas. Idália participava com um pé só, ou sentada, não se impedia mais de agir, mesmo com o seu engessamento.

Na saída do curso, entrou no carro e disse para a mãe que iria passar um ano fora, acompanhando o trabalho do coreógrafo. A mãe, no mesmo silêncio de antes, agora não parecia dizer não para Idália, tudo tinha mudado.

Simone de Paula - 30/7/2021 




sexta-feira, 23 de julho de 2021

kd?

Onde foi parar aquilo que me acordava, me fazia acreditar no melhor do hoje?

Nem é uma questão de procura ou busca, mas a constatação que algo se impôs e levou o que existia aqui, como um patrimônio, ou uma verdade sobre mim.

Astros e estrelas me mantinham firme na certeza de que a vida era desafio e o impulso constante podia até retardar a antecipação, mas o tempo é certo e com ele tudo está no lugar que deve. 

Será que volta? Espero.

 

Simone de Paula - 23/07/21


sexta-feira, 16 de julho de 2021

Nocaute

Desde pequeno Lúcio era dado às lutas. Brigava na rua, provocava sua mãe, ofendia a irmã, tudo para provar a sua posição dominante. 

Crescido, segurava a raiva todos os dias para não acabar na cadeia. Mal sabia ele, que numa madrugada fria de julho, estaria tombado na lona. Tomado por lágrimas e sorrisos, foi aprisionado pelos fios invisíveis do amor. 

Simone de Paula - 16/07/21



sexta-feira, 9 de julho de 2021

Fantasminha sem noção

Quem disse que fantasma é vulto branco ou preto? Ontem mesmo eu vi um vermelho. 

Olhei em direção à cozinha e lá estava ele, pairando no ar. Uma elipse vertical, achatada e vermelha. Sinceramente, sem expressão, nem personalidade, só pairando em cima da mesa.

Pensei se eu teria que fazer alguma mandinga pro bicho cair fora da minha casa, mas deu preguiça, porque nem me impressionou aquela invasão de propriedade.

Dormi. 

No meio da madrugada, lá pelas três horas da manhã.... Mentira, eu já tinha levantado da cama. Se fosse na madrugada, pelo menos teria conexão sobrenatural, segundo cultuadores do terror. 

Voltando, logo cedo, o parceiro de cama dormindo, sonha com uma sirene alta, vermelha, brilhante e acesa, lá pelas bandas da cozinha. Pra ele, estava acontecendo um grande evento por lá e era o fantasma!  É aqui que eu colocaria um emoji de susto e admiração se eu estivesse lendo isso. Só pra causar uma emoção, porque realmente o sonho foi mais intenso do que o fantasma em si. 

E as aventuras oníricas não terminaram na balada kitchEn. O Leandro, no sonho, olha para o meu lado da cama e vê, sentada em cima de mim, rindo, a Kátia acupunturista. Sim, ela era a djin djin (será que se escreve assim, aquele nome oriental pra figuras sobrenaturais?). Acordou assustado e pensou: tinha fantasma mesmo.

Depois de tudo isso, me diz: dá pra levar fantasma a sério?


Simone de Paula - 09/07/2021



sexta-feira, 2 de julho de 2021

Inveja

O olho que pescou o olhar furtivo, que mirava os olhos brilhantes de quem parecia feliz, despertou em mim a inveja. 

Não foi mais do que uma piscada, o foco foi decidido e preciso. Isso indicava a abertura do desejo. 

Me perturbou o que em mim viu, o que não deveria ter visto: o olhar e o olhado, me jogando do instante presente ao momento eterno do passado. 

"Quem mandou ver?", perguntava meu pensamento alarmado. "Não fui eu", pensava a minha consciência em resposta àquela gritaria mental. 

Passou, mas não desapareceu. 

Nos dias seguintes, os flashes da memória daquele olhar me acompanhavam, trazendo como sombra a inveja. Já era tempo de acabar com aquilo, tomar uma decisão, me livrar do que se dizia incessante. 

Olhei! 

Me desloquei do lugar invisível de quem assiste, passivamente, a imagem vívida. Recordei que eu também mirei, vi o olho, o olhar e o olhado, sem ser convidado, mas ativamente determinado. Não recuei da minha parcela de prazer, que usou os corpos alheios, expostos nas suas trocas, para compor a minha satisfação. 

Curti!


Simone de Paula - 02/07/2021