sexta-feira, 29 de junho de 2018

Prisão


O barulho do tráfego de veículos anunciava o começo de mais uma manhã. Ela estava presa há muitos dias, não sabia dizer o quanto. O tempo não era mais contado. No começo tentou manter o hábito: ficar acordada de dia e dormir à noite. Mas isso não fazia sentido nenhum, pois não tinha nada para fazer, nem de dia, nem de noite. A espera era permanente, portanto a lógica a luz não importava.
Levou um susto com o grito da carcereira, “se arruma, seu julgamento é hoje. O advogado já está aqui.” Levantou, passou a mão pela roupa surrada que usava, alisou o cabelo, estava arrumada.
No tribunal sabia que deveria ficar calada. Se alguém lhe perguntasse algo, só responderia quando autorizada. Não tinha mesmo mais nada a dizer. Sua culpa era real e não ia fugir disso. O julgamento começou. Advogado de acusação, defesa, falatório sem fim. Em alguns momentos, abria os ouvidos para captar em que parte do processo estava. Quando ouvia alguém falar algo de forma a parecer fato incontestável, sabia que não correspondia à realidade de todo aquele crime. Não falou nada, não podia e nem queria falar mais nada daquilo. O fato é que ela cometeu um crime, estava sendo julgada e pagaria a pena. Isso era o fato e só.
Horas e mais horas sentada ali. Apontavam para ela, olhavam para ela, falavam dela. Estava num palco e sua performance era parecer um manequim, parado, apenas apresentando a coleção de algum gênio da moda, que neste caso, era o discurso do advogado.
O julgamento não foi rápido. Seu depoimento também demorou muito tempo. Era monossilábica, não tinha como se defender. Muitas vezes parecia até cruel ou insensível, tamanho realismo com que contava o que tinha feito. Naquela tarde fria de inverno, estava em casa. Olhava aquele que a perturbava, olhava a faca. Não tinha porque não fazer um se encontrar com o outro. Matou sim, porque não tinha outro destino, nem para o amante, nem para a faca e muito menos para si mesma.
O juiz parecia não saber direito como condená-la. Ela era enigmática para ele. Não a julgara de antemão, pois talvez soubesse do segredo daqueles que não podem fazer nada além do que fizeram. O crime é premeditado, porque não há nada além do crime a fazer. Olhava muito para ela, queria poder julgá-la e não apenas seguir os passos daqueles que já tinham estabelecido um destino para ela, os advogados ou a própria Lei. Ele sabia que ela seria presa, sabia do crime, mas queria poder aplicar a pena exatamente no tamanho do seu ato, da sua culpa, para que quando ela saísse, se sentisse verdadeiramente quitada.
Cinco dias depois, saiu a sentença: dez anos de reclusão. Ela ouviu, assentiu com a cabeça, parecia achar justo. Os últimos dez anos de sua vida tinham sido insistindo em achar um sentido e agora teria mais dez para saber que não estava do lado de fora, mas dentro. Finalmente um homem determinou seu destino, como ela tanto esperou dos últimos relacionamentos que teve.
Agora não estava mais presa numa cadeia urbana, em que tinha a referência do som da cidade para se guiar. Foi transferida para a penitenciária pública no interior. Chegando lá, ouvia mais ecos do que silêncio, pois o prédio de proporções significativas parecia isolar inclusive o som que vinha de fora. Para sentir tempo, espaço, sensações, teria que ser nos intervalos dos banhos de sol e atividades coletivas na área externa da construção.
Estava acostumada a obedecer e isso a ajudou a estabelecer seu lugar ali. Percebeu a hierarquia e se colocou num papel de reclusão. Não queria fazer amizades, nem aparecer, chegou muda e se fez de cega e surda. Não sabia nunca de nada. Se resguardou assim. Era não pouco combativa e estava tão resignada, que lhe foi permitido pelas colegas ficar no seu canto. Parecia não conseguir mais ajustar seu relógio biológico com o tempo do mundo. Seguia dormindo de dia e acordada à noite. Quando era obrigada a sair, saía, mas não respondia muito a um protocolo padrão. Não fez da prisão uma casa, não tentou moldar aquele espaço com as suas ideias de um lar, uma vida em sociedade, estava mesmo afastada do campo social, não pertencia e não opinava e nem construía.
Uma das carcereiras parecia olhá-la como o juiz, como se ela tivesse algo ali, preso dentro dela e que poderia sair a qualquer momento. Tinha força, intensidade, mas não era destrutivo. Era uma erupção que poderia acontecer de súbito, como um vulcão.Sugeriu que ela frequentasse a biblioteca, pois ali teria mais o que fazer do que ficar ouvindo papo furado das colegas.  Ela aceitou e ali encontrou uma forma de criar uma conexão com o seu tempo e seu espaço. Mais uma pessoa que notou algo nela e lhe indicou um destino para seguir, dessa vez, uma mulher. 
Nas noites de lua cheia a cela parecia se iluminar. Eram noites prazerosas. Ela olhava a parede abaixo das grades como quem olha um portal. Olhava longa e fixamente. Respirava. Parecia que via ali a tal erupção que juiz e carcereira viram nela. Não sabia como extrair isso dali, como ajudar a parede a expor o que tinha contido nela.
Quebrou o silêncio pela primeira vez depois de três anos. Comentou brevemente com a carcereira, sua conselheira, sobre enxergar algo na parede. Depois do jantar, quando foram recolher as bandejas, a carcereira deixou cair a colher do seu prato e não fez questão de pegar. Simulou um chute para dentro da cela. Sussurrou: “guarde isso!”
Ela guardou e segurava toda noite aquele amuleto enquanto olhava para a parede que falava com ela com palavras intraduzíveis. Mais dois anos se passaram. O corpo dela parecia cada vez mais potente, seus olhos mais vivos, ela estava quase entendendo o que era dito nas suas longas conversas noturnas com a parede de sua cela.
Numa noite mais quente de lua cheia de verão, as colegas de cela brigaram por motivos desconhecidos por ela. Todas foram suspensas e levadas para a solitária. Ela foi enclausurada. Silêncio, escuro, não tinha como ver nenhum vestígio do ambiente em que estava. Assustada, perdida, angustiada. Fechou os olhos fortemente, colocou a mão nos ouvidos e passou a noite inteira gritando sem parar. Amanheceu e foram devolvidas à cela que habitavam. Ela estava esgotada, mas quando entrou novamente naquele espaço familiar, viu a parede de uma forma completamente nova. Pegou a colher-amuleto e passou a riscar aquela superfície de concreto. Raspava, riscava, sem parar. As colegas diziam: se vai cavar um túnel, neném, melhor no chão, porque aí, quando acabar a parede, tem abismo, você morre. Riam e ela riscava. Toda noite o barulho intermitente de metal no concreto embalava as presas e a animava.
O tempo passou, a carcereira olhava o que acontecia ali. Não tinha como registrar aquilo, não poderia entrar com uma câmera fotográfica, mas queria que mais alguém soubesse. Se contasse para sua chefe, poderiam tirar o utensílio dela. Mantinha segredo, mas admirava, sabia que aquilo tinha um valor maior do que as rasuras vistas pelas outras presas.
O tempo passou e seu advogado pediu redução de pena por bom comportamento. Ainda não tinha sido julgada a liberação, mas o advogado foi visitá-la para dizer o andamento do processo. Ela se recusou a sair antes, disse que estava no meio da produção de algo e que já tinha contabilizado o tempo, precisava mesmo ficar todos os dias e horas da pena estipulada pelo juiz. Ele não entendeu, mas aceitou, não poderia tentar tirá-la dali. Percebera que ela estava estranha, meio doida. E, naquele estado de insanidade em que ele a via, imaginava que ela seria capaz de cometer outro crime para não ser obrigada a fazer o que não queria.
Dois dias antes da sua liberação, a carcereira falou novamente com ela. “Sua obra é magnífica. Está pronta? Daqui dois dias você será liberada.” E ela respondeu: “sim, em dois dias estará finalizada”. Nesse momento a carcereira resolveu comunicar o fato à sua superior, que veio olhar o trabalho em todas as paredes, teto e chão da cela. Era impressionante. Tinham notado que as colegas de cela tinham ficado muito mais tranquilas, pois pareciam embaladas pelo vigor das marcas que ela fazia. Agora parecia ter alguma conexão entre os fatos. Aceitou fotografar tudo. Contou para o advogado de defesa, que anexou as fotos ao processo. Na hora do pedido de soltura, no dia que ela seria liberada, o mesmo juiz viu, junto aos autos,  as fotos. Ficou impressionado. Pediu para recebê-la assim que ela fosse liberada, queria dizer-lhe algumas palavras. Guardou as fotos com ele. Ela recebeu da carcereira o aviso sobre ser a hora de sair, para se arrumar. Ela fez o mesmo gesto do dia do julgamento, passou a mão pelas roupas, alisou o cabelo. Pegou a colher e devolveu para a carcereira e seguiu para fora da cela. Não olhou para trás.
Diante do juiz, disse estar pronta para seguir em nova direção. Queria trabalhar em minas, cavar buracos nas pedras. Se ela não pudesse cavar algo, mataria alguém de novo. Ele a apresentou a um amigo que apoiava artistas marginais. Seguiu lapidando cavernas.

Simone de Paula – 24/06/2018

Conto inspirado na história do pintor francês Augustin Lesage

sexta-feira, 22 de junho de 2018

No deserto

Nasci de novo no deserto. 
Dei por mim num espaço indefinido, vazio. Chamei de deserto. Não há nada, mas existe. Estou aí. Como posso dizer que nasci de novo? Não me vejo, mas sei. Se é ‘de novo’, tem ontem e amanhã? Não sei do tempo. Não estou cega, mas não posso ver nem reconhecer nada. O que me habita é a consciência total. Tudo é só consciência. Ver, ouvir, sentir e saber tudo. Nada me escapa. Suponho uma redoma. De onde veio essa imagem? Nem sei se tem cima, baixo, frente, costas, direito, avesso, vice ou verso. Mas imaginei uma redoma. Dei esse nome. Inventei, criei, fiz existir. Me ultrapassou a consciência. Agora, aquilo que conheço, que fiz definir esse espaço, delimitou tudo que fica dentro e o que fica fora. Mas fora de onde? Do meu deserto. Sim, tem algo que eu não sei. E é isso que eu sei mais profundamente. É a verdade mais absoluta. Mas que loucura! Até poucos instantes eu não duvidava que sabia de tudo. E agora, duvido de tudo que sei. Preciso de uma prova de que realmente estou aqui, que existo. Busco a matéria. Tem alguma coisa que circula em algum lugar. Acho que em mim. Uma pressão, um vácuo, um intervalo, um som. Tem. De onde vem? Vou repetir, ecoar. Faço pressão, solto de uma vez e ouço. Mas de onde isso vem? De mim, de fora ou de dentro? Tem. Me perdi. Cadê o deserto que estava aqui? É perturbador. Em que lugar eu me meti? Busco o deserto. Acho o silêncio, tenho paz. Mas parece que tem algo em outro lugar, que não aqui onde estou. Mais uma onda. A aflição me faz pressão. Antes mesmo de reproduzir a força produtora do som, fico muda. Vejo um raio, seguido de um barulho estranho. Sou arrancada do meu lugar. Saí. A luz, procuro a luz. Percebo um brilho atrás de mim. Tenho frente e costas. Estou fora. Ouço, vejo, espero. Quero voltar. Não posso. Sensações. Uma superfície gigante rodeia. Engloba minhas recém cavadas cavernas. Não tem começo, não tem fim. Círculos infinitos e sem saída. Labirintos percorridos pela vontade de tocar, segurar. Mais uma pressão. Diferente. Um ponto da superfície é marcado. Ali. É ali. Apoio e limite. Mas quem apalpou? Nem sei como eu faria. Tem outro. Que outro? Quem outro? Já não sou mais livre e estou aprisionada a um não deserto. Finjo não estar aqui. Medito para me deslocar para meu deserto. Chego lá. Estou só. Tudo está completamente parado. Eu já não me satisfaço com essa paz. Lá vem de novo a pressão. Som! Luz! Corpo! Outro! Eu! 
Nasci, fora do deserto.


Simone de Paula - 21/6/2018




quinta-feira, 21 de junho de 2018

Canto

Silêncio.

Aquela voz,
ainda ecoa o suficiente.

Sua dor indizível.
Minha angústia rotulada.
Nosso nó de liberdade.

Algo nos aquece. 
Alma a alma.

Quem sabe não continuamos essa dança?

Maria Laura, SP.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A sina do menino


Heloísa, sorrindo, olhava pela janela da cozinha. Os meninos faziam a maior algazarra. Corriam e gritavam naquela tarde quente de final de verão. Greg, seu único filho, era pequeno para sua idade, tímido, mas muito afetuoso. Brincava todas as tardes com os meninos da rua. Quase todos tinham a mesma idade, em torno de sete anos. Quando saía alguma confusão, sempre aparecia uma mãe para dar uma bronca geral e mandar todo mundo para casa. Greg chegava sempre sorrindo, pois raramente as brigas eram com ele.
Todas as manhãs, ele ia para a escola com o pai, Dirceu, que seguia para o trabalho na parte sul da cidade. Na hora da saída, Heloísa o buscava, almoçavam juntos e cochilavam por meia hora na cama de casal. Depois, ela ia fazer tarefas de casa e o jantar e Greg saía para brincar com os meninos. Quando Dirceu chegava à noite, o menino já tinha tomado banho, feito os deveres da escola e participava da conversa dos pais durante o jantar.
No outono, a cidade ficava muito bonita. O frio vinha rápido, as folhas das árvores caiam e tudo ficava um tanto cinza. Com os passeios por montanhas, ofertas de chalés e a gastronomia bem cuidada, a região ficava cheia de turistas. Dirceu e Heloísa tinham conversado sobre alugar o quarto extra da casa para hóspedes naquele ano. Queriam juntar dinheiro para os estudos universitários de Greg. Além disso, Dirceu vinha de uma família que tinha tido pensionato desde os bisavós. Por isso, ele estava acostumado a ter dentro de casa pessoas de todos os tipos e procedências. No jantar, contaram para o menino que teriam pessoas estranhas em casa por um tempo. Ele sorriu e achou que seria diferente, não criou nenhum caso sobre isso.
Duas semanas depois, chegaram os primeiros hóspedes. Era um casal de meia idade, que vinha do norte e tinha estilo extravagante. A mulher, Cândida, usava roupas muito coloridas, todas feitas à mão. Tinha sempre no colo a gata preta, que também tinha vindo com o casal. O marido, Romeu, se vestia de forma bem sóbria, sempre em preto ou cinza. No rosto, bigodes fartos, sobrancelhas grossas e óculos ‘fundo de garrafa’, mostrando que sua visão não era das melhores. Iam ficar por ali cerca de quinze dias.
Heloísa se incumbia das refeições e da arrumação do quarto deles. Passavam a maior parte do tempo passeando pela região. Dirceu preferia conversar um pouco durante a noite, quando se encontravam na sala. Perguntava muito sobre os hábitos que tinham em casa e sobre a forma que tratavam o animal de estimação.
No último sábado da estadia, o casal convidou Greg para ir conhecer o Pico da Zebra com eles. Ele se animou, mas queria que a mãe fosse junto. Heloísa não podia e incentivou o menino a ir sozinho. Ele topou.
Assim que entraram no carro, a gata Romana já pulou no colo do menino. Quis ficar ali, sendo acariciada o caminho todo. Durante o passeio, ela se encostava nele sempre que podia. Cândida pareceu enciumada no começo, mas depois passou a proceder como a gata, acariciando o menino. Romeu, mais soturno do que de costume, insistia em dar alguns mimos para Greg. Ora era um doce, ora um brinquedinho. O dia foi perfeito.
Na volta, o casal arrumou a bagagem, pois sairiam cedo no dia seguinte. Cândida nem deu por falta da gata, que tinha sumido desde a volta do passeio. Greg tomou banho e dormiu logo após o jantar. Quando amanheceu, o casal se despediu de Dirceu e foi embora.
No dia seguinte, Heloísa recebeu um telefonema de Cândida desesperada, pois a gata tinha sumido. Ninguém sabia do bicho. Procuraram pela cidade, perguntaram aos vizinhos, mas nada da gata aparecer. O clima ficou estranho na casa, porque eles tinham alugado o quarto pela primeira vez e tinha acontecido uma situação estranha dessas. Dirceu também tinha acordado estranho. Passou o dia sonolento, não foi trabalhar e ficou isolado na edícula. Mal participou da história da gata sumida. 
Dois dias depois, retomaram a rotina, mas Heloísa não se sentia confortável, parecia que havia algo sinistro no ar. Além disso, por compromissos de trabalho, Dirceu também estava mais ausente e ela se sentia sozinha, sem nem seu parceiro de conversas noturnas, pois ele chegava sempre depois da meia-noite. Isso não era incomum, mas pareceu pior quando coincidiu com uma situação constrangedora do sumiço da gata.
Decidiu não aceitar mais animais com os hóspedes. Pediu para Dirceu colocar essa observação no anúncio. Mas como a época era boa, já tinham novos hóspedes agendados para dali duas semanas. Greg parecia mais aéreo do que o normal. Nada que fosse preocupante, pois era um pouco do espírito dele perto do inverno. Os cochilos vespertinos duravam mais e as brincadeiras na rua eram menos frequentes.
Quinze dias depois, 0 novo casal chegou para se hospedar. Trouxeram os dois filhos, uma criança de quatro anos, Aninha, e o bebê de nove meses, Christian. Desde a chegada, o bebê não parava de chorar. Os pais, Vera e Edson, pareciam constrangidos diante de tal situação, mas esperavam que ele se acostumasse com o ambiente e melhorasse.
Greg tentou brincar com Aninha, mas as idades eram muito diferentes. Ele preferia ficar com o pequeno Christian. Ele olhava muito intensamente para a criança e quando fazia isso, o bebê parava de chorar. Passaram a deixá-lo durante muito tempo com Greg. Quanto mais Greg olhava o bebê, mais silencioso ficava. Heloísa se incomodou um pouco com o filho tão fechado, tão estático, mas não sabia o que fazer.
O casal parecia não querer sair da casa, fazer passeios. Ficavam o tempo todo ali. Montaram a própria rotina na casa temporária.
Na manhã da quarta-feira, da segunda semana de hospedagem, Greg não se levantou da cama. Estava deitado, imóvel, com os olhos vidrados no teto. Heloísa ficou apavorava, gritou com ele, o chacoalhou, chamou Dirceu, mas nada fazia o menino se mexer. A família ficou assustada. Resolveram ficar no quarto até a situação se acalmar, para que as crianças não ficassem traumatizadas. Aninha queria sair, estava mais agitada do que nunca. Pulava na cama, se jogava no chão, gritava e tentava de todas as formas abrir a porta ou pular a janela. O bebê Christian chorava de forma estranha, sem abrir os lábios, parecendo mais um murmúrio.
Heloísa e Vera, as mães, estavam perdidas, atônitas. Dirceu ligou para o Doutor Fraga e pediu que viesse urgente. Edson ficava atrás da menina para que ela não arrebentasse a casa.
O médico chegou e foi direto ao quarto de Greg. O examinou, estava levemente febril. Fez exames neurológicos e o menino estava completamente normal. Olhou as outras crianças, todos estavam com a mesma temperatura, 37,6º. Fez as perguntas de praxe: se tinham comido algo diferente, visitado algum lugar fora do habitual, essas formalidades. Heloísa respondeu que nada estava fora do normal. Vera disse que estava cozinhando pessoalmente para seus filhos, mas que poderia ser algo no ar, pois estavam numa cidade diferente e o campo tende a ser mais rico em micro-organismos do que a cidade grande. Dirceu pensou em ajudar, contando que um mês antes, tinham hospedado a gata. Mas que não sabia se poderia ser alguma doença do bicho. O médico descartou a hipótese na hora. O Doutor Fraga pensou um pouco, mas as atitudes das crianças não indicavam algum tipo de alergia, pareciam mais psicológicas. Receitou banho morno para baixar a febre e que retornaria no final da tarde.
Enfiaram as crianças no chuveiro e depois as coisas mudaram. Aninha ficou paralisada, Greg murmurava como se fosse alma penada e Christian estava agitadíssimo, dava gritinhos e risadas sem parar. As mulheres se desesperaram. Os homens, impotentes, fingiram discutir a questão. Heloísa pediu para alguém fazer algo. Começou a gritar para Eunice, a vizinha, que veio correndo, porque não entendia uma palavra do que se dizia. Eunice era benzedeira. Fez o preparado de água e azeite para benzer as crianças. Dirceu correu para fora da casa, dizia que não suportava essas crendices. Edson e Vera curiosos, nunca tinham visto um ritual como esse e acharam muito inusitado.
Eunice rezava ininterruptamente e ia lambuzando a testa dos pequenos. Quando chegou em frente de Greg, ele murmurava mais alto com olhos arregalados e enraivecidos para ela. Quanto mais ela se aproximava, mais ele se afastava e a olhava provocando pavor. Ela não se intimidou. Foi seguindo em direção a ele até que ele ficou encurralado no canto da parede. Quando ela foi encostar, ele abaixou e deu uma mordida em sua perna, saindo correndo, rastejando pelo chão. Heloísa correu e o pegou pelos braços, o trazendo para ser benzido. Ele gritou, esperneou, mas ela conseguiu marcar-lhe a testa com a poção. Nessa hora, nova mudança, Greg ficou animado, saltitante, sorridente e hiperativo. O bebê, esse estava catatônico e Aninha fazia o murmúrio mais alto e sombrio que podiam ouvir. Era aterrador. Heloísa chorava. Vera ficou perturbada e começou a rezar afastada dos filhos, perdida no canto na sala. Edson decidiu chamar o padre da paróquia mais próxima. Quando saiu da casa, viu Dirceu que ouvia os sons vindo lá de dentro e mostrava que sentia muito medo. Ninguém sabia, mas Dirceu teve uma infância com muitas histórias sobrenaturais, além de ter tido visões paranormais. Foi criado no meio de pessoas que praticavam magia negra.
Edson veio com o padre. Assim que ele entrou, com batina e tudo o mais que precisaria para um ritual de exorcismo, sentiu uma dor profunda na perna esquerda. Quando olhou, estava sangrando, arranhado. Não sabia quem tinha feito aquilo, mas era real. Dirceu o ajudou, buscando algo para limpar o sangue que escorria canela abaixo. Greg ria e pulava de um móvel para outro, sem parar.
A situação estava cada vez mais fora do controle. O clima era muito pesado e parecia que o dia escurecia a cada minuto que passava. O tempo já não obedecia ao relógio e algo estava suspenso no ar.
Antes de começar qualquer coisa, o Padre Wellington sentou e começou a conversar com os pais, que mal conseguiam prestar atenção, pois estavam perdidos diante do absurdo que estavam vivendo. A situação era grave e sobrenatural. Ele pediu que as mães fossem retiradas da sala. Depois pediu que relatassem tudo que tinha se passado nos últimos trinta dias. Ouviu com atenção. E fez a última pergunta: e a gata, onde está? Dirceu olhou estranho para ele e pareceu não se sentir confortável com a pergunta, desconversou e por fim disse não saber. O padre pediu a Edson que fosse ver se estava tudo bem com as mulheres.
Assim que Edson saiu, o padre levantou e começou a olhar pela sala, todos os cantos e detalhes. Parou na frente de um quadro bucólico que o chamou a atenção pelo pôr-do-sol excessivamente vermelho. Tirou o quadro da parece e viu a marca de um símbolo de magia negra ali, pintado na própria parede, com a impressão de já estar ali há alguns anos. Olhou para Dirceu e perguntou: você que fez isso? Isso é sangue! Sangue de quem? O homem não conseguia olhar diretamente para o padre e desviava o olhar para a porta de saída da casa. O padre seguiu farejando, abriu um pequeno baú, que parecia deslocado junto aos copos de whisky. Lá encontrou chumaços de pelo negro, de gato, com restos de um líquido viscoso, vermelho. Também sangue. E a coisa não parou por ai, detalhes disfarçados, misturados pela sala toda. A cada descoberta, ele olhava Dirceu, que estava se transformando, tinha agora um semblante demoníaco e o olhar que se revezava entre os pés do padre e a porta da casa.
O padre se muniu de seus apetrechos, ficou de costas para Dirceu, fingindo se olhar no espelho grande da sala. Arrumando a batina, chamou Dirceu, com a voz mais potente e segura que ele poderia sustentar e o olhou fixamente através do espelho. “O que você fez com essas crianças?”, perguntou de forma direta. Que espécie de feitiço foi esse? Aonde a gata está presa?
Dirceu não conseguia se mexer dali, parecia colado ao sofá, preso por algum tipo de feitiço do padre, ou mesmo o efeito do espelho. Ele não respondia, rangia os dentes, espumava, olhava em volta, reagia como um animal furioso. Cadê a gata?
Edson voltou para a sala para ver o que estava acontecendo. O padre ordenou que ele não entrasse no ambiente, mas que descobrisse o nome da gata preta do casal. “Romana”, disse o pai das crianças. O padre invocou a presença de Romana.
Nessa hora, Dirceu começou a se contorcer, parecia estar sendo virado do avesso. Da boca dele foi saindo um amálgama viscoso, gosmento. A gata saiu de lá, inteira, viva, mais negra do que nunca, com o brilho luminoso das vísceras de Dirceu. O pobre homem desmaiou.
O padre começou a rezar e jogar água benta no animal. Com gritos e frases religiosas, expressões em línguas estrangeiras, o ritual seguia como se fosse um espetáculo antigo. O cansaço era aparente e a exigência da situação, que já parecia tomar um tempo longo demais, mostrava que talvez aquilo não fosse ser resolvido. A gata estava paralisada, como Dirceu antes dela. Quanto mais ele rezava, mais sua energia ia diminuindo. Ele estava prestes a cair, sem forças, quando ouviu o choro de Christian. Aquele som o animou. Ele fez a última oração com seu maior vigor. Olhou para Romana, que parecia tranqüila e voltava a ser a gata de Cândida, apenas um bicho de estimação. Greg viu o pai caído no chão e veio em seu auxílio. Aninha foi acalmar seu irmão, acariciando seus bracinhos.
O padre desmontou na poltrona que estava bem ao seu lado. Eunice, que ficou na cozinha o tempo todo, trouxe um copo de água e panos e álcool para o padre se recompor. Assim que ele estava mais consciente, comandou os passos seguintes da situação, pois não sairia de lá sem que tudo estivesse no seu devido lugar. Avisou Edson que era hora de limpar toda a bagunça e voltarem para casa. Olhou Heloísa, e pediu para ela ligar e devolver a gata. Tocou o ombro de Dirceu, combinou que precisariam conversar sobre seu ‘hobby” e o orientou a frequentar as missas todos os dias pelos próximos sete anos.
Saindo da casa, lembrou de algumas leituras na época do seminário, de rituais e grupos satânicos. Sempre imaginou que fosse mero simbolismo, se enganou. Agora, pesquisaria mais o caso para ajudar Dirceu, um pobre homem marcado pela tradição familiar. Esperava poder lhe dar paz.

Simone de Paula - 30/4/2018
 

 Obs.: este conto foi escrito para o concurso "100 contos - Policialescos', da Editora Anansi Books

sexta-feira, 8 de junho de 2018

de Medusa a Medeia

Vem comigo, meu amor. Eu posso te dar todas as estrelas do céu. Mais ainda, posso também te dar os planetas, chamando cada um deles pelo nome. Nos momentos de pausa, te dou a lua, com suas fases distintas e mágicas. Ao despertar, luz e lucidez no esplendor do sol, cheio de brilho e calor. Se todo o firmamento for pouco, te levo pro mar. Um mergulho profundo até perder o fôlego e quase desmaiar. Com um sopro breve de ar, seu corpo leve te faz flutuar, boiar, repousar na superfície envolvente da água salgada. Se o desequilíbrio te traz insegurança, te levo pra rocha áspera, sólida e estável que te traz tranquilidade e descanso. Tudo isso só pode melhorar. Te levo ainda pra dentro da terra, para os buracos escuros e silenciosos do seio da matéria. Te desperto sentidos, fantasias e desejos, medos e angústias. Feche os olhos, se entregue, viva! Mas nunca se esqueça, meu amor, que tudo que te dou, posso tirar, porque sem mim, não tem céu, nem mar, nem desejo, nem medo, apenas o tédio tenebroso que te leva para os braços da morte.


Simone de Paula - 1/6/2018


quinta-feira, 7 de junho de 2018

A verdade é que...

A coisa mais difícil de ser sincera, é falar a verdade.
Pode ser que eu acredite nela, mas não sei quem de mim é que tem essa crença.
Uma duvida da outra e tentam se ganhar quase sempre.
Verdadeiros embates em busca de uma heroína de braços erguidos gozados de vitória.
Essa é a chave que não abre porta alguma.
Aniquilar a sua polaridade pode ser uma loucura literal.
Olhar o espelho da frente aceitando-se duas, três, mil, aproxima-se a uma que exista.
Uma que traz a chance de reconhecer-se no teatro projetado do lado de fora.
Não pense que não haverá dor, não pense muito.
Apenas o chavão me vem, de que transformar-se é perder o controle ou saber-se fora de qualquer um dos seus braços.
Uma entrega para olhar os mais terríveis embaraços que coloca a si mesma.
Uma mulher precisa deixar que sua menina cresça. Sem ver a menina, tudo é uma ideia inexistente.
Ao sabê-la do seu lado e dar-lhe a mão, podem seguir um caminho, onde uma deixa a outra na hora que for a de existir em cada lugar que lhes cabe.

Adiante, amor.

Maria Laura, SP.



sexta-feira, 1 de junho de 2018

Eles

Eles e eu.
Eles e tu.
Eles e eles.
São tantos eles que aparecem todos os dias diante de mim que nem sei dizer quem são eles, ou melhor, quem é ele e quem é o outro.
Mas o que mais instiga é que nesse singular / plural que se manifesta, infestado de promessas sutis, ele mesmo parece sair de cena: perde a voz, desaparece aqui e vai surgir lá, longe de mim, de ti, deles.
Enquanto eu e tu ganhamos força, direitos e deveres, que antes pareciam não ser nossos, eles perderam segurança, sabendo da ameaça de abandono, para a qual nunca foram preparados. Se recolhem, se encolhem, se protegem como podem. 
Quem estava não ocupa mais esse lugar. Quem ocupa agora parece querê-los de novo ali, mas sem perder o ponto. 
Como faz agora com essa lacuna?
_______ e eu.
_______ e tu.
Eles e eles.


Simone de Paula - 01/06/2018