sexta-feira, 29 de abril de 2016

Tinha um buraco no meio do caminho

Pois é, enquanto todo mundo cita Drummond, colocando uma pedra no seu caminho, eu tinha um buraco no meio do meu.
Mas a história é mais ou menos assim: certo dia, num tropeço, eu encontrei meu buraco. Era do tamanho exato, cabia meu pé bem entalado. Por baixo, pra não deixar dúvidas de que era um buraco, tinha aquelas pedrinhas que indicam que aquela superfície já tinha sido plana, mas por não ser tão firme, cedera diante de uma pressão violenta. O pior, quando me dei conta, o buraco nem estava ali. Pelo menos, não no chão, não naquela superfície. Ele estava em outro lugar, como um holograma, que ao invés de ter sido visto, foi sentido.
Eu juro que eu queria ser como todo mundo, achando uma pedra aqui ou ali e tentando inventar meios de atravessá-la. Mas  não era assim, comigo era um buraco.
Para quem vive numa grande cidade, buracos no asfalto não faltam. Mas nem todos nos fazem tropeçar, até porque eles ficam bem visíveis no nosso percurso. Mas com o meu buraco não tem jeito, ele não avisa aos meus olhos que está chegando, nem para eu desviar ou me preparar para o impacto.
Agora pensando, acho que inventei pedras para colocá-las no caminho, ou para tampar os buracos, ou para evitar encontrar com eles. Se eu perco tempo com as pedras, atraso meu encontro com o buraco. Um engano, sem dúvida, porque o buraco está lá, e nem se importa com os meus truques e disfarces.
Continuando a história, porque eu parei no buraco, como se fosse uma pedra, que não era, mesmo sendo preenchido por mini pedrinhas, estilhaços da pressão que tinha sofrido. Então, do tropeço, veio a queda, tão vertiginosa que nem deu tempo de tentar me equilibrar ou segurar em algum ponto fixo. A coisa toda foi ininterrupta. E lá estava eu, caída, chão em torno, buraco no meio. 
Uma coisa era verdade naquele momento: se cair, do chão não passa. E, assim, a única saída é para cima. Olho em volta, nem mãos, nem apoios, nada. Só eu e meu corpo e o buraco. Se o pé tá lá, encaixado no buraco, ele mesmo será meu impulso, se a força não vem da cabeça, pensante, aquela que tenta ultrapassar as pedras, o corpo, o pé, com a potência que lhe é própria, que te leva pela marcha na vida, esse pode ser minha solução. Numa ação rápida, ligeira, sem muita atenção na perfeição da execução, finco o pé e jogo o corpo todo pra cima. Pronto, estou em pé novamente. Mas peraí, eu tinha dois pés, cadê o outro? Que pé que eu apoiei? Não era o que estava no buraco? Cadê o buraco e cadê o outro pé? Foi aí que eu parei, desisti. Respirei fundo, olhei corajosamente para o chão e vi toda a minha vida, espalhada naquele momento: uma superfície sem vincos, dos pés, mas apenas um deles pronto para a ação e o outro mostrando que aquele era o fim daquela linha, ele não iria a lugar nenhum naquele caminho, se eu quisesse continuar, que me tornasse um Saci. Tomei a única decisão que eu podia, eu era a única do meu lado, nenhuma mão de belo cavalheiro se ofereceu para me manter num caminho de pedras inventadas e bucaros sorrateiros. Sentei e disse: chega, aqui eu não ando mais!

Simone de Paula - 29/4/2016





Conto inspirado na poesia 'tNo meio do caminho', de Carlos Drummond de Andrade e na cantiga de roda, ''Teresinha de Jesus'.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sintonia


Em um dia muito quente no meio do rio, em um bote de palha ouvi lá no fundo, atrás da árvore, de todas, uma forte batucada. Os músicos não podiam ser vistos, e nem precisava, a música ecoava como que em uma floresta de mito, mas era a realidade. O mantra anunciava a chegada de um novo conhecimento.

Nesse pequeno trajeto, com os sons todos ao redor, a calma da água esverdeada, a língua desconhecida, o choro do bebê, o pequeno macaco, seus parentes todos, o pássaro preto, depois de qualquer coisa que tivesse visto até ali, eu sabia: obrigada.

Este é o estado de Kerala, sul da Índia, lugar conhecido pela gentileza de seus moradores e generosos coqueiros. Os rios costuram as cidades, as vilas, ruas, as árvores desenham grandes perspectivas, infinitas, as praias tem a água quente, como nosso corpo suado diante dos constantes quarenta e um graus, o leite é só o que vaca produz, e ela é parte da família e assim como os gatos, cachorros e formigas, conhecemos seus avós, suas histórias e seus pequenos gostos particulares.
Cada um tem um nome e cada nome um significado.
A gata branca, por exemplo, se chama Sunderiane, a grande beleza.
Por isso o chai da manhã, do meio da manhã, da tarde e de qualquer lugar que visite terá sempre o gosto e memória de gerações habitadas em comunidade.

Anita nos recebeu na madrugada, serviu a mesa calmamente, usava um vestido longo, largo e colorido parecido com uma camisola de verão, 38 anos, cabelos enormes, mas sempre presos mostrando seus brincos e colar dourados, contando assim que era casada. O sorriso gentil era contido, a voz mansa parecia cansada, o olhar com doçura me acolheu imediatamente e tive a sensação de que ali estava em um tipo de casa que também era minha, mesmo que eu nunca soubesse. Me entreguei aos seus encantos, tomei a água do poço, fiz meu pedido e então nos sentamos e lavamos as mãos em respeito a comida que iríamos tocar .

Um grão de bico pequeno, bem escuro, servido com cebola roxa, folhas de curry, cúrcuma, sementes de mostarda, óleo de coco, pimenta verde, foi o primeiro prato. O sabor é tão rico que só pelo fato de comer algo assim parece que a gente enriquece também.
Depois veio a jaca desfiada, o peixe frito na hora, o arroz vermelho preparado no fogão a lenha e o curry de legumes que plantavam logo ali.

Passamos oito dias juntas, me hospedou na casa de seus pais, depois sogros, me deu no colo seu bebê de três meses, me contou cada receita, me deixou fazer parte da sua cozinha, do seu afeto e de sua angústia.
O preparo do café da manhã era o mais importante do dia, cerca de duas horas, ali, quase nada vem da loja, você só precisa de poucos passos para alcançar os ingredientes.

Chapati, porotha, puthu, dal, abóbora com côco queimado, iddiapan, mingau de aveia com cardamomo, idlli, sambar, mandioca e peixe.

Uma esposa passa a ser mais respeitada depois da aprovação de seu “Fish Curry”. Essa é uma das tantas histórias dessas mulheres que trabalham incansavelmente, cozinham todos os dias, todas as refeições, cortam, picam, moem, sovam, colhem, lavam. Esperam que os maridos as digam que melhor comida não há, sua missão então estará cumprida, depois do café, almoço, chá da tarde e jantar, ela já pode dormir. Suas roupas são sempre iguais, apenas mudam a estampa. O dourado exige respeito, o sari impecavelmente colocado é a prova de que mesmo diante de horas na fumaça ali está uma dama e disso ela nunca se esquecerá.

Uma avó se orgulha da vida que teve, do coco que colhe, seca e rala todos os dias, da sua panela de pedra que acumula aromas a cada estação, que ela conhece tão bem. A noiva radiante pelo seu casamento tão próximo tem 26 anos, foi arranjo entre famílias, que ela de tão feliz diz que parece até casamento de amor e não de dote, tão linda, conta que não tem vontade de fazer outra coisa, ela quer que suas receitas tragam boa saúde para o futuro marido e filho e assim mais um ciclo entre invernos e primaveras vai se cumprir.

Na hora de ir embora, fomos todas juntas ao aeroporto. Nunca me esquecerei do cheiro de óleo nos cabelos e curry nas mãos. Nos soubemos amor assim como o bezerro recém nascido sabe da lambida de sua mãe.
Me pediram para ficar, balançamos a cabeça uma última vez
e segurando o choro nos abraçamos suadas não de calor, mas de uma emoção rara que é perceber a si mesmo.

Agora já sabemos, estaremos sempre juntas, em qualquer lugar, em toda inspiração e suas fontes.





terça-feira, 26 de abril de 2016

Imóvel

Não sei porque fiquei.
Mas, fiquei. Depois de ter gritado muito, explicado o que estava acontecendo em detalhes, falado do que sentia até chorar e nada. Do outro lado, ele apenas falava: “foi um mal entendido”. Me sentia totalmente sozinha, porque poderia ser sim um mal entendido o fato pelo qual a briga começou, mas estava com uma sensação que o mal entendido estava na relação em si.
Fui cansando, meu corpo foi pesando e eu me encostei na cadeira que ficava perto da janela. Eu adorava aquela cadeira desde o primeiro dia que entrei naquela sala. A cadeira estava em uma posição perfeita, perto da janela, diante de uma paisagem de tirar o fôlego. Eu era totalmente apaixonada por ela e fui em busca de acolhimento. Logo depois, sentei na cadeira e desfaleci.
Não saberia precisar quanto tempo fiquei ali e quando foi que ele saiu. Mas, eu fiquei. Imóvel na cadeira que era minha, mas já era outra. Fiquei ali diante da janela, como quem encontra uma paisagem pela primeira vez.

Carla - 26/04/2016

sexta-feira, 22 de abril de 2016

.....



o que veio primeiro?

O que veio primeiro, o ovo ou a galinha? O desejo!

Assim poderia ter sido resumida aquela explicação tão reveladora das escrituras e das estruturas. O professor falava tranquilamente dos aspectos históricos e políticos sob os quais estamos amparados e a aluna curiosa e astuta sacou a pergunta:
"Professor, o que veio primeiro, a religião ou a política?" E ele, bem tranquilo, foi direto na resposta: "O sedentarismo!"
As alunas franziram a testa e silenciosas esperavam a explicação para aquela resposta desproporcional que tinham ouvido. E ele continuou, com uma voz melódica, como um antigo cantador de mitos:

"Nascemos nômades. Nossa vida era andar por aí, incansáveis, sem saber qual era o momento de parada, de descanso. A gente seguia. Quem nascia, seguia junto, quem morria ficava pelo caminho e servia de comida para as bestas que habitavam a terra. Um dia, alguém resolveu parar, todos pararam juntos. E, na primeira morte, notaram que não dava para ficar ali com o morto fedendo, em decomposição, e com o perigo do ataque de algum animal feroz. Então, levaram o morto para longe. Mas nenhum longe é longe o bastante, pois ainda assim estavam próximos demais. Resolveram então fazer um buraco e enterrá-lo, pois debaixo da terra não federia. Dose ilusão, o cheiro continuava a aparecer e os animais também continuavam a rondar, cavar a terra em busca das vísceras que ali jaziam. Nessa época, e pela estrutura que já se organizara ali, a capacidade de produzir utensílios de cerâmica já era conhecida daqueles que tinham se instalado numa determinada região. Resolveram então cuidar dos mortos de forma diferente: fizeram um ataúde de cerâmica, o colocaram dentro, fecharam, vedaram com cera de abelhas e o enterraram. Pronto, o morto não atrapalharia mais. Mas, nem todo mundo sabia fazer o serviço, e quem sabia, ficou incumbido de cuidar dos mortos. Pronto, temos o Sacerdote! Mas tinha também aquele macho alfa na tribo, o que é mais forte, mais corajoso. É esse que passa a mandar, determinar quem faz o quê, e como. Pronto, temos o Político. E para completar, tinha os 'machinhos beta', aqueles que queriam ter a força e a potência do verdadeiro macho alfa, mas não tinham. Esses viraram seu exército, protegiam e obedeciam, na espera de ter sua vez no comando. Pronto, temos uma estrutura que dura até hoje. Vamos seguir com a aula?"

Simone de Paula - 21/4/2016



Conto inspirado na aula do prof. Roberto Coelho Barreiro Filho. Como todo mito contado, este serve para muito mais do que representar um fato real, mas para metaforizar as condições humanas diante dos impasses com a natureza.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Forma de escutar.

Hoje na rua embarquei em uma conversa solta de uma estranha. Era uma mulher jovem, de cabelos vermelhos, vestido azul e sapato amarelo que dizia sem muita paciência: "... tanto faz a forma, o que importa é o conteúdo..." E continuou a andar e a conversa se foi. 
Mas ficou em mim e eu não acreditei no que ela falou. Justo ela que tinha uma forma tão descolada! Como assim a forma não importa? Se ela estivesse de pretinho básico vai lá, mas a imagem dela não era de ter vestido a primeira roupa que viu. Tinha uma estética ali e portanto um discurso.
Passei o dia discutindo com essa jovem. Em alguns momentos a forma é que faz o conteúdo ser possível. Como assim não importa? Se estou em um país livre, a forma como eu penso, sinto e vivo é uma possibilidade de ser, totalmente contrária a de alguns regimes. 
Enfim, terminou o dia e resolvi desembarcar dessa discussão de forma e conteúdo. Passo por uma mulher e seu filhinho e escuto ele explicar com todos os detalhes que "... faz toda a diferença ela dar para ele uma bola de futebol e não de basquete. As duas são bolas, mas não servem para a mesma coisa, da pra entender, mãe?" Pensei comigo: dá sim! 

Carla - 19/04/2016

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Bastou um telefonema

Quando o telefone tocou, número desconhecido, atendi sem nenhuma expectativa. Do outro lado, uma voz conhecida me saudava de forma pouco usual. Cinco minutos depois, desliguei sem entender direito o que tinha acontecido. A sensação era de satisfação, nada ficou por dizer e nem por ouvir. Nada que queria ter escutado faltou. Não tinha esperado e isso foi altamente eficiente.
Um ato de cinco minutos, um estado de suspensão de um dia, um entendimento de uma vida inteira.
Pela primeira vez me senti livre para falar. Falei o que quis, sem censura, sem pensar antes, sem considerar intenções ou reações, hora ou lugar certo. Não me sentia invadindo território nenhum, mas ocupando o meu espaço.Decidi que a partir dali eu falaria o que tivesse vontade, pois pouco me importava o que o outro lado pensava disso.
A maior liberdade que uma mulher pode ter diante de um homem é poder falar o que quiser, sem medir, sem pensar, sem pedir permissão. A repressão ainda está aí, ali, na medida da fala. O que importa não é o que se diz, mas poder dizer, como um fluxo pulsional, sem importância com o 'o quê', mas sim com o 'como'.
Essa não é uma história de amor. Nem é uma história. Simplesmente é uma observação de que seja o que for, e como for, está tudo certo, desde que do outro lado não exista um muro, mas um corpo.
Ouvi um miado? Tem um gato aí?  hahahaha

Simone de Paula - 15/04/2016






quinta-feira, 14 de abril de 2016

Alimento


Ouvi atentamente uma linda garota indiana me contando como se sente com relação a sua comida. Estávamos em um café perto do mar, ela desenhava e colava pequenas flores em um pequeno caderno pardo. Antes me contou que é uma editora de TV, tem medo e muitas perguntas, tem vontade e procura fé, de galho em galho.
Tammisa tem 30 anos, usa uma camisa de linho azul clara. A pele escura deixa sua composição brilhante, seus brincos grandes emitem pequenos sons para os ouvidos de quem está perto e a escuta. Ela fala depressa, é urgente. Descobre a cada dia um traço que não sabia, uma flor que vira outra flor, um papel sem nada e contido de possibilidades. Muitas, imaginamos.

O que faz aqui? Ela pergunta.
Conto que estou na Índia por que tenho dois amores, um deles a comida.
Ela ri e por um momento nos olhamos como confidentes.
Nessa hora era eu quem deveria abrir meu caderninho, pensei que receita estaria prestes a ouvir, se ela me contaria a história das masalas de sua família, do tempo da marinada para o biryani, se prefere ghee ou óleo de coco, chapati ou roti.  
Segundos me levaram para pensamentos de samosa quentinha, arroz perfumado de cardamomo, idli com chutney, dosa com cebola roxa, coentro fresco, folhas de curry, cravo, canela, gengibre.

Foi quando interrompida na minha aromática fantasia ela me diz: comer é meditar.
Não entendo.
Sim, comer é agora. Quando come, você está, você é, corpo presente. Não se pode fugir enquanto mastiga. O mundo de fora entra para o mundo de dentro, os dois lados se encontram. Quando estou distraída, ela continua, faço um prato de arroz e vou mastigando uma pimenta verde, ela arde todo o meu corpo, minha boca parece chama, o sangue acelera. Uma mordida muda todo seu estado, convoca o que está apagado, revive. Eu cozinho para me saber parte do mundo que vivo, para me conectar ao outro, para amar o outro. Para não esquecer.

Essa sim é uma cozinha de sensações, penso.

Do que mesmo estou me alimentando?

Amor, é a hora do jantar.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Onde não se existe mais.

Voltei para aquela sala de espera em que vivi tantos momentos. Me vi distante e percebi que nunca tinha parado para pensar o quanto nossas histórias estão ancoradas no espaço. O quanto aquela sala tinha acolhido a minha tensão, a dor de não saber o que viria depois e as lágrimas que transbordavam porque já não cabiam no corpo.

Logo me veio a imagem daquelas pessoas que voltam para a cidade da infância para visitar a sua casa e descobrem que a casa não existe mais. Fiz isso uma vez, com uma casa em que passei uma temporada de verão. Quando voltei, existia uma casa, mas já não era a minha. E, a árvore que me acompanhou nessas férias, já nem mais existia.

Para onde vai essa infância? Onde ficou a árvore? Apenas nas minhas lembranças? Mas, onde ficaram as marcas das paredes, as janelas abertas para a rua, os detalhes da lajota? Para onde vai tudo que eu fui ali?

Carla - 12/04/2016

sexta-feira, 8 de abril de 2016

O arroz da falecida

Seu Osvaldo era um homem de hábitos. Desde jovem tinha planejado a vida: estudar, começar a trabalhar cedo, encontrar uma boa moça para casar e descansar na aposentadoria. Tudo tinha sido como ele imaginou. Estudou Contabilidade, ingressou num pequeno escritório próximo à sua casa e conheceu Helena, uma moça romântica que sonhava em ter uma família grande, com muitos filhos. Namoraram, noivaram, casaram. Um casal à moda antiga, até porque, eram atigos.
Infelizmente o destino não deu à Helena os filhos que ela queria, mas ela gostava da vida ao lado de Seu Osvaldo, pois ele lhe dava segurança. Acordavam cedo, ele saía para o trabalho e ela cuidava das coisas de casa. Ele voltava para o almoço, regularmente às 12:30h. No período vespertino, Helena encontrava algumas amigas para atividades de artesanato ou leitura. À noite, após o jantar, dormiam.
Um dia, Helena não acordou, havia morrido durante o sono, um ataque cardíaco. Seu Osvaldo foi mais uma vez atacado por um golpe na sua vida, mas não mostrou o abalo que sentiu, não era um homem de emoções.
Decidiu que seguiria a rotina, pois Helena faria falta, mas ele poderia cuidar de si mesmo. O mais difícil seria cozinhar, pois ela era uma ótima cozinheira. E o que ela melhor sabia fazer era o arroz, que arroz!
Nos dias seguintes ao enterro, almoçou num restaurante próximo, mas não tolerava muito a comida de lá, excessivamente salada. Passou a acordar cedo e fazer o trivial, mas ainda assim nem chegava perto da comida de Helena. Que falta ela fazia!
Os amigos do escritório notaram que Seu Osvaldo emagrecia e parecia entristecido, resolveram apresentar Ester, amiga solteira da esposa de Claudinho, afinal, um homem não poderia passar o resto da vida viúvo e sozinho. Como ter esposa estava nos planos, Seu Osvaldo topou. Ester era uma ótima moça, mais velha, não tinha casado porque ajudava a mãe com os irmãos mais novos. Ela gostou de Osvaldo, o chamou assim desde o primeiro dia que o conheceu. Casaram. Ela era uma ótima dona de casa, e segundo os amigos, uma cozinheira perfeita.
Osvaldo então lhe pediu o primeiro prato, após o matrimônio, ARROZ! Ela achou graça e fez, mas ele quando comeu disse: não está igual ao arroz da falecida.
Essa tentativa de fazer o arroz igual o da falecida se seguiu por muitos meses. Osvaldo cada vez mais acreditava que a falecida Helena usava algum método ou tempero secreto, pois era difícil uma mulher que cozinhava tão bem como Ester não acertar. Afinal, ela sabia fazer de tudo na cozinha.
Ester, de outro lado, testava de tudo, pois mais do que agradar o marido, tinha virado uma questão de honra superar o tal arroz da falecida. Como podia uma morta atrapalhar sua vida? Chegou até a consultar uma vidente, para tentar trazer a receita do túmulo. A cigana Yolanda tentou contato com os mortos, mas Helena não se comunicou. Ester se desanimou, resolveu que Osvaldo deveria entender que ela não tinha tal competência.
A vida foi seguindo, Ester conhecendo melhor a vizinhança, fez amizade com as antigas amigas de Helena. Eram na sua maioria mulheres que se reuniam para trocar receitas, dicas, leituras, rezas. Num almoço de sexta, Ester contou para Osvaldo que naquela tarde iria participar do clube de leitura das vizinhas. Osvaldo achou bom, mas não apoiou muito o programa. Pensava que era agora que Ester não ia mesmo mais cuidar dele. Mas ele pensava a cada dia que talvez não devesse ter casado de novo, que Helena podia estar sentindo ciúmes dessa nova vida e atrapalhando o casal.
Ele voltou para o trabalho, ela foi para o clube de leitura.Ela se divertiu, as mulheres a receberam muito bem. Assumiu esse novo hábito, participar do encontro das mulheres.
Durante o primeiro mês, ela contou para Osvaldo toda a programação, as conversas, as fofocas. Mas ele pouco se importava. Isso a chateava e ela foi se calando, mas não deixava de comparecer a um encontro.
Numa manhã chuvosa, Osvaldo sai para trabalhar e diz que vai chegar um pouco mais tarde para o almoço, Ester fica apreensiva, pois é dia de comentarem o último capítulo de 'Madame Bovary', livro que estavam lendo há dois meses e ela pretendia terminar ainda naquela manhã. Correu com as coisas de casa e sentou para ler. Adormeceu, afinal, dias chuvosos e leitura eram um convite ao cochilo. Acordou assustada com o cheiro de fumaça que vinha da cozinha. Chegou em cima da hora, só tinha queimado o fundo da panela. Para disfarçar, colocou toda a comida em travessas, assim Osvaldo nem notaria, afinal, justo o que ele mais faz questão de comer, o arroz tinha passado do ponto.
Osvaldo chegou, se serviu de pouco arroz, afinal, marcava insistentemente que ela não sabia fazer aquela iguaria, e na primeira garfada sentiu algo diferente. Comeu mais uma garfada e abriu um sorriso largo, soltou um suspiro e falou: é o arroz da falecida! Levantou da cadeira, cantarolou, abraçou Ester, estava num dos dias mais feliz da sua vida.
Ester pensou: então era isso, ela deixava o arroz queimar todos os dias. Helena é que era esperta, usava as manhãs para suas leituras e cochilos e Osvaldo imaginava que ela era a mulher mais dedicada a ele. Uma coisa era certa, Ester foi à Igreja, rezou uma missa e acendeu uma vela para Helena. Fizeram as pazes e aquela receita especial ficou o segredo entre elas.

Simone de Paula - 08/04/2016


Inspirado numa história que minha Vó Laura contava todas as vezes que alguém queimava o arroz. E, lembrada no último domingo, diante de uma panela de arroz queimado aqui em casa.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Stone Soup


Conta a lenda que viajantes famintos chegam em um pequeno vilarejo e pedem comida desesperados.
Eles carregam uma grande vasilha, vazia.
A comunidade está relutante, não quer compartilhar seu alimento.

No entanto, é preciso saciar a fome.

Eles saem pelas ruas, colocam água no seu pote e pedra.
Dizem: uma deliciosa sopa de pedras!

As pessoas estão confusas.
Como assim?
Assim, só falta uma cenoura.
E vem um com a cenoura.
Coentro faria a diferença aqui.

Todos se perguntam como poderia ser um prato desses.
E curiosos iniciam as contribuições. Tomate do jardim, um gengibre esquecido, pedaço de raiz, milho, folha, talo.
Querem ver de perto, provar o sabor desconhecido.
Quem poderia imaginar?!

Um único ingrediente, uma coisa e o sabor se transformava, fervia, aromatizava.
Tinha um pouco de João e José, Ashoke, Ibraim, pernambucano, paulistano, indiano, ituveravense. Maria, Marias, Badyia, tantas.

São horas.
Tempo.
Cozinham, temperam, misturam.
Tempo.

No final, a cidade antes temerosa agora prova contente o que fez.
Pais, filhos, homens, mulheres, bicho, gente.
Estão maravilhados, nunca viram tanta harmonia reunida em uma só colher, em uma só pedra.

Não haverá um dia como esse.
Desfrutemos.

...

E assim me aproximei.
Na casa de Nazaré, no bairro de Juhu, em frente uma praia de Mumbai, com vento, onda e areia.
Aceitei o convite para Stone Soup.

A porta está aberta, nos sentamos em silêncio.
Somos um círculo e nos calamos para ouvir.
Sabemos da voz.

Tammisa doa a sua especiaria falando da sua angústia diante do amor.
Lawrence coloca uma pitada de sal relatando o diálogo com um grande sábio no meio da rua agitada e barulhenta. Eu conto dos inúmeros encontros que vão me seguindo, incluindo esse que acabava de acontecer.

Obrigada, nos lembramos sempre.

Então, ainda sentados, provamos o dal, o arroz com cardamomo, a lentilha com folhas de curry, os legumes picantes vibrando a língua, a boca, o pulso.

Digo sim.
Estou aqui.
Danço com todo meu corpo. Danço a música.
Como a oferenda, respiro o incenso, sou capaz de dizer que estou sozinha.
Vamos dar uma volta?

E um longo passeio de mãos dadas, que sempre esteve ali, me chama pelo ouvido.
Vem comigo aqui.
Cutuca.
- Como será a nossa?
- O que?

- Sopa de pedras.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Como contar - parte três

(...) As viagens sempre organizaram as minhas histórias, sentimentos, desejos e angústias. Era o movimento de tomar distância e ver o todo. Essa viagem "às escondidas" não estava sendo diferente. Ao menos na intenção.

No dia do embarque, senti o de sempre: aquele frio na barriga do que estaria por vir, do que iria ver e do que estava ficando para trás, com um gostinho a mais que só em segredo podemos experimentar.

O voo foi muito tranquilo. Levei um livro e dormi por muitas horas. Chegando lá, desembarquei com uma sensação de conquista e fui em busca da minha mochila. Apareceu logo de cara e pensei: essa viagem está sendo como eu precisava. Já de mochila nas costas e quase na saída do aeroporto, tudo aconteceu. Não consigo estabelecer uma continuidade na minha memória. Lembro que estava saindo do aeroporto e no segundo seguinte já havia caído.  Estava no chão. Não consegui reconstituir a narrativa. Estava andando e...? Por quê estava no chão? Não consigo completar essa lacuna. Estava estatelada no chão, não via muita coisa, tudo era uma fumaça só. Fiquei imóvel, sem ver, respirar e sentir absolutamente nada, não sei por quanto tempo. Os sons começaram a chegar em mim. Escutei gritos, choros e senti uma mão me puxar. Era um rapaz, que me perguntava descontroladamente se eu estava machucada. Pensei: como posso estar machucada? Só estava saindo do aeroporto, andando calmamente. Quando levanto meus olhos para ver em volta, só consigo responder: estou viva.

Formou-se um grupo de quatro ou cinco pessoas e resolvemos ficar juntos até entender o que estava acontecendo. Por decisão unânime, iríamos sair do aeroporto. Só não imaginávamos encontrar lá fora a mesma destruição. Não sei falar o que estou sentindo, passadas doze horas de tudo e já instalada em um lugar “seguro”. Não consigo sair daquele aeroporto destruído. Um policial me avisou que teria 15 minutos para ligar para o Brasil e avisar o que havia acontecido. Eu não sei como contar, ninguém sabia que eu estava ali. Tenho a impressão de ser um personagem que entrou na história errada. A ligação completa e só consigo falar: estou viva!


Carla - 05/04/2016

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Apagão

Noite, interior, sala de estar.
Era assim que a cena estava montada quando aconteceu o blecaute. 
As luzes da cidade apagaram de uma vez, logo depois que  Eliana tinha entrado em casa.
O primeiro pensamento era sobre ter dado tempo de subir de elevador, evitando assim as escadas sob a luz de emergência, ou pior, no escuro, tateando os degraus. Depois pensou que tinha tido sorte de ter saído do elevador antes da luz acabar.
Ela olhou para o céu e não viu sinal de tempestade. Mas o que ela viu foi a beleza da cidade totalmente escura. Os faróis dos veículos que brilhavam enquanto se movimentavam era uma dança simpática. 
Num movimento automático, entrou na cozinha e apertou o interruptor, mas nada de luz. Riu da sua ação mecânica. Foi pegar algo para comer, mas se deparou com a esquisitice de abrir a geladeira e não acender a tal da luz que está sempre lá. À medida que avançava nas atitudes rotineiras, ora se antecipava lembrando-se da falta de energia elétrica, ora o movimento era tão rápido e inconsciente que se chocava. Como podia estar tão automatizada?
Quando tudo voltaria ao normal? Como ela iria saber que horas a luz chegaria se o telefone sem fio só funciona com energia e o seu celular estava sem crédito? Wi-fi desligado, nada de computador nem internet. Estava isolada. Pensou em falar com a vizinha, mas nem tinham muito contato e achou estranho tocar a campainha. Opa, não tem campainha, teria que bater na porta. 
Eliana notava o quanto as atividades que nos levavam aos relacionamentos humanos tinham sido substituídas pela energia elétrica. Se chocou, de novo.
Poderia fazer o que, à noite, dentro de casa, sem luz? Tomar um banho, mas gelado ia ser difícil, a noite estava fria. 
Lembrou que tinha no fundo da gaveta um radinho de pilha. Nas estações de rádio o único assunto era o apagão no Brasil. Mais da metade do país estava às escuras. As cidades mais movimentadas sofriam com o caos no trânsito e nos transportes públicos, além do comércio. Os comentaristas repetiam as mesmas informações, pois não tinha nada além disso para informar: era um apagão. O motivo, alguma pane em alguma hidrelétrica. Ponto, ‘nada além disso’. A repetição das informações, o resto que se escutava,  era uma tentativa de transformar o caos em afetação popular. Eliana foi notando que quanto mais ouvia as notícias mais ela ficava ansiosa, raivosa, inconformada e agitada. E também começava a sentir medo, querer ter sua família por perto, se esconder atrás do sofá.  Os pensamentos que antes serviam para pensar na surpresa ou na automatização das reações, agora se transformação em emoções exacerbadas e infantis.
Eliana percebeu que estava contaminada por um excesso de palavras sem nenhuma serventia. Poderia passar a noite ali ouvindo teorias e opiniões que não passavam de tentativas de fazer existir o que não existia: algo além daquilo, mais do que o simples apagão. Mas ela  também poderia desligar o rádio e lembrar como acontecia na sua infância quando acabava a luz.
Desligou o rádio. Fuçou numa gaveta e achou uma vela, que usava para fazer pedidos ao anjo da guarda. Pediu permissão ao anjo e acendeu, com um bom e velho palito de fósforo. Estava com fome, comeu um macarrão que esquentou ao modelo convencional de acender o fogão, com o bom e velho palito de fósforo.
Deitou no sofá e deixou a mente voar. Levantou, olhou pela janela, a paisagem agora era mais tranqüila, os carros tinham sumido e a escuridão era reconfortante. Pensou na vida, no nada, em tudo. Teve todo o tempo do mundo. Tinha sono, mas não queria dormir e perder a chance de ficar nessa paz. Não sabia que horas eram, mas também não se importava, pois estava bem.
Cochilou no sofá e acordou com o alarme do celular, era de manhã, hora de acordar. Olhou pela janela, os semáforos já estavam funcionando. Tudo voltou ao normal. Era de manhã e tinha luz.

Simone de Paula - 30/03/2016

foto: Evgen Bavcar


Inspirada em 'Elogio à Sombra', de Junichiro Tanizaki, 'Memória do Brasil', e fotos lindas de Evgen Bavcar, na apresentação de Edson Luiz de Souza no último congresso da appoa, 'A melodia das coisas', e ainda no blecaute acontecido há uns anos no Brasil