sexta-feira, 27 de agosto de 2021

As rugas do amor

"Quem vê cara, não vê coração."

Esse dito dita a face do amor estampada na nossa cara. Não amor romântico (ainda que possa ser também), mas o amor ao si mesmo, amor aos vícios, amor às migalhas a que nos apegamos, achando que aquilo é o suprassumo da nossa existência.

Já foi o tempo que o amor (aí sim, aquele romântico, apaixonado, metade da laranja), dava ao semblante um brilho diferente. Os olhos olhando, como se mirassem aquele que se imagina. A boca falando, com a potência dos músculos e a umidade da saliva daqueles que beijam. O corpo exibido, implorando pelo corpo do outro. 

Todo dia vejo amor panicando, enrugando, estressando cada pequeno pedacinho do amante / amado. 

Aquele embalo que soltava todas as reservas com as quais a gente se agarrava ao mundo, agora se tornou aprisionamento ao outro. Mais do que nunca, não podemos largar aquela barra de saia que tocou na ponta dos nossos dedos, apavorados diante da certeza do ficar só.

Foi-se o tempo em que estar apaixonado carregava a ilusão de ter encontrado o par. 

Parece que agora, apaixonar é encarregar o par da finitude e da decepção.

Simone de Paula - 26/08/2021

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Etiqueta

Me acostumei a ficar no cantinho, escondida, acoplada a um pedaço de tecido qualquer.

Já se foi o tempo em que eu era exibida e desfilava no bolso da calça ou na fronte da camisa. Ali eu era mais do que um anexo informativo de tamanho e modo de uso. Me bordaram com marcas e elas reluziam em mim. 

Mas o fato é um só, eu não sirvo pra nada, apenas sou exigida a ocupar aquele lugar.

Do lado de fora, é sempre mais agradável, pra mim e para o usuário. Quando eu fico por dentro, incomodo, pinico, só me mantenho até vir a tesoura e me cortar ao meio, ou bem rente à costura da roupa. Porém, uma vez colocada, costurada, atada pelos furos e pontos da linha, não tem como me esquecer. Sou sentida, percebida nos movimentos, ou mesmo em repouso. Os mais detalhistas, pacientes, tiram todo o fio que prende aquele retalhinho na borda e fazem desaparecer os fiapos.

 Porém, uma vez marcada a superfície, sou inesquecível. 

 Simone de Paula - 20/08/2021

 



sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Luto

Que esse luto negado de ontem, que ainda hoje segue aqui, não seja eterno, posto que não é chama, apenas escuridão.


Simone de Paula - 13/08/2021

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Outras vidas

Queria acreditar que todos aquele encontros estavam escritos nas estrelas ou nas escrituras sagradas.

Passou por religiões e seitas em busca de confirmações. 

Mantinha o laço atado, sem, no entanto, firmar o nó dos corpos. 

Nem sabia se o que sentia era o desejo carnal ou apetite maternal enlouquecedor. Só sabia que jamais deixaria escapar aquele instante que a tirou da vida pré-fabricada para sempre.

Assistiu as mulheres da família viverem o mesmo filme, tédio e obediência. 

Não entendeu que eram formas do além, que ela gostava de fazer existir, lhe mostrando o caminho para sair dali, desfazer o mesmo.

Delírios ou deleites ou devaneios, tanto fazia, queria ter e não ceder.

Fez de todas as formas para disfarçar, enganar o senhor do carma, se passando por boa moça nesta vida pra ganhar o gozo total na outra. 

Um dia, fez mais uma escolha para poder insistir na eternidade do amor não realizado. Mas foi um passo em falso, se confundiu, escolheu bem, sem saber que isso a levaria para outro patamar: ou vai, ou some!

Se assustou, mas não pode mais ignorar: já que quer manter o desejo, que ele encontre um meio melhor de ser experimentado.

Simone de Paula - 06/08/2021