sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Livro do travesseiro

Se eu tivesse que escrever um livro do travesseiro, ele não seria um diário sobre os acontecimentos do dia ou as belezas da natureza. Eu colocaria ali as desventuras noturnas dos meus sonhos.

Dormir é um prazer delicioso. Pode parecer redundante qualificar prazer, mas se faz necessário porque os prazeres podem ser muito diversos. Eu mesma tenho um prazer ou outro que é mais culpado do que deleitável. Possivelmente eles aparecem mais saborosos nos sonhos, disfarçados, e aí cabem bem nesse livro mágico que se escreve noite após noite depois de dormir.

São tantas histórias que falam disso.... 

O próprio 'livro do travesseiro', de Sei Shonagon, é um deleite e se colocado no mundo onírico, funciona plenamente. As mil e uma noites, totalmente uma transmissão onírica. E tem também Alice no país das maravilhas, mas, diferente das histórias do oriente, Lewis Carroll precisa revelar que se trata de um sonho. 

Curiosidades ocidentais: ou é sonho ou é vigília. Não pode ser os dois ao mesmo tempo? É uma habilidade, sem dúvida, escrever sem definir o que é real e o que é sonho.

Voltando ao meu livro macio, que acomoda minha cabeça e permite que a transmissão de imagens e ideias inusitadas, vindas de algum lugar impreciso....

As coisas se repetem muito naquele campo, ora declaradamente reprisadas, ora colocadas em outros termos. Mas também podem trazer coisas completamente diversas. É uma surpresa atrás da outra. Quando acordo, como um leitor que termina um capítulo, posso compreender que eu já tinha visto aquilo em algum lugar, ou mesmo captar que eu já havia sonhado com aquele mesmo tema. Mas, enquanto durmo, tudo é novo, sempre. 

Sonhar é ter a capacidade criativa de escrever muito bem, com signos inesperados, sequências inusitadas e cortes surpreendentes. Como minha cabeça produz meus sonhos? Descrevê-los, ou melhor, escrevê-los, já não tem o mesmo impacto, afinal, não saber nada do que vai acontecer é a magia real que embala uma boa narrativa.

No meu travesseiro hoje tinha uma imagem linda que me levou direto ao filme O livro de cabeceira, do Peter Greenaway, mestre dos magos. A cama, o desejo, os corpos, as tatuagens cobrindo aquele torso nu, a conversa em fragmentos, o tempo. 

Acordei, sem querer acordar. Registrei, para poder deixar passar.

Simone de Paula - 07/08/2020


 

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