sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Última sexta

Última sexta do ano. Dois anos completos. Pelas contas, mais de cem contos.
Tudo começou, como vocês sabem, como uma experiência ente amigas. O mundo disponibiliza formas de fazer sem tantas dependências de meios ou formas certas e isso permite o exercício da execução. 
Comecei acreditando que o ato da escrita se desse a partir de uma ideia insistente, como uma revelação. Percebi que não, pois muitas semanas me deparei com nenhuma coisa interessante pedindo para ser contada. Entendi que para escrever devemos parar, pensar, imaginar e rabiscar. Dada a partida, o autor que habita em nós faz seu trabalho. Talento é outra coisa. 
Fiz escritos, mais do que contos, pois tentei poesia e haicai, meditações filosóficas, outras formas de expressão além do conto em si. Mas a constante que parece guiar minhas ideias e letras se dá nas relações. Até quero fazer diferente, mas quando vejo, já relacionei algo, principalmente, alguém. Não seria diferente, sou uma libriana. Mas o exercício me permitiu colocar em cena isso das relações desproporcionais que afligem alguma coisa em mim. 
Das minhas duas parceiras, uma seguiu em outra direção, o tempo dela é outro. A outra seguiu seu ritmo, transitando entre presença e ausência até achar alguma coisa do seu próprio tema. 
Seguirei, seguiremos. Na semana que vem começa mais um ano e na primeira sexta, publicarei um conto porque conta. 


Simone de Paula - 29/12/2017

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sax

A amabilidade é encantadora 
quando a hora bate tarde, 
e não tarda
na hora

de retribuir-me.

Maria Laura

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A voz

Estava fadada àquele destino. Se escondia atrás de véus, de trapos, tudo em vão.
O som da voz denunciava sua essência, a alma que a habitava.
Nunca soube direito se escolhia as imagens que vestia para esconder ou revelar (rebelar) melhor a face verdadeira do seu desejo. Sofria quando era tomada por essa face, mas era inevitável, pois não tinha controle sobre a musicalidade, o timbre, a singularidade daquilo que saía da sua boca. O que entra se controla, o que sai, não se sabe.
Os anos passaram, ela começou a brincar mais com o que tinha em volta, só então se deu conta que a revelação morava justamente onde ela não tinha acesso e nem controle. Aceitou, mas será que poderia se apropriar disso? Talvez se conformar com ocorrência imprecisa? Curtir a brincadeira que isso trazia, seria a melhor forma de tomar para si o que era verdadeiramente seu. 
Mas se não sabia de onde vinha, apesar de sair pela boca, e também não tinha controle, será que pertencia a ela mesmo? Se era no olhar do outro, no desejo despertado no outro, não pelo que este via, mas pelo que ouvia e se manifestava nele, era dela mesmo ou do outro?

Mélange, essa era a palavra mais precisa para dizer disso. Com significado de mistura e sonoridade de melado, a palavra desvelava aquilo que ela talvez provocasse quando falava. Uma mistura entre desejo de um e desejo de outro, provocando demandas indizíveis em busca de prazeres nem sempre possíveis.

Simone de Paula - 21/12/2017

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Salão de Festas

Durante a música, aproxima-se.
Passo e ritmo.

Não escuto mais a sua voz.
Nem um sussurro sequer.

Você soltou minhas mãos.
Enquanto amorosamente me agarrei a elas.

Aos poucos a distância cabe: um lugar.
Estou aqui.

Ao meu lado.
- Vem?
- Como?

Dançar, dançar.

Maria Laura



sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

City shots



A sexta-feira era de primavera. A temperatura quente prometia uma tarde sofrida na metrópole agitada e barulhenta. De repente a chuva, intensa, molhada, aliviando os corações. Naquela avenida movimentada, carros e motos seguiam sem mudar a velocidade. As pessoas, essas também, não mudavam o ritmo. Era sabido, ninguém mais se abalava diante de uma tempestade imprevista. Chuva boa.
No ponto de ônibus as pessoas se espremiam, inclusive com seus guarda-chuvas abertos. O casal de jovens, carregando o cachorrinho preto pela coleira, voltava com a orquídea de presente embrulhada num saco preto. Os pedreiros animados com o fim do experiente, alegravam-se com a promessa da cerveja do fim do dia. O desespero do desempregado dá lugar ao delírio do artista no palco, cantando no meio da avenida, entre o vai e vem dos carros, a melodia de louvor ao deus que insiste em castigar os pecadores encarnados. Um ônibus chega, alguns entram, seguem seu destino. 

Simone de Paula -14/12/2017

Conto inspirado na cena urbana do dia 08/12/17, na avenida Dr. Arnaldo em São Paulo, sentido Perdizes. 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Aniversário

Inteira
em cada pedaço.
Revelada
no outro que não supre
e nem deverá.
Para que enfim, eu seja.

Maria Laura


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A surpresa

De repente, pende na minha frente, balançando solto no ar, aquele que é um dos bichos mais misteriosos que conheço.
Minha primeira reação é a surpresa, porque surge diante dos meus olhos, vindo do céu, de um tamanho bem diminuto e sem asas que permitiriam que estivesse ali. 
Procuro a teia, não acho. 
Como ela chegou assim, sem vir tecendo e descendo devagarzinho?
Veio. 
Ficou balançando diante de mim, dos meus olhos. Transgrediu a gravidade e agora fica dominando meu olhar. Diante do fascínio de vê-la permanecer levitando no ar, minha cabeça tenta pensar o que fazer ou se é venenosa. Mas nada provoca em mim algum tipo de movimento. 
Quero parar o tempo nessa beleza do mundo. Não consigo, ela some, do mesmo jeito que apareceu. 
Procuro, não acho. Já valeu.


Simone de Paula - 5/12/2017



quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Peça

Entraram em cena.
Talheres, barulho, voz.
Respire fundo, aqui exploramos um terreno íntimo.
Somos todos convidados. 
Deveria ter nascido como desejo.
E fui o que eu nem sabia.
Inconsistente e imprecisa. Perfeita na medida de não caber.
Devorada pelo fantasma de uma (s) vida corroída.
Retorno e me visto do que imagino que deveria, em forma.
Abraço um pai, uma mãe, um bebê desnudo, aprendiz.

Aplauso. Fim.
Em reconhecer-se.

Maria Laura