sexta-feira, 30 de março de 2018

Silêncio

Não quero o mudo, nem mesmo o calado.
Procuro no resto deixado pelo silêncio aquele pedacinho que faltava para ser dito.
Bati, cavei, raspei, fiz de tudo para tocar de leve o que tinha por trás da rachadura.
No som, na matéria ou no sentimento. Qualquer forma de existência que reverbere o que ainda não foi ouvido, mas está lá, pulsante, presente.
Descobri, em partes, que meus olhos poderiam imaginar o que seria aquilo. 
Escrevi, desenhei, dancei e cantei. Os espaços foram preenchidos. Mas nem todos.
Formei símbolos, rodei em círculos, segui mudando de lugar.
Hoje eu sei, apaguei por achar que era possível calar o silêncio. Tolice. 
Não esqueço mais. É nesse sem fim de certeza que se pode fazer o melhor com o que está lá sem saber.

Em cima da areia tem o mar.
Embaixo dela, também. É só cavar um buraco fundo que brota água salgada.
Como ela foi parar lá?

Simone de Paula - 30/03/2018


quinta-feira, 29 de março de 2018

Trama


A avó que não conheci, Irlandina, me preparou uma grata surpresa.
Poema entre linhas.
De pano, tecido, detalhe.

Enquanto esperava o sol ir embora, embalada na cadeira de fazer mínimo vento, ela bordava uma neta que nem sabia.
Traçou contornos em verde, a cor preferida. 

Fez flor, listra, círculo, quadrado, curva.
Iniciais.

Capaz que ainda sinta cheiro da terra roxa entre os poros da estopa e da pele. E que ainda se escute os ruídos desse vento balançando os maus temperamentos sob a mesa posta.

Auspicioso um enxoval assim, na caixinha e todo dobrado de goma.
Anuncia o que deve ser cuidado, uma herança de acolhimento revisitada. Entre nós. As mulheres de uma família. Tantas famílias. E tempos.

Que abraço terno, vovó Landuca.
Não há casamento sem reconhecer-se.

Maria Laura, SP.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Festa da vida

Chegou em casa coberta de purpurina. Sabia que levaria a vida toda para limpar aqueles fragmentos do corpo. 
Era toda brilho: a roupa de lantejoulas, o glitter na maquiagem borrada pelo suor, e agora ainda purpurina com água de rosas borrifada a noite toda. Uma coisa era certa, suor e lágrimas misturados com água de rosas era inebriante. 
A noite tinha sido uma simulação do mundo onírico. O tempo de sonhar acordado. Nas paredes do salão, frases em neon vermelho tentavam transformar o lugar no espaço liberado para os prazeres. “Realize o seu desejo”, “ experimente o que você sonha”, “aqui não há privação”, esse tipo de coisa. Drinks coloridos, roupas extravagantes, risadas exageradas. 
Não dava pra dizer que não tinha sido bom, aliás, a festa foi ótima. Mas tinha uma coisinha que tinha permanecido desencaixada. Durante a diversão, não, mas no caminho de casa. Quanto mais perto chegava do seu lugar, mais aumentava o mal-estar.
Não notou que um pensamento tentava invadir sua consciência. Não percebia também que o evitava antes mesmo da primeira palavra se formar. Se começasse, seria uma longa história margeada pelo fio melancólico do não saber sobre si mesma. Criou uma resposta para essa sensação, excesso de diversão. Não era uma má desculpa, mas não era totalmente verdadeira.
Banho e cama. E nessa hora, mais uma vez caiu no mundo onírico. Os prazeres vividos durante o sono não se assemelharam aos da festa. A angústia tomou o lugar da diversão. A mistura de flores caindo do céu, a sufocava. A boca parecia ser aberta por mãos gigantes e o medo de engolir pequenos diamantes era aflitivo. O corpo parecia entregue a todos que estavam ali, como se ela flutuasse, mas sem o conforto seguro que isso poderia significar. 
Ela não podia dormir, nem acordar. O corpo pesado, morto na cama. A mente desviando desse aprisionamento, tentando inventar formas de relaxar seu desespero. Ela nada sabia disso, mas estava misturada com isso. 
O dia já tinha avançado quando ela finalmente acordou com a maior ressaca. Não queria levantar. Olhava seu corpo dormente, entorpecido. Caçava os caquinhos de purpurina espalhados pela pele, pelos, cabelos, na esperança de um dia recolher todos os restos da passagem dela pela “festa da vida”. 

Simone de Paula - 23/3/2018

quinta-feira, 22 de março de 2018

Ritmo

O medo existe porque a gente sabe
que vai doer um bocado
seja saudade ou verdade
estamos diante do que deve ser visto

abri os braços e saltei 
fui recebida pelos seus contornos de afeto
me soprando nos olhos dizendo: veja, estou aqui
a música acabou de começar a tocar

um, dois, um, dois.

Maria Laura, SP.


sexta-feira, 16 de março de 2018

Entre a paixão e o romantismo

Na paixão há a força trágica, o tudo ou nada, vida ou morte.
No romantismo, o apaziguamento está no modelo "felizes para sempre". Mas o ideal nunca se atinge, é próprio do mundo das ideias e essas só existem além do sublime.
Se a paixão se desvia para o romantismo, esse caminho só vale pelo medo de perder o objeto da paixão, que pela lógica, já se foi.
Depois do encontro da plenitude no Outro, se não houver um fim, segue-se na imortalidade romântica, passiva, insatisfeita, mas cheia de esperança de um dia ter a paixão de volta.
Romeu e Julieta, Ilsa e Rick, etc, etc...ilustram a paixão. No fim, eles só podem morrer, ou se despedir. 
Arte se faz com paixão. Decepciona o espectador. Se consegue isso, foi por ter fascinado e encantado. Antes, ousou romper o infinito silencioso da espera pelo fim. A arte aposta no fim, pra permitir um espaço para um novo começo, sem esperança, mas com paixão. 
O pior nem sempre está na morte, como nosso momento atual nos faz crer, está na impossibilidade de morrer ou morrer de amor.

“Todo desejo é um desejo de morte” - possível máxima japonesa

Simone de Paula - 06/3/2018

quinta-feira, 15 de março de 2018

Travessia

Você se acalma e conta uma verdade.
Anoitece e dorme.

Você acorda e me abraça.
Deixa um rastro, do que ainda deve ser dito.

O tempo diz que cada hora tem a hora de chegar.

Andiamo.


Maria Laura, SP.


sexta-feira, 9 de março de 2018

Bar do urso

Depois de horas de estrada, subindo a montanha rumo ao Pico do Ferrolho, Yolanda só pensava em parar para esticar as pernas. Maciel queria seguir, estava ávido para ver o panorama de mais uma cidade, da longa jornada que vinham fazendo. Eles eram ambientalistas que percorriam as regiões de mata mais fechada para avaliar o estado das florestas. Não tinham encontrado ainda nenhum lugar desconhecido, pois há algumas décadas, o departamento federal tinha se encarregado de mapear e asfaltar as estradas já criadas, construir um caminho que ligava os pequenos povoados que ocupavam a região.
- Maciel, vamos fazer uma pausa! 
- Calma lá, não quero parar em qualquer lugar. Essa parte da estrada é sinuosa e estreita. É perigoso.
- Faz horas que não passa nenhum carro por nós. Nem sei como a mata não invadiu a estrada ainda. 
- Eu paro assim que sentir que tem espaço o bastante para nós, a pick-up e outro veículo de grande porte.
Yolanda virou os olhos e seguia admirando a paisagem, não tinha como discutir com ele. Era muito meticuloso e por isso era um bom parceiro para esse tipo de trabalho.
- Maciel, olha!!! Tem uma placa ali no meio da folhagem, mas não é placa oficial. Para, para! 
- Tá, calma..... 
Yolanda desceu correndo, sem nem dar tempo dele desligar o carro. Afastou alguns galhos e viu uma seta indicando ‘Bar do Urso’. As letras eram grandes, amarelas, bem destacadas num tronco de madeira com corte bem rústico. 
-Vamos?!?
- Claro!!!
Cinco minutos de estrada depois e acharam um pequeno atalho que adentrava a mata. Logo viram a cabana com as letras fortes indicando o Bar do Urso. Estacionados estavam um carro, duas motos e uma bicicleta. Do lado de fora o silêncio era quebrado por um ruído forte vindo do bar. 
Entraram e se animaram, pois além de ter movimento, sentiram um cheiro apetitoso no ar. Mesas de madeira, balcão, música ambiente, tudo normal. O estilo rústico era esperado para a região. Escolheram uma mesa e acharam divertido ver na decoração os típicos potes de mel, atribuídos aos ursos. Maciel escolheu uma mesa perto de uma janelinha pequena que dava para ver o fundo da cabana. Queria perceber o movimento dos fundos. Yolanda foi procurar o banheiro. Estavam excitados com tal situação inesperada. 
Yolanda voltou de boca aberta. O banheiro tinha quadros de crianças com ursos e isso pareceu perigoso. Logo que ela se sentou, uma senhora veio ao encontro deles, trouxe uma tabuinha com o menu entalhado na madeira. 
- Olá, boa tarde! Bem vindos ao Bar do Urso. Nosso menu é simples: refeições matinais à base de aveia e mel ou carnes assadas. Para beber, temos hidromel e suco de frutas silvestres. 
Tudo parecia apetitoso e os dois resolveram pedir um pouco da cada e compartilhar. Era tudo muito inusitado para deixar passar em branco. Olharam as mesas e viram as pessoas comendo nacos de carne, afinal, era um horário que se poderia almoçar. 
Yolanda pediu o mingau da casa, que era de aveia e mel, com toque de canela. Maciel pediu sortidos de urso. Ele ficou com o hidromel para beber e ela com o suco.
- Esses sortidos de urso, o que vem?
- O sortidos traz orelhas e rabo de urso. Geralmente indicamos para crianças porque os pedaços são menores e mais fáceis de digerir. Se quiser algo mais consistente, o lombo de urso é ótimo e a barriga, mesmo sendo mais gordurosa, é muito macia. Vai de sortidos mesmo?
- O que você recomenda? 
- A barriga! A carne hoje está muito boa. Foi para a churrasqueira cedo e foi assada com calma, fogo brando, muitas ervas. O urso era jovem e a carne mais saborosa.
Maciel engoliu o salivar que antes tinha brotado dentro da sua boca e olhou Yolanda, que entrou rapidamente na conversa.
- Parece bom. Você tem esse bar há muitos anos?
-Sim, praticamente a minha vida toda. Vim para a região menina e desde então vivo aqui e preparo refeições para os viajantes. Não tem opções de comida no raio de 50km, por isso nosso movimento é garantido.  
- Como você se chama?  
- Sortidos ou barriga? Perguntou sorrindo para Yolanda, que a olhava com estupefação. 
- Barriga! 
- Já trago.
Yolanda acompanhou aquela senhora de meia idade até que desaparecesse por trás da porta da cozinha. Nos seus olhos, a imagem do vestido mais longo e por baixo botas de cano alto. O avental por cima da roupa, protegendo um vestido simples e antigo. Os cabelos cacheados, na altura dos ombros, decorado com um laçarote no topo da cabeça. Era uma menina crescida e envelhecida. 
- Maciel, você tá pensando o que eu tô pensando? 
- Sim! Essa barriga de porco vai estar deliciosa. Que bom que você viu e a gente parou. 
- Não!!!! É barriga de urso!!!! 
- Isso é jogada de marketing...
De repente volta a senhora com as bebidas. O hidromel dourado na caneca, muito convidativo. E o suco vermelho vivo, parecendo sangue, bem servido no copo longo. Yolanda estava muito curiosa. Queria entrar naquela cozinha. Queria ver quem cozinhava. Seguiu a mulher com os olhos e viu que tinha mais alguém lá dentro. Sabia que Maciel não tinha percebido as semelhanças e nem desconfiava de nada. 
- Gostou do hidromel? 
- Muito! Perfeito! Essa gente sabe o que faz. 
- Maciel, e se essa carne for mesmo de urso? 
- Será? Mas isso é ilegal. Teríamos que reportar ao departamento e fechariam o negócio dessa senhora. Se come carne de urso?
Yolanda deu de ombros e levantou em direção à saída do bar. 
- Vou pegar meu casaco no carro.
Do lado de fora, olhou tudo em volta. Pegou o casaco e caminhava como se estivesse admirando a paisagem. Foi se deslocando em direção ao fundo da casa. Ali, churrasqueira acesa e um galpão mais afastado. Ninguém cuidava do fogo. Ela seguiu até lá. Na grelha, partes de carne ainda avermelhadas. Realmente o fogo bem controlado assaria bem aquele alimento. Ao lado, um forno que cozinhava castanhas em uma cesta de palha. Seguiu para o galpão. Porta fechada, barulhos internos, frestas na madeira. Olhou, viu o que imaginava: ursos pardos presos. Mesmo esperando ver o que viu, quando viu, seu coração disparou. Virando, deu de cara com uma figura meio humana, meio animal, saindo pela porta da cozinha. Se olharam, se estranharam, se reconheceram, pararam. Ele, uma espécie de urso domesticado, seguiu para a churrasqueira. Ela foi em sua direção, queria saber se ele falava.  
- Olá!
Ele a olhou, acenou com a cabeça e voltou a virar os pedaços de carne. 
- Meu nome é Yolanda, e o seu?
Ele caminhou até as castanhas e remexeu de forma intensa, sem sentir a alta temperatura na palma das mãos, protegida pelos pelos grossos que lhe cobriam o corpo. 
- Você fala a minha língua?
Ele a olhou, sorriu e acenou positivamente com a cabeça. 
- Precisa de ajuda? 
- Não, obrigado! Seu mingau já está servido.
Yolanda entendeu o recado e voltou para o interior da cabana. Maciel comia a carne com o maior prazer do mundo. Ela olhou o mingau e quando experimentou, notou que era o melhor que já experimentara. 
- Gostou, Maciel? 
- Sim... experimenta um pedaço.
A carne estava deliciosa. Yolanda estava se apaixonando por tudo ali e não esquecia o sorriso que tinha recebido do lado de fora da cabana. Para disfarçar seu envolvimento com o lugar, brincou com Maciel: 
- Olha lá a Cachinhos Dourados... 
- Nossa, finalmente você concordou comigo, entendeu que é tudo jogada de marketing. Contos de fadas funcionam e atraem adultos e crianças.
Pediram a conta, pagaram e saíram. Yolanda gravou no celular as indicações de localização, porque ela voltaria ali sozinha. Queria saber mais desse lugar.
Retornaram ao departamento, fizeram os relatórios, mas Yolanda precisava achar um jeito de retornar e criou algumas dúvidas em certos pontos da região, incluindo a cabana do Bar do Urso. Discutiu um pouco com Maciel, mas o convenceu que deveriam voltar para colher mais dados. Ele topou, pois era muito detalhista e quando era o inspetor, tudo era minuciosamente reconhecido. 
Dois meses depois estavam lá os dois, pela estrada afora, colhendo dados e revendo a inspeção anterior. Chegando perto do bar, resolveram fazer mais uma refeição. Entraram cumprimentando a dona do bar como se fossem velhos amigos. As coisas estavam na mesma, apenas o bar estava mais vazio, só com uma mesa ocupada. Pediram carne, dessa vez o lombo e as castanhas assadas. As bebidas como da vez anterior e o molho de mel e ervas para acompanhar. Yolanda, mais à vontade, seguiu a dona do bar até a cozinha, queria conhecer tudo. Diante de tal curiosidade invasiva, ouviu uma pergunta em tom de bronca: 
- Você é repórter? 
- Não. Sou do departamento ambiental. 
- Vai fechar meu bar? 
- Não. Depende. Tem algo ilegal aqui? 
- Sim, tudo!
Por essa Yolanda não esperava. Mas continuou em silêncio até que a mulher continuasse a falar. 
- Estamos em uma zona protegida, caçamos ursos e servimos, colhemos frutas e castanhas, além do mel. Nenhum desses produtos poderiam ser extraídos, mas o fazemos. As pessoas sabem que é um lugar secreto, apenas para quem presta muita atenção à paisagem no percurso. Tentamos manter tudo o mais nativo possível, mas somos humanos e alteramos qualquer lugar em que nos metemos. 
- E o churrasqueiro, quem é? 
- Um nativo. Quando o encontrei, estava sozinho, mas era excelente cozinheiro. Eu sei, ele e estranho, não é da cidade. Viveu na floresta a vida toda. Não sabe dizer de família e passado. Parece saber a linguagem do mato. 
- Por que você não quis esconder nada de mim? Quer ser denunciada? 
- Não, claro que não. É minha vida e amo mais a região que você. Uso o que ela oferece, mas em uma quantidade muito inferior ao que se usa na cidade. Mas não tenho porque mentir, você veio aqui, fuçou em tudo e voltou. Na natureza não há mentira, apenas atos e consequências. 
- Posso ver a cozinha? 
- O cozinheiro também?
Com um sorriso, Yolanda entrou pela porta da cozinha. Maciel olhava intrigado, mas sorvia seu hidromel com prazer. Queria levar litros daquilo para casa. A comida chegou e ele já foi degustando.
Nos fundos do bar Yolanda tentava falar com o cozinheiro, mas ele não respondia, mesmo sorrindo e fazendo contato com ela. A senhora veio em seu auxílio: 
- Ele fala poucas palavras. Aprendeu, mas não gosta de falar. Prefere as sensações, toques, olhares, sons, cheiros. Geneticamente ele parece uma aberração, pois tem o corpo muito peludo. Talvez venha de uma linhagem de misturas entranhas, não posso dizer, o encontrei assim. 
- Eu quero ficar aqui, com vocês. Fiquei encantada, não consegui dormir direito esse tempo todo. 
- Não há dinheiro aqui, apenas viver. O que ganhamos é para poder comprar o que não produzimos aqui. 
- Topo! 
- Por quanto tempo? Parece ótimo vendo de fora, como alguém da cidade. Adoecemos e temos que tratar aqui, sabendo que talvez morreremos. Não é um conto de fadas. 
- Posso fazer uma experiência de três meses? 
Yolanda sorriu e tinha certeza que queria viver ali, com o churrasqueiro. 
- Sim.... seria bom alguém para me ajudar e manter esse lugar no futuro.
Yolanda voltou para a mesa e falou de forma direta com Maciel. 
- Vou ficar, não volto com você. 
- Como assim? Férias? 
- Não. Vou viver aqui. 
- Sério? 
- Sim.... adorei a comida... poderia comer isso a vida toda... 
- Ok.....
Maciel limpou a travessa, levantou e seguiu viagem sem sua companheira. Ele sempre achou Yolanda meio louca, mas agora teve certeza.


Simone de Paula - 04/3/2018

quinta-feira, 8 de março de 2018

Paraíso

Anda, anda.
Tem uma janela aberta em cima.
Entrou uma cobra grande, preta e ágil.

Desliza.

Corre, corre.
Ela vai picar, um desespero.
Entrou uma outra pequena agora.
Filhote.

O medo.

Ela tem a velocidade angustiante do bote.
Não tem defesa possível, (se) entregue.
Foi por um triz, seu pescoço agora está cortado.

Sangra.

A pequena chega em frente ao garoto.
Ele a olha rendido.
A cobrinha torna-se gentil. Brincam.

Acordo.


Maria Laura, SP, sonho.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Comida de rua

Comida de rua tem em todo lugar e todo mundo gosta e come.Tem lugares que a gente arrisca, outros não. 
Confesso que na minha cidade eu não como muito na rua. Mas, tem o cheiro do yakisoba da porta do metrô faz minha boca salivar.
Agora eu tenho uma história boa pra contar. É do amigo de um amigo meu. Eu sei, você já tá com aquele riso maroto no canto da boca e as palavrinhas formando a frase na sua cabeça: “amigo do amigo, tá bom...” Não te condeno, eu pensaria o mesmo. Mas, seja lá como for, é o seguinte, o cara só comia na rua, adorava. Nem pensava em mudar nada disso. Era livre para comer quando e o que quisesse, e ainda gastava pouco. Comida de rua mesmo, é simples e barata.
Ele foi uma criança feliz em uma família em que a mãe cozinhava com esmero. Certo dia, conta meu amigo, a mãe dele morreu e finalmente ficaram só ele e o pai em casa. Foi aí que ficou complicado,  porque nem ele e nem o pai tinham imaginado um dia ficar sem a mãe. Isso poderia dar uma história linda como a do filme Hanami, mas não, a coisa não teve poesia, só a boa e velha praticidade mesmo. Durante dois anos após a morte da mãe, comeram juntos poucas vezes, mas os dois usavam a mesa da cozinha para fazer o  sanduíche de pão com queijo, no café-da-manhã e no jantar. O pai se virou bem, almoçava todo dia na casa da irmã mais velha, que o adotou diante da viuvez. Família sempre se ajeita e irmão serve pra isso. Mas o Vitão, não tinha irmão, era filho único e agora nem sabia a quem recorrer, porque o pai, tinha se virado, mas não ia chamar ‘marmanjo’ pra ir junto. Meu amigo, o Zeca, gosta de ressaltar essa parte do marmanjo, porque para ele, pai é vilão. E, no caso do Vitão, fica fácil dramatizar assim. Não acho que o Vitão se incomode muito, não, porque ele comeu pão com queijo todo dia, duas vezes por dia,  durante dois anos e ainda gosta disso. Mas a saga continua, porque Vitão resolveu sair do emprego e o restaurante por quilo em que comia,  saiu do seu quadrilátero. Com o novo emprego,  como representante comercial,  ele rodava a cidade, passou a ver a rua com frequência, sentia que ali era o seu lugar. Tá com sede? Camelô, boteco ou padaria. Tá com fome? Hot-dog, salgados ou pizza. E, se quisesse uma extravagância,  tinha também fruta. E de sobremesa, sempre encontrava um ‘japa doces’ pra comer seu chocolate habitual. A vida tava boa para Vitão. Nisso se foram uns quatro anos. O pai resolveu ir morar com a irmã para cortar despesas, porque a aposentadoria não durava até o final do mês e Vitão ficou no olho da rua. Foi morar no quarto extra da casa do Zeca, se conheceram ali. Mas a empresa achava o Vitão pouco agressivo para uma praça como a de cidade grande. Mandaram Vitão pro interior do estado. Ele foi e lá começou sua tristeza. Não teve morte de mãe ou despejo de casa que se compararam a não encontrar comida rápida facilmente. Ele sentia fome e tinha que ir a restaurantes. Os gastos aumentaram. Os gostos diminuíram. Vitão deprimiu. Se ele não vendia muito na cidade, no interior e deprimido, menos ainda. Mas cão sem dono sempre tem quem adote. Julinha era a atendente da padaria do seo Mané. Vitão conseguia pelo menos ali, o pão com queijo. Ia lá todo dia e ouvia a Julinha perguntando sobre as vendas. Vitão achava a garota bonita, mas não tinha ânimo pra nada, muito menos para namorar. Julinha, como toda moça esperta, notou que ele comia sempre a mesma coisa e resolveu perguntar o que era a comida preferida dele. Foi abrir a porteira que a boiada rebentou no pasto, como diziam na cidade. Vitão contou tudo que gostava de comer e de tudo que não tinha na cidade. Julinha assumiu a missão de tirar Vitão da depressão. Todo dia era almoço e jantar na casa dela. Ela aprendeu a fazer todo tipo de gulodice que ele tinha comido na vida. Vitão se animou, passou a oferecer os produtos com mais empenho e as vendas aumentaram muito. O gerente, vendo tal mudança de performance, ofereceu uma vaga para Vitão voltar pra cidade grande e com promoção. Vitão ficou tentado. Como ele nem tinha notado a importância da Julinha, e sua cozinha, na vida dele, ele achou que o mérito da promoção era exclusivamente dele e resolveu aceitar a proposta. Voltou. Zeca, meu namorado (confesso), agora não tinha lugar pra ele em casa. Pediu asilo para a tia, mas o pai recusou que ele fosse morar com eles. Vitão alugou um quarto em uma pensão, não tem com quem falar, mas ainda está matando a saudade da comida de rua e as vendas seguem. A gente só não sabe se isso acaba um dia. 


Simone de Paula - 02/3/2018

quinta-feira, 1 de março de 2018

Um do lado do outro.

Um corpo, acostumado sozinho na cama
tem o giro certo de seu encaixe
o natural

solto o primeiro nó
percebe que o movimento o leva

ao paradeiro desconhecido bem ao seu lado
um corpo e um outro corpo
amoldados

quando juntos.

Maria Laura, SP