quinta-feira, 30 de junho de 2016

Cuidador

Pi pi pi pi pi pi
Um dos tantos sons que se ouvia do quarto. Os outros mais comuns eram dos carrinhos de limpeza, comida, dos exames, material de tudo, lençol, algodão, medicação. Os aparelhos medidores tinham cada um sua própria sinfonia, ar que fazia barulho, ar de respiração quando o sufocamento tomou conta de tudo. Também as conversas dos corredores, a cada seis horas trocavam de turno, médicos, enfermeiros, catering, manutenção. Todos os dias eram novas pessoas, a política do lugar diz que todos devem circular. Portanto, mal temos tempo para o afeto, um pequeno apego ou uma pequenina continuidade.

Neide foi a primeira com quem estive irritada. Não porque era ela, mas porque era eu. Qualquer coisa diante de dias e noites na frente da dor, me fariam bravejar,  se parece simples uma receita, em pouco tempo não é mais. Dormir não é mais simples, é complexo. Uma vida toda se revendo pelo corpo, sintoma. Um amor que nunca foi dito assim, revelado. Sempre nos conhecemos e pouco soubemos de nós, não imaginava que os olhos tristes vinham da sua história passada que nem você quer lembrar. Mas há algo novo onde penetramos, mais que agulha na veia.

Perguntava, apitava continuamente em nossas cabeças, ardia, a cada segundo de hora, nos agredimos e choramos, onde está a nossa cura?

Muitas vidas, mudando.
Uma cadeia de desamparos.
Seja possível, acolher.



 Maria Laura

terça-feira, 28 de junho de 2016

Meio do caminho

Me vi no meio do caminho, olhei em volta e não sabia muito bem onde estava. O meio do caminho é curioso. Você já não é aquele que era quando decidiu começar, tampouco aquele que você imaginava ser quando chegasse. Fiquei o dia todo namorando esse conceito do meio: meio das férias, meio do dia, filho do meio, meia idade, meio por acaso, enfim, me deparei com vários meios.

E talvez o meio do caminho seja aquele momento bonito, onde não há com o que se identificar, não há como parar, não há onde encostar, mas é o momento de desejar. É quando o desejo precisa guiar, quando só existe um sentir que é por aí. E aíVamos sentindo e caminhando e um dia chegamos a algum lugar, não àquele idealizado do começo, mas um lugar possível de se chegar e de ser quem se tornou durante o caminho.

Carla - 28/06/2016

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Faro fino

Sentiu um cheiro leve de cinzas adocicadas. Foi tomada pelo espírito do cão perdigueiro que a acompanhou durante todo o tempo de vida que lembra de si mesma. Era assim quando sentia um cheiro distante, um som longínquo ou um sabor inesperado. Ativou o faro e moveu os olhos em busca de um sinal daquele odor. Sabia que era um perfume conhecido, familiar, mas ao mesmo tempo não ter uma lembrança que garantisse a conexão entre o sentido e a coisa, era incômodo. Notou que se esforçava para lembrar o que era aquilo que tinha aquele cheiro. Na cabeça a pergunta insistia, "que cheiro é esse? que cheiro é esse mesmo?" De repente, numa movimentação imprevista, viu logo atrás de si uma jovem perdida no olhar e incessante na mastigação. As mãos pegavam o alimento do pacote e enfiavam na boca que já aguardava aberta, com restos de alimento mastigados e uma língua recolhida a espera de mais, e mais. Foi tão captada por aquela boca que parou uns segundo olhando, afetada. Como manda a boa educação, tirou os olhos, virou em outra direção. Mas agora sabia que cheiro era aquele e desejava ardentemente ficar hipnotizada olhando aquele movimento mecânico e veloz: pega! arremeça!  mastiga!  engole! Mas não podia olhar, não devia invadir a intimidade da desconhecida. Se fosse menos 'educada', olharia insistentemente, até cansar da cena grotesca. Foi despertada pelos braços da tentação. Nem pensava mais porque gostava tanto daquilo. Se tivesse que classificar, não seria possível ser comida, nem alimento, não sabia que nome dar, a não ser o próprio nome pelo qual chamavam. Que inusitado, era uma coisa que tinha apenas o nome pelo qual era chamada. Tão exclusiva que nem entrava em outras categorias agrupadoras. Com um esforço, poderíamos fazer um conjunto com aparentados, mas era uma forçação, pois aquilo era aquilo. Naquele momento percebeu que gosto e sabor ainda estavam associados na sua memória. Se sentisse um, pensava no outro, garantindo assim que nem precisaria consumir o que era classificado na sua mente, como 'mastigação infinita com mínimo prazer'. Mentira, era uma delícia! Era uma coisa com um gosto médio, mas que na sua boca ficava delicioso. Com um cheiro estranho, que no seu nariz acendia uma atração irresistível. Um pecado leve que ela nem sabia porque tinha entrado no campo das proibições. Depois de tantos pensamentos e reflexões, o anúncio da descida na estação de metrô a leva a outra ação e automaticamente ao esquecimento desse mundo paralelo em que estava, pensando nas suculentas pipocas de canjica do saquinho cor-de-rosa.

Simone de Paula - 22/6/2016


quarta-feira, 22 de junho de 2016

Ela era cansada

Ela era cansada, comentou a Mel sobre uma amiga.
Quem?

Eu, minha outra amiga, outras, as mulheres da família, da rua, do outro lado. Os homens.
O que cansa? Penso.
Não ter no corpo o movimento. Não ver no espelho o que não é desfigurado.
Distorcido.
Ser tomado pela fantasia. Permanecer na infantilidade de que o outro não sou eu. Ter o medo como amparo.
Que espaços são possíveis, como prazer, diante do tempo que não acredito?
Realidade.
O fato conta uma história, ela se repete, a cada retorno um novo olho.
Imagino cenários montados, construídos com bases em diferentes solos, são férteis, porque brotam, organizam colheitas sob céus de chuva e sol e tremores. Fincam raízes cuja profundidade não se vê, está embaixo da terra.
O tronco é flexível, mas reconhece sua solidez.
Maya, cujos braços e ternura me abrigaram por dias em Kerala, cuidava do seu bebê o dia todo, depois de uma madrugada entre um mamá e outro acordava disposta para o início do preparo de um café da manhã que duraria duas horas, um chapati feito na hora, quarenta graus fora da cozinha eram considerados uma temperatura suave, curry de grão de bico marrom, depois de cozinhar na panela do lado o óleo de côco enquanto doura com as sementes de mostarda, a cebola roxa, gengibre, cúrcuma e folhas de curry, ainda tinha o chai e o suco salgado de limão, isso era só o começo. De um dia todo e toda a vida.
Depois almoço, banho, roupa, compras, vizinhos, sáris, marido, tirar o leite da vaca, retirar a água da fonte. Perder o fôlego. Recuperar-se.
E aqui, uma hora no ônibus, o trabalho deficiente de limites, uma cabeça paranóica, uma mãe em frente ao seu filho triste, a mesma frustração quando se imaginava que essa não viria de novo, de novo, de novo.
Há algo valioso em cada cansaço.
Dar-se conta dele(s).
De nós (mim).
É hora de dormir e hora de acordar.

Maria Laura



terça-feira, 21 de junho de 2016

Presença.

Ela entrou, sentou e em silêncio se despediu.

Carla - 21/06/2016

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Tchau, meu amor

Toda a intensidade dos momentos que antecediam a despedida sumiam na suavidade das palavras que deveriam encerrar a conversa. Soava como largar as mãos, distanciar a visão, mas reacendia o desejo de permanecer. Na tentativa de romper, o beijo parecia a forma mais garantida, como se colasse mais e aí soltasse de vez.  Tenta uma, tenta duas, na terceira vez a aceitação, acabou.
Mas o coração palpitava, a cabeça devaneava, o tempo não passava. 
Tinha um cara que falava sobre não desistir do seu desejo, quem iria ceder primeiro. Claro, ele. E, mais uma vez o som mecânico dizia, acorda e vem pra vida que vai começar tudo de novo.
Quem tem coragem de dizer que ama, com a plenitude que essa expressão tem dento da boca, sabe que amar leva ao sofrer, mas que vale a pena sempre. Não há nada melhor pra fazer na vida a não ser amar, e dizer sempre: "tchau, meu amor.."

Simone de Paula - 29/04/2015

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Estão plantadas no jardim

Quando cheguei naquela casa sabia que algo diferente estava guardado em algum dos seus cantos. Entrei lentamente para não perder de mira o meu real objetivo de estar ali. Eu sabia que era um lugar de parentes, seus, não conhecia o grau de proximidade do sangue, mas imaginava que fosse perto, estreito, melhor. Queria saber tudo que eles faziam na tentativa de saber das coisas de você  e de alguma maneira me acalmar porque haveria algo que pudesse compreender. Assim meus temores seriam abrandados porque justificaria seu jeito frio de acordo com a fala da avó para o neto ou a briga dos sobrinhos ou qualquer coisa, ato, fala, movimento das origens e da historia me contando. Quando a gente está perto das coisas sem controle imaginamos muitas tolices, imaginamos que um dia controlaremos, que um dia saberemos e a maior bobagem é a maior alucinação e todos caminham juntos, tomam chá e café.
Então cuidadosamente fui até a cozinha, abri o armário principal às escondidas, saboreando minha audácia investigativa de você. Olhei as panelas, a pimenta secando para virar pó, o óleo se esparramando pelo jornal que forrava tudo, dei uma bela fungada quando abri o guardador de masalas e pronto, espirrei imediatamente, o garoto acordou, o choro começa. Mãe, tia, cunhada correram para entender o grito tão fora de hora, todas em volta dele, era apenas um bebê e tentavam se comunicar, adivinhar o que cada lágrima daquela dizia, mas não podiam. E era exatamente o que eu estava fazendo, uma menina. Procurava você em todas as raízes, no cheiro do arroz, na cor amarelada de tudo, no banheiro sem teto, na minha coisa infantil de não ver o outro como ele é, outro. Queria te ter como meu, achar seu passado pra me zangar com ele, tinha ciúmes da minha própria imaginação. Uma criatura.
Todos eles te compunham, eram seus fragmentos. Continuei a ronda até o jardim, as formigas me morderam, eram muitas, tive que parar, sentei na primeira escada, o vestido já estava molhado, o calor latejava minha incoerente caçada. Não era você que eu queria, era me conhecer que eu não sabia, chorei comigo num abraço de dois braços em volta de mim só, haviam ainda tantas casas, cômodos e especiarias nessa descoberta, eu mal sei. É um começo.

Espero não ter nenhuma resposta e viver.
Também me deitar com amor, como compartilhar o sono e o som em volume baixo dessas gritarias. 

Maria Laura

terça-feira, 14 de junho de 2016

Talvez seja o frio.

Por que você está assim? É o frio?
É, pode ser o frio sim. Mas, pode ser também a notícia que chega, esse ódio pelo outro, essa falta de empatia, essa indiferença ao redor. Também pode ser pela história que acabou, sem eu querer e pela que insiste, sem ter porquê. E, ainda tem o desejo, esse que dá trabalho e cobra um preço e não há como deixar de negociar. Levantar e fazer, não há outro jeito. A vida é aquela que fazemos com as mãos, mesmo quando essas estão congeladas pelo frio. Sim, talvez seja o frio.

Carla - 14/06/2016

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Questões



Como se faz uma pergunta?
Essa é uma dúvida que percorre meus pensamentos. Toda vez que eu percebo que o que eu quero saber só é pensado depois do assunto ter mudado de rumo, eu noto que deixei o momento passar.
Então, não é ‘como’, mas ‘quando’. Quando se faz uma pergunta? Será?
A questão é tão grave que cheguei a consultar um querido professor sobre uma pesquisa acadêmica que me permitisse ‘aprender a perguntar’. E ele, na melhor ironia orientadora, me disse para ler livros sobre ‘pulsões’. E, como boa aluna que sou, segui sua ordem e li diversos. Muitos. Fiz inclusive fichamentos. Isso me serviu, mas não me garantiu as perguntas na hora certa, muito menos um projeto de mestrado.
Enquanto escrevo isso, um sorriso surge nos meus lábios, afinal, parece muito bobo, como uma pergunta não sabe perguntar? Ops! O lapso comprova, o que deveria estar escrito aí é, como uma pessoa não sabe perguntar? Pessoa ou sujeito? Quem pergunta em mim quando eu pergunto? A dúvida é perversa, ela toma uma proporção diabólica.
Perguntas demandam respostas ou o desejo por respostas invocam perguntas? Me parece que a exigência do interlocutor está na base da dupla pergunta/resposta. Mas uma pergunta é uma questão? Para mim, a pergunta é a questão!
Olho pela janela, para o teto, e penso nostalgicamente, ‘onde eu estava na fase dos por quês?’ Pelo que eu sei desse passado infantil, eu estava falando feito uma matraca. E, provavelmente perguntando sobre muitas coisas. Mas isso foi parar tão longe que nem posso lembrar e muito menos afirmar.
Ah, isso tudo é culpa da bendita Lua em Gêmeos, só pode! Geminianos! Quem além deles vive com a cabeça a 200 quilômetros por hora? É tanto pensamento que nem dá tempo de pensar sobre o pensado. Chega outra ideia e empurra a anterior para fora do campo de atenção. Pensa em um monte de coisa e não pensa em nada.
Por que eu estou ouvindo The Police? Como essa música chegou ao final e eu nem me dei conta que ela estava tocando?  Porque eu estava pensando sobre as perguntas e nem me dei conta dos sentidos que estão ativados. Os sentidos adormecem enquanto a cabeça tenta dar sentido ao fluxo de ideias. O corpo morre enquanto a mente vive?
Essa lógica das perguntas, dentro de mim, funciona de forma muito esquisita. Eu me pergunto o que deveria ser a resposta do outro. Isso indica que as coisas seguem no sentido inverso. Eu deveria perguntar para ‘fora’, para receber uma resposta e não perguntar para ‘dentro’, e imaginar uma resposta. Hora da fase 3: ‘operação fala mansa’.
A ordem como essas coisas tem se desenrolado parecem indicar que mais do que fazer perguntas, eu quero dar respostas. Certo! Vou pro analista!
Não, mentira! Eu quero mesmo é te perguntar uma coisa: você me ama?

Simone de Paula – 09/6/2016

Inspirado no ‘Livro das Perguntas’, de Pablo Neruda.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Abraçados

Agora são três semanas no Brasil. São Paulo.
Um tempo dedicado a cada coisa, meus olhos já não são mais os mesmos.

Estive em uma longa caminhada pela Avenida Paulista. Gosto das pessoas, de rosto e arquitetura, roupa, vento frio, pressa. Me encanta a menina de cabelos coloridos deixando cair os livros, atrasada, no pé do ônibus lotado. Corre, corre.
O senhor vagaroso, abotoado, com o cachorro, os olhos do cachorro. A turma cansada saindo do trabalho, reclamam da fulana, que não devia ter feito aquilo, sentem raiva, gritam o quanto podem, o quanto tem permissão diante da hora e lugar, gente toda andando, corroendo suas fulanas ou qualquer coisa. Vejo um homem sem casa, um menino sem medo e sem nada a perder vivendo a qualquer troco. Estou dentro, estou fora.

A memória me cercou por todos esses dias. Eu não sabia que as buzinas estridentes de Mumbai ecoariam dentro de tudo meu tão intensas. Não era difícil imaginar.

Uma impressão constante que tenho da Índia é a de que as cidades parecem em eterna construção, prédios, casas, calçadas, ruas por acabar, sempre em processo. Aí trabalha uma mulher magra, fraca, que segura uma pá com cimento em uma mão e na outra ajeita o seu filho preso pelo sari em suas costas, uma noite com um prato de arroz, ela pensa. A poeira se mistura ao suor de gente, fica preso no catarro que escorre do menino, um nariz afinado com o esgoto, que era um rio, que tinha peixe e vivia.
Homens e mulheres nessa hora se misturam, ela se embruteceu, porque tem fome, precisa trabalhar assim, subir os tijolos da pátria, as novas bases solidificadas de uma vida estruturada que nunca terá.
Ela é indiana, é brasileira, mora em muitos cantos do mundo. Ele, o bebê, nasce todos os dias, quer leite e mãe enquanto se nutre da ausência.

Ausência.
Eu também não imaginava o quanto ela gritaria em meus ouvidos.
O que falta? Me pergunto.
Como falta? Me respondo.
Porque o outro pode me aproximar de um contato que ansiava há tanto tempo, todo tempo. O outro me (re)apresentou a mim mesma, desconhecida e que morria de saudades desse encontro.

Foi no teu afeto que algo deixou de ser meu, para ser algo quando estamos presentes, juntos.
Uma fala trancada consegue ser dita e sincera, a chave que abriu a amarra também arranhou toda a garganta e fez doer os trincos enferrujados, da falta de costume de ser.
Agora nos lembramos que o calor e os braços, o perfume de um dia inteiro do corpo do outro escreveram uma história, alimentaram uma parte dessa desnutrição. Contaram: veja o caos, olhe, há uma calma.

A minha construção é lenta. Meu amor, uma aprendizagem.
Você, caminho.

Maria Laura








terça-feira, 7 de junho de 2016

Seguir

Hoje acordei esvaziada e a caminho da análise pensei não ter o que falar. Depois de muito tempo em análise, você percebe que é assim mesmo: há dias em que você não tem o que falar, outros você não quer falar... em alguns você sabe exatamente o que precisa esconder de você mesma e em outros você fala tanto que sai de lá cansada. Esse exercício de ir para análise, mesmo depois de tanto tempo, me ensina muito do que é viver, do que é seguir.
Enfim, hoje era o dia de não ter nada para falar. E depois de algumas constatações a respeito da minha precoce saída da casa dos meus pais, da minha relação com a comida e do meu jeito de me organizar e criar, acabei nas cidades que morei até hoje. 
Comecei a narrar as cidades que morei e depois de narrar o período que fiquei em cada uma, do que acho que tenho de cada experiência e da tristeza que me dá em perceber que a cidade que mais tempo fiquei é a que menos me representa hoje, percebi que pulei a cidade que nasci. Nossa, pulei a cidade que nasci, depois de uma risada, pensei: "ah, é porque só nasci lá, fui embora muito pequena e nunca voltei". Mas, logo depois da explicação pensei: "nossa, não tenho nenhuma lembrança do lugar que nasci". Ela não virou um lugar para mim. É apenas uma cidade. Talvez, por isso que dar adeus seja um desejo constante, sem ponto de partida o que nos resta é olhar para frente.

Carla 07/06/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Rumos


Zeca tinha entrado na faculdade há dois anos. O curso de educação física parecia o que melhor se encaixava nos seus planos. Ele não tinha a menor ideia do que fazer na vida e adorava jogar futebol. O curso dava espaço para novas amizades e as festas eram frequentes. Tudo certo, e a família ainda não pegava no pé dele. Nas horas vagas, Zeca ajudava o pai na loja de materiais de construção. Numa tarde de verão, Silvio, que tinha estudado com Zeca na infância, entrou na loja procurando silicone para vedação. Os dois acharam graça no reencontro e marcaram de ver o futebol num bar no domingo próximo. Os dois eram fanáticos pela Ponte Preta. 
Zeca era muito imaginativo e passou o resto da tarde inventando o que teria acontecido na vida de Silvio. Ele tinha repetido 2x a sétima serie, porque ele ia mal em ciências. Namorou a Regininha por quase um ano, depois que rolou o primeiro beijo na formatura. Regininha era uma loirinha tímida e Zeca pensou que esse namoro daria em casamento. Mas ela foi estudar fora e o relacionamento acabou. Silvio casou com Marcela, filha da dona Otilia, que tinha uma quitanda perto da casa dele. Hoje os dois tentavam ter o segundo filho, porque Marcela acha bom que criança tenha irmão.
Marcela mal terminou a faculdade e já casou. Se dividia entre dar aulas de matemática e cuidar da casa. Que destino! Silvio,  que não ia bem em exatas, se casou com uma professora de matemática. Marcela era uma mulher de fibra, brava, cuidava de tudo. Todo sábado à noite ela colocava Silvio e João Victor, seu filho de 5 anos para fazerem o jantar. Os ensinou a fazer sanduíche, pizza, torta e hoje era dia de bolo de cenoura. Ela ia lendo a receita e os dois separavam os ingredientes e preparavam o prato. O menino adorava a brincadeira e o pai sabia que isso garantia o futebol do domingo. Marcela não era exatamente católica, mas ia à missa aos domingos com a família toda. Sílvio gostava da tranquilidade da vida deles. Naquela tarde chegou em casa e contou o encontro com Zeca. Marcela nunca tinha ouvido falar nesse amigo, mas achou legal Silvio encontrar pessoas do passado. Silvio não contou que desse encontro com Zeca, ele lembrou da prima do Zeca, a Vanessa, que conheceu num aniversário, logo depois da Regininha ter ido estudar fora. Vanessa era simpática e toda liberal, desbocada, e Silvio ficou apaixonado na hora. Tentou beijá-la, mas não deu certo, ela não parava de falar das aulas de filosofia. Ele imagina que ela deve estar uma gata hoje. Mora sozinha, na certa, Vanessa não seria mulher de aguentar homem vendo futebol no domingo. Será que ela tem filhos? Ele tinha certeza que ela namorava um cara bacana, com carrão importado. Vanessa foi estudar fora também, mas voltou e trabalha num negócio próprio. Livre, decidida e rica. Uma mulher que um homem não esquece. Naquele aniversário ela usava jeans, camiseta rasgada, salto e batom vermelho, e nem tinha 18 anos. Marcela pergunta quando vai ser o encontro e Silvio diz que no domingo. Vão ver o jogo juntos.
Zeca encanou naquele encontro e resolveu olhar o Facebook pra achar a Regininha. Ela estava 'casada' no status, mas só tinha foto dela com uma criança, melhor, um bebê e um cachorro. Zeca fuçava as fotos, mas não achou o tal marido. O Silvio deveria saber, namoraram, né?
Dona Carmen, mãe do Zeca, chegou na loja e viu o filho ocupado no computador. Ela tinha certeza que ele estava pesquisando para a faculdade e já assumiu a loja pra ele ir pra casa estudar mais tranquilo. Zeca saiu da loja e ligou pra Vanessa.
- oi Van, tudo certo? E o Rafinha? Sabe quem eu vi hoje? O Silvião, aquele que era louco por você. Tá casado. Veio aqui na loja. Vamos tomar uma cerveja amanhã? Legal! Aparece aqui em casa umas três e meia.
Vanessa achava graça no Silvio e queria ver como ele estava. Mas ao mesmo tempo ficou com medo do que ele pensaria. Por que ela foi num encontro dele com Zeca? Vanessa passou a tarde pensando nas desculpas, porque a última coisa que ela queria era que ele pensasse que ela estava a fim dele. Resolveu ir meio desarrumada, shorts e havaianas, com camiseta velha. Pronto, visual que garante não estar a fim de ninguém. Mas ela não podia deixar de pensar: "será que o Silvio tá bonitinho? "
Por via das dúvidas, Vanessa ligou para a Regininha e comentou sobre a cerveja do dia seguinte. Quando Regininha voltou de Minas, no final da faculdade de Direito, ficou bem amiga de Vanessa, pois as duas moravam perto e o papo fluía. Elas achavam graça de terem quase compartilhado um homem. Vanessa chamou Regininha para a cerveja, ia ser engraçado um reencontro de colegas da escola. Só o atrasado do Zeca que ainda enrolava na faculdade.
Domingo de sol, Zeca animado com o encontro, colocou até a camisa do time. Silvio idem, porque torciam para o mesmo time e ia ser ótimo ver o jogo tranquilo, num bar, como quando era solteiro.
Vanessa, como sempre, pintou os olhos e passou batom, mas foi de shorts e camiseta e havaianas. Regininha colocou a roupa mais simples que tinha, um vestido colorido, e sapatilhas, porque só usava chinelo pra sair do banho. Ela nem se maquiou. Era um bar tosco e um encontro informal. Quando Zeca viu Regininha achou ótima a ideia da prima. Chegaram os três e logo chegou Silvio que teve uma taquicardia. Só podia ser pegadinha, as duas lá?!? Ele cumprimentou todo mundo e fingiu que tudo estava certo. Mas Silvio era péssimo mentindo, ficou vermelho, tropeçou na cadeira e não sabia o que ia falar. Zeca não via Regininha há anos e ficaram conversando. Pra Silvio sobrou o papo com Vanessa. Ele sabia que estava pecando só de respirar do lado dela. Tentava pensar em Marcela, mas era pior. Não sabia o que conversar, mesmo que quisesse saber da vida toda dela. Novamente aquela mulher, e ele perdido. Começou o jogo e ele sentiu um alívio. Pensava em Marcela. Pressentia que ela iria passar pela porta do bar. Ela era desconfiada. Ia chegar com uma desculpa, que queria conhecer o amigo. Ia ver Vanessa e ia achar que era um encontro. Isso ia gerar muita briga. E ela ia interromper os planos do segundo filho e já falar da pensão do João Victor. Ele fixava os olhos na TV, mas Vanessa perguntava da vida dele, se tinha casado, se tinha filhos, com que trabalhava
A cada resposta, um copo de cerveja. No segundo tempo do jogo, Silvio nem lembrava mais de Marcela e Vanessa nem lembrava que tinha se vestido mal para não dar a impressão de que algo ficou inacabado entre eles. Aliás, o que deveria ter rolado e nem rolou, só isso. Eles estavam mais perto, acompanhando o jogo e a cerveja enquanto Zeca convencia Regininha a abrir uma academia fitness. E ela, que estava louca pra sair do escritório de advocacia em que trabalhava, estava adorando a ideia. Jogo, cerveja, negócios e sai o gol tão esperado. Na comemoração, Silvio tasca um beijão em Vanessa, que aproveita e continua beijando o ex quase ficante. Zeca e Regininha apertam as mãos em sinal de acordo e caem na gargalhada ao ver os dois atracados. E na porta do bar, Marcela dá um grito decisivo:
- Silvio! O jogo acabou! Hora de ir pra casa! Teu filho tá te esperando pra comemorar com você.
Silvio olhou para Vanessa que riu e desejou felicidades aos dois. Marcela não, mas deu uma piscada tranquilizadora para Vanessa. Zeca não entendeu nada. Será que as duas se conheciam? Só podia. A Vanessa era muito descolada. Ele tinha sacado tudo, elas se conheciam e o bobo do Silvio morria de medo que a mulher imaginasse que ele ainda sonhava com Vanessa.
Um ano depois Silvio foi de novo na loja e encontrou Zeca, que estava bem mais interessado em cuidar dos negócios e dos clientes.
Silvo agora ia comprar parafusos novos para montar o velho berço, Marcela estava grávida e ele sabia que ia ter muitas noites em claro pela frente.

Simone de Paula - 31/5/2016

Conto inspirado no livro 'A vida privada das árvores', de Alejandro Zambra.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Círculo

Saindo da terapia outro dia, ali naquela sala entre sofás e cadeiras que acolheram tantas palavras, amigos que nasceram no tempo antes de cada sessão, silêncios escondidos na espera, agora tinham três homens e um deles era Vinicius, nos conhecemos pelos caminhos do Jung, ele me pergunta: você só encontrou mulheres na Índia? Digo que não, estive todo o tempo acompanhada por um homem. No caminho de volta, no metrô, na lembrança do trem e do forte barulho dos trilhos correndo em Mumbai, da gente correndo, das portas abertas, penso: não um, alguns. 

Meu primeiro amigo foi Adi, em malayalam, sua língua materna, seu nome significa Adão. Quem escolheu foi a avó paterna por tradição, dias depois de seu nascimento é preparado o ritual, o pai o segura sentado na folha de bananeira, a pequena senhora em seu luminoso sari se aproxima, repete em seu ouvido cinco vezes, Adi, Adi, Adi. O nome está dado, agora é seguir com o destino e o ensinamento dos deuses.
O pequeno tinha três meses, forte e carinhoso foi o primeiro com quem pude falar português em Kerala, em plena e completa compreensão. Eu contava a ele das cores da baratinha e do poti poti da borboleta. Ele me respondia com olhares demorados, mãozinhas apertando meu dedo e comendo meus cabelos. Eu o chamava de bebê orgânico. Ainda o chamo assim. Me lembro do seu banho, primeiro de óleo, cabeça e corpo, depois o sabonete, a bucha feita de folha seca, a água da fonte. Sua saúde é água. Seu dourado é côco. Meu amor, imediato.

Depois Dileesh.
Um moço todo bonito em generosos sorrisos. Ele não sabia que no Brasil abraçamos todo tempo, gostamos da nova prática. Conversamos por horas e horas, me conta que é ateu, que luta pelo seu país, que sofre seu país, não crê em um deus que não os olha, em mistério algum diante de um prato de comida escasso, vê uma criança na rua, sabe da sua fome e tormento, sua mão toca a garotinha de cabelos sujos, cara suja, roupas rasgadas, o que sabe é o que nomeia e o nome disso para ele é: Shiva não está aqui, nem seu filho Ganesh removeu os obstáculos dessa família inteira dividindo a rua entre restos e ratos. 
Ele me explica que o hinduísmo sustenta o sistema de castas. As castas dividem a sociedade, segmentam e aprisionam pessoas. Um "intocável" alí é e será alvo de inúmeras humilhações, seu corpo será tido como impuro, seu trabalho pesado e a vida, quase nada. Considerada a casta mais baixa, pouco pode erguer-se sob esse solo desnutrido. Compreendo sua fúria, compartilho de sua indignação e ainda assim aquele próprio encontro era para mim sinal de uma magia que não controlo, não toco nem vejo, mas sei.

Quanto a você, meu bem.
Não foram todas as noites que dormi ao seu lado, foram as mais importantes, não porque você estava ali, mas porque você estava ali. Enquanto eu em pleno movimento, contínuo aprendizado, viva, em contato, não com um mundo sereno e suave, não, mas com a natureza das minhas camadas escondidas, reveladas em corpo, cheiro, grito, em braço, pescoço, fala, escuta, pulso, ouvia.
Do mesmo jeito que faço agora com os silêncios da distância. Como a música, pegue minha mão e minha vida toda também, dançamos. 

Maria Laura