quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Quem é quem

Repetir no espelho 10 vezes de manhã, 20 vezes a tarde, 30 vezes a noite. Que você vale a pena, que é preciso respeitar a si mesmo, que o valor está dentro, disponível para ser acessado, pronto, próximo, intacto. Repetir, repetir, repetir. Não são 100 vezes, 1000 vezes, todas as vezes. Nenhuma única vez se não for, se não confiar em nada, se tudo for não, depois de outro não. Sempre a mesma coisa, a mesma volta. O redemoinho. Se não volta. Diga, diga, diga.

Sim.



sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Vestígios

Os plantões eram mais frequentes na vida de Estela. Tinha escolhido a profissão como uma forma de viver. Independente, morava sozinha e não tinha muitas crises com isso. Sabia que durante o trabalho teria tanta gente ao seu redor que o silêncio e a solidão seriam formas de alívio. As amigas do colégio tinham ficado no passado. Muitas casaram e seguiram a vida de outra forma. Os amigos da faculdade, ou estavam como ela, em plantões e solidão, ou tinham montado consultório na clínica da família e curtiam o status que isso traz, sem muita vontade de conviver com quem trabalha mais do que vive.
Chegou em casa cedinho. A noite no hospital não tinha sido pesada demais, mas as horas em estado de atenção a deixavam cansada mesmo assim. Olhou rapidamente o apartamento vazio, limpo, fresco. Sorriu. Entrou no chuveiro e o banho foi um grande alívio. Foi até a cozinha, fez um café, comeu uma fruta, que ainda estava em bom estado, e se preparou para dormir. Seriam umas doze horas seguidas de sono. Já tinha instalado janelas antirruídos para não ter perturbações do barulho das ruas do bairro agitado em que morava. Tinha saído da casa dos pais, num bairro mais tranquilo, almejando estar mais perto do trabalho e da vida urbana. Mas só conseguiu o primeiro, pois do segundo apenas participava do barulho.
Entrou no banheiro, colocou pasta de dente na escova e quando ia leva-la à boca notou um pêlo no canto da pia. Não era cabelo, mas um pêlo pubiano. Um pentelho bem no cantinho da pia. A cabeça deu uma conferida geral em todas as possibilidades: a faxineira tinha limpado a casa no dia anterior, como isso ainda estava ali? Dela não era. Mantinha-os bem aparados, pelo menos com esses cuidados, ela conseguia estar em dia. Nem lembrava quem tinha sido o último cara com quem transou. Fazia mais de um mês que tinha tido uma noite gostosinha de sexo com o cara do aplicativo. Seria dele? Só podia. Teria alguém entrado no apartamento? Talvez. Respirou fundo, olhando fixo para o pêlo. Com a escova na boca, um pensamento passou como uma rajada pela sua mente: se teve alguém aqui, ao invés de levar algo, deixou isso. Foi tomada por um nojinho que tinha quando jovem. Pensava nos homens e no corpo deles com um certo desconforto. Mas agora, era um pentelho na sua casa, na sua pia. Registro da presença de alguém, que não ela. Pegou-o com a ponta dos dedos e jogou no ralo. Mirou, mas não entrou. O pêlo insistiu em se exibir. Abriu a torneira e jogou um jato de água e dessa vez ele foi pelo ralo. Foi pra cama com a mente alerta. Tinha um intruso na sua casa e uma faxineira que não fazia bem a função de eliminar todos os vestígios que ela não queria que fossem vistos. A imagem do pentelho grudou nos seus olhos, não lembrava das transas, mas sentia um desejo aumentando dentro dela. Como podia sentir nojo e ao mesmo tempo querer sexo com o dono do pentelho, seja ele quem for? Imaginava um homem. Não tinha rosto, não dava pra ser identificado, mas tinha corpo. Como achar essa pessoa? Tomada por essa perturbação, virou o jogo da sua mente, fez exatamente o que tinha sido ensinada a fazer: diante do sexo, se feche! Mudou o foco e foi procurar pela casa outros restos de gente. Olhou o chão, notou cabelos e pó. Recolhia cada fio com a pontinha dos dedos, como fez com o pentelho, e ia colocando dentro de um saquinho plástico. De volta ao banheiro, perto do vaso, viu um pedaço de unha. Tentou se identificar com o resíduo. Sim, aquela unha era dela. O modo investigativo, determinado, tomou completamente o lugar do desejo erótico que tinha acelerado seu corpo. Foi encontrando muitos pedaços de corpo espalhados pela casa. Pensou em fazer uma faxina de verdade para acabar com tudo aquilo, aquelas pontas soltas, fragmentos do passado, verdadeiros fantasmas. Se sentiu assombrada com os micro pedaços humanos, partes mortas do corpo que despencam. Filosofava sobre o sentido da vida, que pelo que ela via espalhado por ali, era a morte. Foi sendo tomada pelo terror de morrer sozinha. Em quanto tempo alguém notaria a sua falta? Será que o cheiro de corpo decomposto infestaria todo o edifício ou apenas seu apartamento? Quanto mais pensava na morte, mais se distanciava do nojo e do desejo. Parou, deitou no sofá coberta e encolhida. A sala clara pela luz do dia. Ligou a tv e deixou que o som a invadisse, silenciasse os pensamentos. Dormiu em menos de cinco minutos. O sono não foi tranquilo, fragmentos de sonhos se impunham ao relaxamento da mente. A noite chegou, ela levantou, preparou um jantar leve, pegou um livro de poesia, adormeceu. E dessa vez, o repouso foi satisfatório. 


Simone de Paula - 22/02/2019


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Meias mentiras


Meia de seda.
Meia de algodão.
Meia três quartos,
Meia sete oitavos,
Meia calça.
Meia  social.
Meia esportiva.
Meia porção.
Meia razão.
Meia fração.
Meia proporção.
Meia hora.
Meia fora.
Meia mentira é que Pinóquio é um boneco de pau com nariz comprido e mentiroso.
Meia verdade é que ele é o consolo do Geppetto solitário.

Simone de Paula – 15/02/2019


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Mel

Saíram para almoçar grãos e naturezas.
No caminho falavam dos meninos. Ah...quanta meninice!
Pão caseiro, geléia azedinha, beringela com liga, liga de banana verde.

- Foi uma tristeza viu, plantei a rúcula com todo amor, tava pronta, linda, verde, muito verde, parecia viva.
- Gostoso.
- Nada, tava toda comida, amassada, coisa de mini tornado.
- Como foi isso?
- Acusei o marido, as crianças, nunca pensei nela, quando descobri...Você dá um duro danado e sem a menor consideração ela chega e destrói tudo, um trabalho de dias e dias!
- Quem foi?
- Olhei para ela furiosa, dei o maior sermão, falei mesmo sem dó, que isso não se faz, que ela precisa ser mais responsável, comprometida, que tem que respeitar o trabalho do outro, que eu não to aqui de brincadeira não, que uma rúcula é coisa séria, é nutrição! É nosso alimento, que hoje é preciso pensar com consciência, com amor por tudo, tudo mesmo. Não se pode fazer o que quer assim do nada. Poxa vida. Com aquela indiferença comecei a levantar a voz, fui suando de nervoso. Deixei tudo muito claro, dei um basta, joguei na cara um monte de coisa guardada. Ah se fosse só a rúcula! O que me mata é esse olhar, esse ar de superioridade, parece falta de sentimento, que não tá nem aí, só de pensar quero chorar, gritar, explodir!

A gata saiu calmamente e deu uma bocejada. Parou um pouquinho no pé do sofá cor de rosa para arranhar o tecido gostoso e macio. Muitas outras sementes seriam plantadas.

Maria Laura







sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Biografia

Resolveu inaugurar o corpo com a imagem de um peixe. Antes mesmo de saber o que desenharia sobre a pele, já tinha decidido em que lugar do corpo colocaria aquela imagem. Seria na lateral do antebraço. Queria causar horror aos pais, que imaginavam que ele seria um advogado. Garantiu com isso não apenas a quebra das expectativas, como um olhar de repúdio quando se alistou no exército. Sentiu a maior satisfação ao ver nos olhos do avaliador a desaprovação. Mas, talvez como castigo, ou porque seu corpo era saudável e com a altura adequada à um treinamento, não conseguiu ficar de fora da instituição militar. Um ano de desaforos e castigos em resposta às desobediências e fugas.
Saiu de lá direto para a faculdade. Já tinha perdido um ano e os pais agora queriam que ele ganhasse tempo. Ele queria ter um motivo para passar o dia fora de casa. Deu certo. Assim que passou no vestibular, fez mais uma tatuagem. Dessa vez no ombro, bem grande, uma arte geométrica que descia pelo braço e circundava o bíceps. Mostrava o desenho todo quando alguém percebia, pela barra da manga da camiseta, os traços pretos bem destacados. Não concluiu o curso, porque um amigo que tinha uma empresa de entregas o chamou para trabalhar. Entre dinheiro e conhecimento, ele ficou com o primeiro. As namoradas vinham, mas o largavam quando percebiam que o olhar dele era muito  mais voltado para si, e para o seu corpo, do que para elas. Morava ainda com os pais, porque a grana que ganhava só dava para os seus prazeres. Tentou ensaiar um pouco de tudo, ora esportes, ora hobbies, mas nada o fazia persistir. Detectou que não era o rei da consistência. Quando fez 28 anos já tinha em torno de dez tatuagens pelo corpo. Os motivos variavam, tanto na justificativa do porque fazer quanto no desenho ou estilo que usaria em cada vez. Sofreu alguns chacoalhões da vida pouco antes dos 30 anos. O pai, sofreu um acidente e ficou muito mais dependente dos cuidados da mãe. Ele precisou colaborar financeiramente em casa e se viu amarrado ali. Os anos passaram, ele foi morar temporariamente em outra cidade para trabalhar num projeto com uma antiga colega de faculdade. Fora do meio ambiente conhecido, percebeu em si uma insegurança absurda, nunca antes entendida dessa forma. Jocoso, fazia piada de tudo e todos e continuava escondido das situações que em que ele via desafio e possibilidade de mostrar competência. Chegou aos quarenta anos com o corpo quase todo coberto de tatuagens. Virou seu vício. Foi blindando os sentimentos com as sensações na pele, vendo em si as marcas de uma vida. Voltou para a casa, a mãe agora viúva precisava de companhia. Ela deu para ele o lugar que sempre esperou, quarto principal da casa e autoridade de quem é chefe de família. A namorada da ocasião mudou para lá e decidiu que queria ter um filho. Família inteira, completa, modelo padrão. Ele curtia toda a situação, mas parecia não saber mais quem era, porque se olhava no espelho e parecia ver uma folha de jornal, com rabiscos sem fim. Que notícias daquela vida aquele corpo traduzia? Com a morte da mãe veio a depressão. Se escondeu do mundo e de si mesmo. Pediu para tirar os espelhos da casa, não aguentava se olhar, ver o excesso em que ele tinha se transformado. Sentia frio, queria cobrir pernas, braços, mãos e pés. O filho, agora já crescido, pedia para ele se tratar, queria o pai com ele. No apelo do filho, algo que ele nunca tinha conseguido dizer ao próprio pai. Resolveu que deveria voltar para a vida, atender aquele pedido, não apenas pelo menino, mas principalmente por ele. Já mais velho, resolveu escrever uma biografia. Não sabia como começar ou o que dizer. Não queria escrever apenas os acontecimentos, esses todos sabiam. Chamou o filho para uma viagem. Ele tinha conhecido o sul do país e queria mostrar como era aquele lugar pelos olhos dele. Foram. O rapaz, no caminho, foi perguntando sobre as tatuagens e ele se viu contando muito mais de si e da sua vida do que se falasse dos eventos. Finalmente inventou algo que ele pode dizer que era seu. Ao lado do filho, criou seu livro de memórias. O filho, jovem esperto e talentoso, fazia as fotos. Ele escrevia de que se tratava cada uma delas. Livro pronto, colocou o material debaixo do braço e saiu em busca de uma editora. Uma coisa ele sabia, não morreria sem contar o melhor de si.

Simone de Paula - 08/02/2019


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Don’t stop me now

Não posso me demorar demais nesse desgosto. Me conheço, já passei por aqui outras vezes. Se afundo demais, na esperança de achar algo espetacular, só encontro mesmo o fundo e o abismo. Sou feita de ar e água. O ar me puxa pra cima e a água me empurra pra baixo. E é de mim que deve vir o limite.
Não me segure, não me pare agora! 
Não me faça sentir medo ou insegurança por decidir parar e subir. Eu sei que é agora ou depois. Então, que seja agora. Ainda tenho fôlego. Chegando lá em cima, sigo nadando ou voando. Se esperar mais, se descer mais ainda, na volta terei que parar na superfície, recuperar a respiração, pegar ar, descansar. Não quero isso, quero continuar. Não preciso do impulso de lá, só do movimento contínuo em mim mesma, no corpo, no ato.
Baby, estou cheia de energia, de força, sou um foguete agora. Rumo veloz e direto para o céu. É de lá que quero olhar para as imagens desse mundo. 
Meu desejo já chegou e eu me junto a ele agora. Saio do desgosto e sigo para o gosto, para descobrir o calor que ele pode ter. Ar é quente, faz a gente flutuar ou levitar. Água e fria, faz a gente tranquilizar. Calor demais sufoca, frio demais paralisa.
Ainda não posso afirmar se me enganei ao julgar mau o tempo da água. Talvez ele tenha sido o único estado possível para abastecer isso que é vida em mim. Eu prometo que te contarei tudo que puder desse depois da superfície, quem sabe até do céu. E dessa vez eu afirmo que isso é verdade. Sou otimista, eu sei. O julgamento será muito bem avaliado, mas a tendência é sempre ver que foi bom, mesmo através do mau. Assim como a vida, vem depois da morte, ou da quase-morte.

Simone de Paula - 01/2/2019