sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Game over

Eu proponho que a gente se conheça.
Você desconfia, evita, resiste, depois entra no jogo. 
Começo jogando sozinha e você assiste.
Uma partida, duas, três... na quarta você já entendeu, se acostumou, diz que vai jogar, que é sua vez.
Você brinca bem, se diverte. Mas quando precisa pensar um pouco mais no próximo movimento, se acanha, desanima, desiste. 
Não tenho espírito motivador. Não quer, tá certo, pode sair do jogo.
E, se é assim, eu paro também.

Simone de Paula - 31/1/20

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A Rainha das águas - Capítulo 1


Não podia conter a tremenda ansiedade daquela manhã.  Preparou uma lista já designada para esses momentos: o que não podia esquecer, o que só levaria se coubesse na mala, uma roupa estilosa para aquela festa surpresa que os meninos iriam preparar em algum momento, com certeza (por favor!) e por fim, a inseparável bonequinha mais linda de todo o mundo, a Bebel.
Era nisso tudo que Olivia pensava há dias, semanas senão meses antes da  viagem mais esperada de toda sua vida de 8 anos, pelo menos era o que ela achava até aquela hora. Cataratas do Niágara? Egito? Pantanal? Não, não e não. Se fossem essas provavelmente já estaria hospitalizada de “não conseguir dormir nunca mais de alegria” aguda.
Bem mais simples e com uma alegria igualmente feliz, planejava sua viagem para o acampamento da escola em Atibaia, pertinho da sua casa, que era em São Paulo que fica no Brasil e o Brasil quando as pessoas de outros países leem se escreve Brazil. Deu pra perceber que entrou um z aí nessa história? Nunca deu pra entender direito isso. Com certeza o todo 4º B também não entendia. Olivia inclusive.
Agora imagina o 4º A e B juntos no meio das montanhas, acampando com barracas de verdade e até um fogareiro cheio de fogo que a prof ia levar? Nem dá pra imaginar uma coisa que só pode ser classificada com uma palavra: um sonho. Ops, pode ser duas? Um sonho maravilhoso.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O homem e o mar

Chegando à margem, o marinheiro largou barco e remos bem apoiados na areia e saiu caminhando, aliviado e satisfeito. 
O mar, atordoado pela compreensão daquela situação, invadiu mais a terra numa tentativa de puxar o barco de volta.
O marinheiro alarmado, tentou conter aquela força da água, sem saber como ancorar a pequena embarcação. 
Quando a água se acalmou, ele encontrou uma árvore mais forte, e mais para dentro do terreno, para prender o barco, e eis que a maré subiu novamente, com ondas mais fortes e invasivas. 
O homem mais uma vez se aproximou do barco com os remos e tentou conter aquele movimento em direção ao mar. E mais uma vez a água se acalmou.
O homem então perguntou para a água, por que ela se agitava quando ele seguia seu caminho. E a água, respondeu para sua surpresa. Ela disse que sem ela ele não teria chegado ao seu destino. O homem ouviu, pensou e retrucou, dizendo que ele tinha um barco, remos e o destino, que apenas tinha escolhido ir pelo mar. E a água insistiu, que sem ela, ele não teria chegado lá. E mais uma vez o homem fala com a água, argumenta que se soubesse que não poderia deixar a água ao final do trajeto, talvez ele tivesse escolhido fazer de outra maneira. A água se agita, mas continua escutando. Ele diz que poderia ter trocado os remos por rodas e com elas, chegaria naquela base através de uma estrada. Ou ainda, que ele poderia ter trocado os remos por asas e aproveitado o ar, provavelmente chegaria bem rápido. Se tivesse lenha ou carvão o bastante, faria um propulsor e seria arremessado depois de uma explosão e lá estaria. Volta-se então para a água e conclui seu discurso, dizendo que ela foi apenas um meio.
A água parece cautelosa, compreensiva sobre aquela conversa toda. E então, tomada da mais forte das fúrias, afetada pelo sentimento de ingratidão daquele marujo, agita-se, revolta-se, mostra para ele que o meio pode ajudar ou atrapalhar a chegada a um destino.
O homem volta-se para o barco, rema com mais força, não consegue controlar as batidas da água impulsionando a embarcação e num único golpe, barco vira, remos se partem com a força do impacto enviesado e o homem se debate submerso. Ele nada, mais e mais intensamente, tentando alcançar a beira. Consegue, mas está apavorado, exausto e sem sua embarcação. 
Olha para a água e em desespero chora sua perda, seu medo, sua dor. Derrama lágrimas e palavras duras, acusando o mar sobre tudo que lhe tinha acontecido. A água volta-se para ele e responde, apenas dizendo que sim, o meio poderia determinar o destino. Ele então compreendeu que não se tratava de uma aventura individual, uma empreitada solitária, que tudo contava como colaboração. Seguiu seu caminho, aquele destino que ele buscava antes, mas chegou lá modificado, alertando a todos o quanto os meios pelos quais se chega a um determinado fim são fundamentais para o sucesso ou a derrota. E, o principal, que somos responsáveis pelo modo que tratamos os meios, pois nós os escolhemos e somos auxiliados por eles.

Simone de Paula - 19/01/2020


 pintura de Willard Metcalf

Procurando uma imagem, encontrei esse poema encantado.
https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2017/11/28/o-homem-e-o-mar-charles-baudelaire/

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Cereja tem seu próprio doce

Estava na cozinha desde cedo, bem logo saiu a luz do dia. A janela era grande, de vidro e ainda dava pra ver verde no fundo. Algumas árvores, alguns prédios, tinha um bom bocado de céu também. Era um orgulho aquela imensidão toda do cômodo preferido. Teria tempo pra fazer o que queria fazer: um grande café da manhã depois de mais uma noite em claro. Sim, não eram raras as noites sem dormir nada. Tentou luz azul no fundinho, música meditante indiana, orgânica, shiva om shiva, chás, quase todos e literatura. Mas estava desperta, acordada, de olhos bem abertos. Abriu a geladeira, figo, manteiga, cerejas bem maduras do Natal, leite, semente de girassol. Há dois dias tinha desenvolvido uma técnica pessoal ainda sem eficácia comprovada para aliviar sua insônia. Era assim: a cada noite elegia alguém pra pensar, começou com o marido. Tinha de ser alguém da família. Aí com a imagem na cabeça e o sentimento mediando a coisa toda ela começava. Ele, ele, ele. Nos conhecemos. Lembro do dia da camiseta vermelha com um pingo de mancha branca de cândida bem no umbigo. Me olhou daquele jeito arrepiante, eu dançava e suava. Hora de pensar na combinação do fogo com figos, cerejas, leite. Imagina as três filhas ao acordarem. Sofia chegaria toda arrumada, já pronta pra escola com livro na mão fingindo ignorar a mesa tão bem posta tão cedo. Luana se sentaria sem ver nada, apenas um prato em sua frente que empurraria pra poder deitar a cabeça sobre a mesa pro resto de sono viver. Raquel perguntaria ironicamente o que é que estava acontecendo com aquela mesa posta em dia de semana com a toalha azul e os pratos verdes e que faltava um tom mais quente para  um dia mais acolhedor. Algo poderia ser feito, ovos, precisa, farinha, uma boa, sim. Panquecas, das altas, com uma geléia de cereja por cima, sementes de girassol tostadas no mel, sim, por cima de tudo. O figo frio. Naquela noite pensaria em Sofia, o dia que ela nasceu, a primeira. Lembrou da dor de um ventre aberto, rasgado, dando a primeira vida, ela tão pequena em minhas mãos, com um choro rasgado também, ela me olhando sem abrir os olhos me desafiando a aceitá-la e mais tarde sua maneira de ver o mundo, tão racionalmente diferente da minha. A massa estava pronta e levei o primeiro círculo pra dentro da frigideira, demorou pra pegar a forma, na segunda foi, a cereja sem caroços na panela, um pouco de água fervente pra amolecer. Açúcar. A música do Chico, vai colocar filha, aquela do afeto. Luana não escutava nada, mas ela era quem sabia onde encontrar cada pedido desses. No dia de pensar nela sabia que haveria ritmo, embalo e nino, nana, naninha de Luana. Nessa noite em claro era mais provável a presença de um um sorriso calmo no rosto. Diferente seria a de Raquel, ferinha afiada. Era tão importante que ela trouxesse o incômodo mais complicado e difícil de ver. Foram muitas sessões pra saber que era de mim que a pequena falava. Era a sua observação cortante que dilacerava as minhas defesas tão supostamente bem fincadas num lugar impenetrável e protegido. Essa menina, essa pequena, meu último parto, meu ninho completo. Ela fazia as perguntas mais difíceis do mundo todo, queria arrancar de mim a verdade, somente a verdade, que eu nunca poderia dizer a ela. Da minha dúvida em mim mesma. Da minha fragilidade a ponto de cair no chão e não levantar, mesmo tendo feito panquecas com geléia fresquinha. Era ela mesma quem viria primeiro, antes de todas, passar as mãos em meus cabelos com a boca pingando mel e as pequeninas mãos melecadas de fruta diria, mamãe, eu vi quando você caiu, agora venha ver que tem uma planta nova que dá pra ver aqui da janela, será que foi aquela que a gente plantou no dia do João pé de feijão no algodão que já cresceu tanto assim? Eu levanto em prantos internos incontroláveis porque ela me viu e me vendo não posso mais fugir de existir. Chá com leite e canela para um dia que estava quase frio. A geléia esta vibrante e quente, a própria fruta adoçou a si mesma. Café preto. O dia estava mais claro e o som acumulava acordados. A mesa posta, as garotas, um talher batendo no outro, era macio aquele alimento. Um bocejo apareceu. Mas era dia, dia vento. Me sento na ponta da mesa, estavam todas mastigando, sabia cada dente. O pré molar, molar, caiu um primeiro, o segundo. Os olhos se fecham pouco a pouco dando trégua à luta de estarem atentos. O terceiro dente. O sono vem, brando, depois profundo, duradouro, daqueles de quem sonha. Os olhos se fecham,  tudo relaxa, dorme, dorme para renovar. Dome para reconectar. Dorme.


Escute. Silêncio.
 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A busca

Soprou um vento leve sobre a minha cabeça há um mês. Senti seu peso, mas nem me importei em entender.
Ele voltou nesses dias, com uma força um pouco maior, me exigiu. Reagi.
Olhei em volta, busquei pelos motivos, me prendi ao vento. 
Antes de poder ser largada por ele, sigo atada, atravessando corpos, ocupando lugares.

Simone de Paula - 17/01/2020

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Desamarrar emaranhados amarrados

Em cena.

A inevitável constatação de que o que acreditou não era.
Como?
Passa a ser a sua escolha.
Qual?
Ficou determinada uma moral, um jeito, uma imposição velada.
É...
Mas pode ser nova, quer dizer, sua. Pra variar. Não imposição, observação.
Será?
Não provei nada com tanto sabor quanto a liberdade, e olha que só vem vindo.
Bom.
"A gente só ficou em função de gostar de fazer o que a gente estava fazendo"
Quem?
Meu primo, no almoço da família, difícil ouvir inteireza como essa. Viu o que é possibilidade?
Sim.


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Repetições

My dear,

No nosso último encontro, a surpresa. Eu estava esperando um tanto mais, porém aquele foi o derradeiro. Falar assim tem o peso dramático do que eu senti, mas de todo não declarei, apenas ironizei. Já estou recuperada, sem ressentimentos.
Te escrevo para dizer que espero ansiosa seu retorno. Ficamos com um resto para acertar e tenho que dizer que algo novo apareceu. 
Como você sabe, é assim que acontece comigo, não procuro, mas acho aquilo que nem imaginava encontrar. 
Para alguns, a explicação está nos astros. Para outros, é destino. Como você não gosta de nenhuma dessas opções, ficamos então com contingências ou efeitos reais diante da linguagem que não dá conta de tudo. Sorria diante dessa frase. Você sabe que estou fazendo piada com coisa séria, mas é inevitável diante das limitações que você insiste em manter.
Voltando à minha ansiosa espera, algo novo surgiu. Emergiu como a Torre Eiffel sobre Paris. Subi vertiginosamente e lá no topo estou, com Paris aos meus pés, espalhada, pronta para ser trabalhada. Mas parei, parei sem saber o que fazer. E agora, dear, preciso de você. 
Quando eu te contar, certamente você não se surpreenderá. Eu, na verdade, surpresa também não fiquei, pois é algo recorrente. Só que agora, foi colocado de outra forma. É aquela Torre o tempo todo aparecendo por onde quer que a gente ande, mas que atrapalha por não se ausentar. E foi assim, foi como olhar e dar o nome para a bendita que fica por ali o tempo todo.
Escolhi a metáfora de Paris porque ela é encantadora. A metáfora, a Torre, e, evidentemente, Paris. Não sei se esse foi seu destino este ano. Se sim, é muita sincronicidade. Opa, palavra herege saindo da minha boca. 
Falando em palavras, ontem ouvi uma coisa simpática do Antônio Cícero, aquele amado letrista e irmão da Marina (uma das minhas musas). Ele comentava seu poema e sobre as palavras aladas, aquelas que segundo Homero, eram as palavras para saírem voando, que não permaneciam, como as palavras repetidas das poesias. Lindo isso. Se eu achar o poema dele, que tem esse título, coloco logo após o final da carta, num PS apaixonante. 
Curioso acrescentar esse papo das palavras aladas aqui. Afinal, segundo eu mesma sobre a "Torre", a última coisa que ela é, é alada, pois fica fincada se repetindo insistentemente. Já comecei a viajar aqui, hora de encerrar. 
Numa despedida, desejamos que o outro fique bem. Então é isso que te desejo.

Simone de Paula - 10/01/2020 (olha essa data, loucura de repetição)


PS
Palavras aladas
Os juramentos que nos juramos
entrelaçados naquela cama
seriam traídos, se lembrados
hoje. Eram palavras aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar. Faziam
parte das carícias que por lá
sopramos: brisas afrodisíacas
ao pé do ouvido, jamais contratos.
Esqueçamo-las, pois, dentre os atos
da língua, houve outros mais convincentes
e ardentes sobre os lençóis. Que esses,
em futuras noites, em vislumbres
de lembranças, sempre nos deslumbrem.
CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012

http://antoniocicero.blogspot.com/2014/02/antonio-cicero-palavras-aladas.html 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Começar de (o) novo

Janeiro.

Vamos mudar, dizem.
Minha boca está calada enquanto isso.

Novo ano, iniciemos.
Já está iniciado há tanto tempo, por onde temos de ir agora? Uma longa estrada vem sendo percorrida, caso não saiba.

Janeiro, fazer aquilo tudo que sempre quis.
As articulações do desejo são curvilíneas assim como eu, toda, da psique ao corpo.

Mas era do corpo mesmo que eu falava.
 Ah, mas pensei que havíamos deixado a superfície e navegaríamos adentro.

É tempo de mudar, te digo, aproveite que é ciclo novo.
Eu entendo e respondo que a mudança está de fato instaurada e bem antes e bem depois da insistência em mês um.

Pois olhe bem pra você e se pergunte onde melhorar.
Eu te direi que melhor e pior é todo dia.

Faz uma limpeza, dieta.
Dieta, fome, corpo errado, os tempos mudaram. Hoje o alimento é a integridade e depois seguir com ela, que te acompanhe com coxa bem grossa e macia de banho quente. Aí cuidar pra que o preparo dos alimentos seja tão rico quanto isso.

Janeiro.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Se prepara!

A maga disse: se prepara!
Prepara o corpo, a alma, logo chega o novo.
Cuida do que come. Doce-azedo-amargo. Fresco-quente-intenso-suave. 
Coloca dentro a variedade do que vai ter que experimentar e engolir fora. Não vai ter um lado só. Aceite: azeite-aceto. 
Se banhe profundamente, vá além da pele. Faz conchinha com a mão e segura a água que escorre. Um pouco te pertence, o resto é do mundo.
Você sabe o que te espera. Mas nem tudo. Que benção! Que glória!
Agora, se prepara...
Colhe a flor na hora certa, para que ela ainda conserve o pouco de vida que pode mostrar sem ter raiz.
Perfuma a casa. Canela, cravo, alecrim e erva-doce, faz o peso da terra segurar o ar.
Deixa o sol entrar, esquentar e afugentar os espíritos antigos que mantém a poeira nos móveis e embaixo da cama. 
Ama!
E não esquece a romã, porque esse ano é pros infernos que vamos. E lá, tem que saber como viver, senão morre. Regras, normas, obediência ao destino. 
Viva!

Simone de Paula - 03/01/2020

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Início

Na terapia o bom sábio conta o velho sábio:


Andei pela estrada, vi o buraco e caí no buraco.

Andei pela estrada, vi o buraco e caí no buraco.

Andei pela estrada, vi o buraco e caí no buraco.

Andei pela estrada, vi o buraco e caí no buraco.




Andei pela estrada, vi o buraco e desviei do buraco.