sexta-feira, 31 de maio de 2019

Pradarias

Ainda tenho longas pradarias para percorrer.
O esforço não é mais um contraponto ao alívio vindo do término da jornada de subidas leves e íngremes. Ele ainda segue o corpo já usado, desgastado, ativo desta vida.
Talvez os declives cheguem. 
Se isso se der, preciso de força extra para segurar a marcha, garantir o passo mais lento e firme. 
A atenção redobrada viabilizará a continuidade fluída da estrada. Paradas programadas possibilitarão o prazer dos sentidos ativados no desfrute dos sons, imagens e cheiros que fazem parte da natureza, que então me rodeia e também lá estará. Os descansos meditativos já seguem desde muito comigo. O sono restaurador possivelmente será mais frequente. 
Sol e Lua determinarão o tempo. Chuva e céu, estrelado, azul ou acinzentado, definirão minhas escolhas. Sei que esse dia está lá adiante. Mas ainda aqui e ali, as pradarias me acompanham. 

Simone de Paula - 25/05/2019

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Não é loucura

Eu não queria falar do final do GoT gótico. Mas já que ficou a brecha, falarei do ponto mais interessante pra mim.
Daenerys não ficou louca, nem de tpm, né mores? 
Como assim, Cersei, uma mulher, mata Missandei? 
Ela pode fazer toda crueldade em nome do poder, jogar como eles, interpretar direitinho o papel para continuar por ali, no lugar de, em nome de. Porém, há o pedacinho da identificação que garante o ardil, disfarçar o jogo, mas manter a reunião com o grupo ao qual se pertence. Ela rompeu isso.
Já temos que conviver com a rivalidade intensamente alimentada. Mulheres no ringue, rixa de galos, gozo de quem sai sempre ganhando no final. 
Agora, se passamos para esse patamar, está tudo acabado mesmo. A civilização, o laço social, a vida. Portanto, queima porque já ultrapassamos o último limite, só resta destruir o que estiver pela frente, porque já está tudo acabado.
E ai,  Dionísio não podia nos abandonar naquele momento. Invocação Não tem loucura. 
Se o melhor laço da nossa união é cortado, o mundo acabou.

Simone de Paula - 24/05/2019

quinta-feira, 23 de maio de 2019

O fantasma era o pote de colheres de pau caído da janela.

É madrugada, um barulho, alguém está na casa. Boca seca, coração dói. Estou ouvindo, está perto. Pulsa a dor do medo. Arrepio de corpo inteiro. Não há onde me esconder. Serei ferida. Vou pular a janela. Vou me quebrar da janela. Olhos arregalados. Deserto escuro. Garras imaginárias apertadíssimas e afiadas. Pulsa a dor do medo.

Quem me invadiu?


sexta-feira, 17 de maio de 2019

Fix

Rabisquei isso aqui antes de colocar um título. Quando escrevo, ou começo pelo título, ou uma frase que ecoa na minha cabeça, ou ainda uma história que eu quero contar. Esse foi diferente, veio sem muita definição. E saiu assim:
 
A gente para no tempo, no momento em que nossa vida nos faz experimentar um elemento surpresa.
A suspensão que se dá em nós, no corpo, na alma, faz o espírito entrar em combustão e produzir uma calcificação inabalável.
É comum encontrarmos pessoas que estão naquela mesma idade em que a maior experiência de suas vidas aconteceu.Fixou lá.
É um chamamento íntimo, vindo do real explícito do inesperado, que declara um sim de nossa parte, sem nenhuma possibilidade de evitar esse sim. O sim segue implorando mais e mais que esse momento, esse chamado, se repita, promovendo o tempo eterno.

Isso aconteceu com uma amiga. Jovem, cheia de energia. Não pensava no amanhã porque o hoje era tudo de melhor. Estudante, tinha na escola e nos colegas seu mundo inteiro. Inocente, descobria nos meninos as suas habilidades e nas meninas as suas rivalidades. Não sofria, só reagia. 
Se surpreendeu com uma situação comum a cinquenta por cento das moças da sua geração, se viu grávida do namoradinho da ocasião. Parou ali, na menstruação que não veio, no teste positivo, no feto na barriga, nos 17 anos. Jovem, eternamente jovem. O namorado virou marido, pai, mas ele também, parou no tempo. A vida deles seguiu o fluxo natural da moral generalizada. Família, trabalho, tudo certo. Não teve ruptura em nada que mudasse o ponto de parada de lugar. Ainda hoje, pensa, fala e sente com 17 anos, repetindo as mesmas habilidades com meninos e rivalidades com meninas.

Já um outro amigo, com ele foi bem diferente. Eu diria que ele tem tantas rupturas na vida que envelheceu antes da idade. Ainda na infância perdeu o pai. Acidente de moto. Teve que dar conta dessa falta, tentando ser um pouco igual ao pai que conheceu. Mas era difícil acomodar conversas de um pai com um menino de7 anos, tendo 25. Mas ele tentou. Como nasceu numa cidade pequena, foi estudar num grande centro e essa reorganização espacial o fez pular dos 7, onde estava parado, para os 21, mesmo ainda com 17. Emancipado, foi sem mãe, sem muito dinheiro e teve que trabalhar duro. Queria sair da cidade pequena, mas não sabia que tudo mudaria. Nada dava muito certo, não queria estudar, sentia vergonha de não acompanhar a turma. Se envolvia com quem estava na mesma posição rebelde, causada pela ausência da rede de segurança diante do abismo. Sem conseguir se equilibrar, caiu. Se envolveu com agiota, traficantes e usou todas as drogas que encontrou. Parou numa sarjeta, quase tendo uma overdose. Sair de lá, como? Foi resgatado da rua pela polícia, em uma operação de limpeza da região em que estava morando. Enviado para uma clínica, já não sabia mais como viveria sem entorpecentes. Queria remédios o tempo todo. Ficou lúcido e limpo quando veio a notícia da morte da mãe, de câncer. Não a encontrava há uns dez anos e não podia acreditar que ela adoeceu e ele a perdeu. Ele não voltou pra casa e se culpou. Ouvia dos amigos da clínica, alcoólatras com mais mais de cinquenta anos, que as mães ainda estavam esperando por eles. Ia sair dali para onde, fazer o que? No dia da liberação, foi com um colega da clínica para a casa dele. A família o recebeu e a mãe era a dona de tudo, mandava. Ofereceu para ele trabalhar na pizzaria dela. Ele só tinha isso para fazer. Cozinhava à tarde e à noite. Pela manhã a ajudava com reparos na casa e compras para a pizzaria. Achou uma família. Em seis meses estava de mudança, morando na casa da vizinha, namorada cuidadosa que arranjou. Ele queria filhos, mas ela já tinha dois, de um casamento anterior. Os meninos tinham mais de vinte anos e ele não sabia bem como se encaixar no papel. Toda vez que a gente se fala ele reclama nas dores no corpo, da falta de esperança no futuro e da última vez me disse que vai ser avô com 32 anos, rindo um riso triste.

Que idade será que tenho? Quantas vidas já vivi? Esse papo de vidas passadas e reencarnações não seriam as rupturas surpreendentes do tempo na nossa vida que nos faz girar para uma nova existência numa aparente mesma vida vivida?

Simone de Paula - 17/05/2019

quinta-feira, 16 de maio de 2019

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Diário de Bordô

Embarquei com a cara e a coragem.
Cheguei sem nada.
Descobri o querer e agora quero muito.
Me ofereceram o primeiro. Um tanto amargo, pegou um pouco na boca.
Tomei o segundo, pareceu mais agradável. Era diferente do anterior, mas carregava certa semelhança, especialmente a impressão de pesar na língua, me fazer perceber que tinha passado por ali. 
No terceiro tentei segurar mais antes de engolir. Já tinha aprendido que não era para a sede que aquilo servia, mas para me marcar, deixar restos na pele.
O quarto chegou e eu já não tinha mais como ficar calada, silenciosa. Articulei boca e lábios, língua e garganta, jorrando as notas musicais da minha voz. Falei, recitei, cantei.
No quinto, meu corpo inteiro estava inquieto. Levantei, andei, circulei, dancei.
O sexto chegou e nele ainda tinham bolhas, suavidade, doçura e uma explosão de prazer. Andei pelas nuvens, toquei as estrelas, me entreguei ao solo.
Eu já não sabia mais quem se movia, se era o corpo, a alma ou o mundo.
Um toque e uma voz grave sussurrou: quer o sete? Sorri. 
Dali em diante, nem sei se resisti.
O mundo é uma festa e Dionísio está entre nós.

Simone de Paula - 10/05/2019

 

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Bússola

O dia estava claro, o caminho bem traçado, mas ainda assim Celeste parecia não encontrar seu norte.
Esteve sempre acostumada a seguir os passos alheios. Na infância seguiu pais e avós, como todos nós fazemos. Na adolescência se trancou em casa até que uma colega de escola a convidou para participar de uma reunião de bruxas. Ela foi e se assustou com o ambiente e a atitude das meninas. Mas não expressou nenhum desagrado, apenas certa timidez. Por falta de algo melhor, comprou meia dúzia de roupas pretas, pegou a maquiagem velha da mãe e assumiu sua versão adolescente rebelde. Mas ela nem bem sabia como falar ou andar, porque realmente não se sentia com raiva de nada, nem precisando romper padrões. Os anos passaram e ela agradeceu por poder voltar a ter as roupas mais claras, em tons suaves. 
Chegou o momento tão esperado do pai, seu ingresso na faculdade. Ela estudou muito para fazer engenharia, como ele. Mas também tinha a segunda opção, geografia, curso que o pai não teve coragem de escolher, mesmo passando horas olhando mapas, assistindo documentários e ensinando a todos sobre como o mundo era dividido. Como era de se esperar, pelas notas baixas em matemática, Celeste entrou no curso de Geografia. Fez a faculdade no tempo esperado, prestou concurso público e assumiu a carreira de professora de meninos e meninas entre doze e dezessete anos. Apesar de jovem, ela não tinha muita conexão com os alunos. Cumpria o currículo determinado pela direção, aplicava provas e trabalhos e tentava animá-los sobre quão interessante era saber sobre o mundo em que viviam. 
Durante os estudos, conheceu o noivo, Antônio. Ele se interessou muito por Celeste, pois ela tinha uma beleza delicada, era simpática e comunicativa. Sua personalidade o atraiu de primeira vista e não foi tão demorado conquistá-la. O namoro seguiu por muitos anos, pois a vida de professor não facilitava financeiramente projetos como casamento, casa própria, filhos, família. Celeste queria tudo aquilo, pois tinha ouvido da mãe, desde menina, como era adorável entrar na igreja vestida de branco. Planejava desde o início do namoro como seria todo o cerimonial, quem convidaria, com quantos anos deveria realizar esse sonho. No entanto, ela sonhava ao lado da mãe, incentivada por ela, sobre cada detalhe. Se sentia feliz, tranquila, a vida dela seguia como o projeto de uma vida normal.
O diretor da escola em que lecionava a convidou para participar de um concurso de projetos pedagógicos. Esse tipo de participação contava pontos para a instituição e para a direção. Ele sabia que Celeste se dedicaria se ele dissesse as palavras certas. Tiro certeiro! Ela passou cinco semanas preparando um bom material. Consultou o noivo, o pai, alguns livros e montou um ótimo projeto. Ganhou um valor em dinheiro e uma viagem para a Chapada dos Veadeiros, em Goiás, além de um bom título para a escola. Ela se animou, mas teria que ir sozinha. Mesmo pagando à parte, não poderia levar um acompanhante, pois nenhum dos próximos dela teriam disponibilidade nas datas da viagem. 
Parecia tudo certo, ela não precisaria pensar em nada, afinal, a viagem veio pronta da agência que ofereceu o prêmio do concurso. O noivo a levou ao aeroporto, ela embarcou e respirou tranquila. Chegando lá, se deparou com a grande surpresa: tinha carro para chegar à pousada e quarto reservado por uma semana, além da passagem de volta. Porém, nada de planos para fazer durante essa semana.  Foi aí que Celeste se viu desbussolada. Não tinha pesquisado nada, aguardou chegar lá e alguém dizer o que ela deveria fazer. Dormiu cedo no primeiro dia. No dia seguinte tentou que alguém lhe dissesse para onde ir, mas nada. Teve que dar seus próprios passos. Mais do que olhar para o chão, ela notou que olhava muito para o céu. Parecia querer se guiar pelas nuvens, estrelas, pelo sol. Dias e noites foram os mais lindos que já tinha visto. Escolhia os caminhos menos pelo que iria ver, mas apenas querendo perceber o firmamento em movimento. 
Sete dias, sete noites, um giro na sua vida. Não saberia dizer quantos graus tinham sido suficientes para ela voltar do mundo da Lua em que sempre esteve sentada. Sabia que já não reconhecia mais onde era nem norte, nem sul. 
Voltou para casa e decidiu que precisava continuar os estudos antes de casar. Entrou no grupo de astrônomos que se reuniam na faculdade semanalmente. Se apaixonou pelos astros, pelo espaço, pelo universo dos objetos voadores não-identificados. Vivia agora entre serem estranhos, pouco convencionais, mas que se divertiam como nunca com telescópios e muitas suposições sobre vida fora da Terra. Ela encontrou sua turma. 
Casou-se com Antônio, que era apaixonado por ela, assim como ela por ele. Ele não queria a moça obediente que ela foi até encontrar a si mesma, na ausência daqueles que acreditavam precisar dizer para ela o que ela deveria ser. Tiveram três filhos, seguiram dando aulas. Com os assuntos sobre as maravilhas do espaço, Celeste conseguia ter o interesse dos alunos. Vivia promovendo excursões de observação celeste. 
Ela não deixava de se perguntar: o norte está sempre no mesmo lugar ou é uma questão de ponto de vista?

Simone de Paula - 03/05/2019