sexta-feira, 26 de junho de 2020

Cristal

O brilho fascinante me fez jurar que era um diamante.
Olhei de perto e vi a opacidade no fundo daquela pedrinha. 
Tentei justificar a falsidade. Lustrei, poli, quase lixei, só o não fiz porque era demais, invadir aquela superfície daquele jeito. E lá, bem dentro de mim, eu sabia que poderia rachar a rocha se friccionasse demais os pontos opacos. Parece que não quis ferir, mas acredito que o que tive foi medo de perder.
Resisti, insisti, fiz perdurar. Desviei o olhar, a atenção, cheguei mesmo a acreditar que era um defeito da minha visão. Mas não, era mesmo um cristal no lugar de um brilhante. 
O cristal tem sua beleza, seu brilho e sua fragilidade. 
Um diamante, por sua vez, não quebra com facilidade, por mais delicado que pareça.
Coloquei numa caixinha a pedrinha e deixei escondida, se brilhante, não queria que me roubassem, se cristal, não queria que quebrasse. Mais uma vez a certeza, não queria perdê-lo.
Bem, mas o que existe não é fácil esquecer. O tempo passou e aquela peça me pediu insistentemente para ser vista como ela é, frágil, barata, mesmo que brilhante. Aceitei. Junto com ela, aceitei também que eu quero mesmo um diamante, não basta brilhar, tem que pesar, valer, durar de verdade.
Deixei o cristal exposto, aquela matéria mineral que carrega a energia concentrada nos seus átomos, e fui atrás do meu brilhante.

Simone de Paula - 26/06/2020

 




sexta-feira, 19 de junho de 2020

Shy

E na falta do tête-à-tête, face to face, vá de direct...

"Oi, e aí?
Sua live ontem foi muito legal. Gostei da escolha, falar mais que tocar.
Te escrevo porque foi estranho. O instagram avisou que você estava começando a 'transmissão ao vivo', e eu dei um click. Na real, eu esperava entrar e ter mais umas pessoas por lá, nem achei que eu tinha sido tão rápida no gatilho. Me vi ali, eu e você, tipo quase olho no olho, mesmo que ninguém veja ninguém. Aliás, eu vejo sua imagem e você vê meu nome e uma foto. Mas me deu a maior timidez, me envergonhei de estarmos ali só nós dois. Cara, que meninice que me abateu. E ainda, a resposta que eu escutava desse sentimento era que eu estava sendo vista por você. Dois estranhos, conhecidos, que de tão velhos, não usariam mais essa armadura. 'Buguei'! Cliquei tão rápido no X pra sair, como fiz para entrar. Sumi. Daí, fiquei mais envergonhada ainda, pensando, 'ele viu eu ali e eu deixar de estar ali. Chato isso, cair fora e deixar o cara sozinho'. Até meio mal-educado da minha parte. Era um misto de riso de mim mesma e ainda o eco do incômodo de ter estado ali, breves segundos de partilhamento, convivendo com você. Relaxei e fui dar um round pelas redes sociais, pensando na sua live que eu queria assistir, mas estava com medo de estarmos só eu e você no novo. Esperei uns 15 minutos, criei coragem, se é que fosse preciso tudo isso, e entrei de novo. Éramos poucos mesmo, fiquei, acompanhei, você tocou um pouquinho e foi o fim. Aliás, me arrependi, porque você já tinha tocado um pouco mais e eu não ouvi. Bem burra, com minha timidez infundada.
Ainda penso nisso hoje e vêm nos meus lábios um sorriso e na minha garganta o som de uma risada. Eu mesma, dividida, sendo a boba e a que não vê razão pra essa bobagem.
Bom, só pra te contar isso. Não dividi a sala com você ontem e hoje venho dividir toda essa intimidade dos meus sentimentos e atos inibidos, faz menos sentido ainda. Só um 'hahaha' explica.
É isso aí... Bjo!"

Simone de Paula - 16/06/2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Desejo decidido

Algumas experiências são mesmo maravilhosas. Acabei de viver uma nesses últimos quinze dias. Tudo se deu de forma tão ligeira, que nem eu mesma poderia prever que isso se revelaria em tão pouco tempo.
O tempo, esse tão descrito, tão poetizado, faz também seu trabalho quando ele é veloz.
Começou assim: num dia recebi um convite simpático e aceitei. O assunto parecia divertido, mas muitas vezes repetitivo. Efeito das redes sociais, que não se esgotam, não encerram.
O bom de certas relações é que elas não precisam ter o lugar principal na vida, podem ficar acontecendo sem que você tenha grande participação, apenas uma ponta aqui ou ali, um comentário hoje ou amanhã. Numa dessas pontas, resolvi participar um pouquinho mais ativa e expor meu pensamento, minha escrita. Foi bom.
Uma semana depois, repeteco, mais uma vez, uma ponta de destaque. Isso gera o convite dois. Aceitei.
Nem sempre um convite aceito significa o compromisso inteiro. A reunião do segundo convite mostrou a face que já era evidente, mas que dissolvida pelo espaço que eu dei à minha participação, ficou menos incômoda. Minhas intervenções foram poucas e precisas, porque é isso que era preciso.
Fui percebendo que ali não era o meu lugar, porque eu não estava no mesmo discurso. Não tinha as mesmas motivações, pois não compartilhava dos mesmos sentimentos. O meu assunto-mestre, aquele que eu sigo, também não estava de acordo, aliás, nem estava presente.
Foi muito bom perceber tudo isso rapidamente, sem esperar tanto para que se revelasse algo.
Recusei me manter ali, no agrupamento desalinhado ao meu desejo. Comuniquei e me despedi. Ouvi apelos e julgamentos sem nenhuma razão de ser. Isso tudo só confirmou o que já era sabido por mim. O melhor de tudo, ficou muito claro que não preciso de outros para me dizer sobre mim o que eu já sei. Sigo circulando, experimentando e decidindo o que eu desejo em cada momento.
Fazer concessões por acreditar ter ganhos futuros é a maior roubada da vida.

Simone de Paula - 11/06/2020

sexta-feira, 5 de junho de 2020

História rocambolesca

Rocambole é feito assim: massa de pão de ló, macia e feita em etapas na batedeira. Assado em forma grande para ficar fininho. Quando tira do forno, desenforma em cima de um pano limpo e úmido e já enrola a massa, com cuidado para não quebrar. Quando fria, abre, coloca o recheio e enrola de novo. A cobertura é opcional.
Acho que é assim, porque vi muitas vezes esse doce ser feito e nunca me arrisquei. Mas eu gosto muito. Doce de leite, creme branco ou goiabada, chocolate, não. Por cima, o melhor é mesmo só açúcar polvilhado.
Não fiz rocambole, ou bolo de rolo como chamam no nordeste brasileiro. Mas faço rocambolices com as minhas histórias. Começo elencando os elementos, como se separam os ingredientes. Depois explico as relações, uma espécie de preparo para o momento principal. Algumas vezes com mais cuidado, de forma mais lenta, em outras, velocidade alta para mudar de cara, expressar as metamorfoses da situação. No final, quando vejo, saiu uma história. 
Será que ela causa o mesmo efeito que o rocambole, provocando nosso imaginário pelo gosto que todo aquele descritivo causou? Porque no final, se eu não fizer o rocambole, só terei lido a receita dos outros. Assim como quem não vive a experiência, não tem história para contar. 

Simone de Paula - 05/06/2020