sexta-feira, 29 de maio de 2020

Minha casa é o meu país

Minha casa é o meu país.
Talvez essa frase já tenha sido dita por aí, por alguém. Mas hoje ela saiu da minha boca de forma muito espontânea e ainda foi concluída por uma quase gargalhada.
Perguntada sobre como iam as coisas durante a pandemia, pensei brevemente e calculei, num segundo, que tudo se passa aqui, em casa. Tudo que faço é aqui dentro.
Já me dei conta que cada cômodo acomoda  duas ou três atividades diferentes, oferecendo cantos distintos para momentos específicos. Multipliquei espaços.
Meu escritório, que também já é sala de tv, agora mais tem atribuições: dou e assisto aulas, faço grupos de estudos e acompanho as lives relacionadas com esses temas. Além disso, é setting analítico, meu e do meu analista. E, por fim, ainda dá espaço para sala de meditação. Esse lugar rende. Tem espaço bom, iluminação, sol na medida certa.
O quarto, esse parece que se manteve como de costume, ocupando meu corpo para as atividades comumente exercidas lá. Não entrarei em detalhes, cada um sabe para o que um quarto serve. Banheiro idem.
A sala ficou mais aberta, coloquei os móveis nas paredes dos cantos. Ali, virou academia: yoga, pilates, combat. Meu marido anda vigorosamente pela casa toda durante meia hora, diz que faz suar.
Ele também ocupa a mesa de jantar, ali é o seu escritório. Quando faz aulas, permanece no mesmo lugar. Mas quando vai dar aula, reveza comigo o escritório. Tem funcionado. 
Na cozinha se come e prepara as refeições. Ela é bem ativa num sujar e limpar infinito.
A área de serviço permanece com roupas sendo lavadas e passadas e as plantas parecem abaladas pela falta da melhor amiga delas que segue em quarentena também. 
No quartinho dos fundos, um cavalete de pintura, um espelho para tirar sobrancelha e cortar cabelo, atividades básicas de manutenção da vida.
Amigos via skype, whatsapp, facebook e instagram. Tá tudo aqui.
E, como disse eu hoje cedo: minha casa é o meu país.

Simone de Paula - 29/05/2020

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Rastros e restos

Esses dias me deixaram reflexiva, filosófica. Minhas palavras parecem não querer contar, mas dialogar.
Vivemos um século marcado pelos rastros e restos. Se olhamos para o mundo ou para os campos de saber, há um sem fim de registros disso. Se há isso, se produz com isso. E que produção!
Mas a surpresa veio, o novo se impôs.
Distanciados dos corpos fragmentados, sem órgãos, ou seja lá quantos nomes se dê, encontramos acolhimento nas telas, reprodutoras e refletoras de um estranhamento curioso. Elas recortam um pedaço do todo, mas não dão muito espaço para o que poderia escapar desse todo, para o que sai da tela, o que cai do olho.
Nos espelhamos numa superfície lisa, sem rasuras, ranhuras ou rugas para nos segurar. Deslizamos sem chance de parar. Isso nem parece muito novo, mas é.
Há uns dias me pergunto: qual a marca do novo século, do século X X I?

Simone de Paula - 22/05/2020

sábado, 16 de maio de 2020

Tarefinhas

Ontem passou... não escrevi o Conto de sexta.
Mergulhada nas inúmeras tarefas que estabeleci como forma de não ficar tomada de trabalho, não lembrei do tempo da escrita. 
Na cozinha, os fermentados competindo pelo espaço quentinho do forno. Nos ouvidos, os fones me levavam às meditações que tenho feito, finalmente retomando a disciplina que em outros tempos me serviram de corda-guia. Nas redes sociais, informações para o grupo de meditação, imagens novas de cada dia nos perfis, desenho de sereia para o projeto mermay, os contatos de trabalho e amigos, como de costume, muito movimento. Além disso, uma feira, muitos atendimentos, os suplementos de algas e a água, muita água. Pra completar, ainda teve yoga, pão assado, filme divertido. Com tudo isso, o Conto passou. 
Hoje aqui, sentada, imersa na atenção plena, lembrei, ele pediu para ser escrito e voilá! 
Conto porque conta, de sábado.

Simone de Paula - 16/05/2020

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Convite

Os dias passam rápido, todos quase iguais. Não é o caso de rotina ou disciplina, mas a permanência nas ações comandando a passagem do tempo. Não que isso seja diferente de antes, mas agora é visto assim. 
Porém há sempre aquela insistência que te surpreende, aquele convite que você queria aceitar, mas não sabia muito bem como ia administrar. Recusa, na esperança de que em outra ocasião algo semelhante aconteça. Mas, o convite retorna e o anfitrião te pega pelos ombros e diz, aceite, não precisa se comprometer, só aceite. E você faz. E na hora marcada, nada flui, informações desencontradas, atrasos e quando você estava quase desistindo, novamente as coisas voltam aos trilhos. E aquele convite recebido, desejado, não decepciona, pois depois que o encontro se firma, o evento se realiza, você percebe que era ali mesmo que você deveria estar.

Simone de Paula - 08/05/2020

sexta-feira, 1 de maio de 2020

On air

Eu moro bem pertinho de um cemitério. Da janela dos fundos posso vê-lo bem. Não é um cemitério de jardim, mas de túmulos. Algumas árvores, e um muro branco, o rodeiam, tentando separá-lo da vida urbana que acontece como se ele nem estivesse ali.
Desde que mudei para cá penso, como construíram essas casas tão perto de um cemitério? Me pergunto sem saber a resposta, mas já ouvi muito sobre esse tema e sei que cemitérios são construídos distante de onde as pessoas moram. Ele fica em um quarteirão bem íngreme, a região toda é cheia de ruas inclinadas. Mais um bairro montanhoso da cidade. O que nos separa é justamente a avenida que esconde hoje um córrego. Sim, no passado o cemitério ficava do lado de lá e as casas do lado de cá. Mas hoje, do lado dele, tem escola, casa, tudo que pode conter um bairro residencial.
É um cemitério misto, israelita e cristão. Cemitério misto instalado em uma montanha, praticamente o monte das oliveiras. Uma ironia porque os assuntos da morte sempre precisam de algum tipo de graça para descerem melhor. 
Ontem li algo que minha mãe quis me dizer, ela que sempre fez questão de deixar claro que a morte existe e não se deve lidar como se isso não fosse acontecer um dia. A frase era assim: a morte é o maior mistério da vida. É, faz sentido.
Quando acordo, vou olhar pela janela dos fundos, lá onde o sol nasce. Apesar dos prédios no meu horizonte, que tentam apagar a subida de resplendor do sol, ele vence sempre e encontra umas brechas para raiar luminoso nas cores mais variadas. E vejo o cemitério lá, no monte vizinho. Enquanto espero o café coar, observo o ritmo da avenida, vejo o momento em que o céu fica claro o bastante para as luzes dos postes apagarem, às sextas-feiras vejo as barracas da feira sendo montadas, e em muitas manhãs, especialmente quando o sol ainda não apareceu no horizonte, sinto o cheiro de velas forte, vindos dos velórios. Como tem encruzilhadas por estas esquinas, despachos (macumbas), também são figurinhas frequentes pelas imediações.
Gosto do silêncio, da penumbra, do vento nas copas das árvores, do vazio de corpos andando pelas ruas e também desse cheiro marcante da parafina derretida. É o terreno na morte, daquela que faz parte da vida, que transita entre nós e que evitamos ao máximo. 

Simone de Paula - 01/05/2020


Cemitério de Mirogoj, Zagreb, Croácia