sexta-feira, 28 de setembro de 2018

De pernas no ar

De menina, eu gostava de ver a vida lá do alto da roda gigante. Era claro, infinito. Meus pés fora do chão provocavam uma leve vertigem na subida. Mas depois, os olhos garantiam tanto prazer, que eu nem lembrava que podia faltar algo abaixo de mim.
O tempo passou e eu finquei meus pés no asfalto, para poder fazer o que eu queria e não ficar sonhando acordada. Mas o querer tem dessas coisas, e quanto mais você tem o que quer, mais quer. Não acaba.
Dos giros da roda gigante, passei aos insistentes quereres, fincada no chão.
A gravidade, na minha língua, carrega toda gravidade que a realidade, na minha terra, comporta. Pra voar preciso encontrar uma nova roda gigante, uma grua que me eleve dessa terra firme. Me prendi no chão. Me enterrei. 

# killbillfeelings


Simone de Paula - 28/9/2018

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Encaminhar

Há tanto tempo não falamos.
Seja breve.
Estamos no meio do caminho.
Pare de gritar, está louco de ódio.
Faz frio aqui.

Eu me senti sozinho tanto tempo.
Não tinha para quem gritar, nem sabia se era isso.
Então eu fiz o que podia, agredir a ti e o que vi pela frente.
Eu pensava em alguém que viria me salvar, queria, tanto.

Ele não vem, já mora em ti.

Maria Laura Cesar 

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Canela de Gabriela

Troquei cadeia por cadela e depois por canela dela.
De um susto, acordei da leitura onírica bordejante que embalava o momento exato entre o sono e o sonho. 
Não vi cadeia, nem cadela e nem a canela dela. Mas de fato, vi a imagem de Gabriela, com os cabelos e olhos de Sônia Braga. O desenho fugaz formado no olhar. Abri os olhos e procurei no texto os fonemas, as vogais, os sons para saber, afinal se eu li primeiro cadeia, cadela ou canela. Não achei nenhuma das palavras referidas. Comecei  de novo, lá de cima, do início do parágrafo e quando cheguei finalmente na cadeia, percebi que ela estava escondida entre duas outras palavras, sem destaque, mas destacada para minha cadeia associativa. Confesso ainda, que vi de relance a cadela mordendo a canela dela. Branquinha, com uma ou outra manchinha, porte médio para pequeno, inofensiva a princípio, mas fêmea feroz diante de uma perna tão bela. Ela sentiu as dentadas. A pele firme não foi perfurada. A fuga pronta foi a ação que me trouxe de volta à lucidez. Tudo, tudo era o sonho da leitura, que comportou aquela tão falada nota azul.


Simone de Paula - 21/9/2018


sexta-feira, 14 de setembro de 2018

É primavera, te amo...

A primavera está chegando. Esse inverno não foi frio, mas foi longo. 
O som do trovão ouvido do quarto escuro nem trouxe consigo a luz intensa do raio, mas fez retumbar um pouco meu coração. Pensei, sai tristeza, sai e dê lugar ao mato verde que forra o chão. 
Sempre tem vida guardada, especialmente se conservada com lágrimas. Essa chuva particular que garante que o que esta vivo nunca morra. 
Hoje se combate o choro, como se ele fosse matar o sofredor. Imagine, ele é a maior expressão de vida, desde o nascimento do bebezinho até o pranto do amante amado enlutado pelo que se foi. 
Chove na minha cidade e na sua, não porque moramos perto, mas porque compartilhamos um fim de inverno. Lá fora, as angústias e decepções parecem fazer a gente achar que o mundo vai de mal a pior, mas ele sempre foi o mesmo. A gente que no último verão pensou que o sol fosse brilhar para sempre porque o idolatramos. 
Somos humanos vivendo nesse pedaço de terra, nesse momento do mundo, dando nomes e sentidos às coisas externas para tentar dar conta do íntima que segue persistente pelos ciclos constantes da vida. Tudo é só isso. Enquanto estiver aí, viva!


Simone de Paula - 14/9/18

Obs.: o titulo faz referência à música do Tim Maia, claro. Amo a primavera, estação em que nasci.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

A escrava

Almejava liberdade, não das correntes que prendiam os seus pés, mas dos olhares que seguiam os seus passos.
Não era dona nem do seu corpo, nem do seu destino, pois mesmo se escondendo e esquivando, o desejo alheio não a esquecia.
Não tinha gosto de elogio a perseguição desmedida, mas de cruel capricho de quem pouco obedecia.
Alguns que lhe tinham compaixão, diziam para pensar em outro lugar, se transportar para evitar todas as humilhações e ofensas. Mas era impossível imaginar qualquer outro lugar que não aquele, em que nascera, fora nomeada e criada. 
Nos momentos em que alguma agressão física era inevitável, a dor do copo não podia criar um escape, nem mesmo assim, tinha liberdade para sentir raiva. 
Obediente e passiva, afirmava sobre si mesma que era uma escrava e assim deveria ser tratada. Se reconhecia ali, sendo quem tinham dito que ela era.
Só se pode ver mundo quando mundo te dão.


Simone de Paula - 07/09/18

Conto inspirado na leitura de 'A escrava Isaura', de Bernardo Guimarães