sexta-feira, 25 de março de 2022

Reformar pra não mofar

Essa frase aí do título foi escolhida para impulsionar o desapego.

A vontade de mudar, fazer, acontecer, fica fácil no campo das ideias e das virtualidades. Um movimento veloz e satisfatório que garante não abrir mão de nada. E isso traz segurança e ao mesmo tempo, frustração. Quanto mais recursos, dependendo da disposição de gastá-los, menos realizações de fato.

Tirar daqui e por ali fica fácil. 

Tirar daqui e jogar longe, sem saber onde vai cair, é possível.

Agora, escolher onde descartar, o que se tira daqui, isso parece o mais difícil.

Nessas, a umidade (interpretando livremente a Marie Kondo), a emotividade sobre as coisas vai transformando tudo num ninho esverdeado de mofo. Se proliferam, crescem, cheiram mal, afastam a satisfação de outrora. Decadência.

Por essas e outras, o desejo pelo diferente, ou o igual disfarçado e renovado, pode ser a melhor pedida para encontrar novos cestos de despejo. 

Seguimos nessa grande reforma do mundo, incessante, como no nosso pequeno reduto, nossa casa.


Simone de Paula - 25/3/22

sexta-feira, 18 de março de 2022

Olha a onda! Aonde?

"Estive fora uns dias, numa onda diferente..."

A música do Paralamas do Sucesso, naquele ritmo meio reggae, meio rock, anuncia esse momento.

Sou dos anos ímpares e dos segundos semestres. Então, anos pares tendem a ser cheios de vontade de viver anonimato, vida caseira, paradas.

Sigo assim.

/Simone de Paula - 18/3/22

Uns dias

sexta-feira, 4 de março de 2022

Lua também?

"Lua também interfere na alimentação? Essa eu não sabia. Mais uma!"

Pois é amigas e amigos, tudo interfere em tudo. O mundo é um assombro. 

Ontem mesmo eu vinha caminhando à noite rumo à minha casa. Não voltava do trabalho, como poderiam pensar, vinha mesmo da cartomante. 

Ando com uns probleminhas na cabeça, não paro de pensar em futilidades. Coisas do tipo: o botão que liga o gás do fogão, a chave da porta da frente, o trinco da janela. Essas bobagens que me pegam e eu sinto que vou escapar deste mundo. Tem vezes que alguém poderia me raptar, entrando direto pela porta da frente. E outras, é mais sobrenatural, como um espírito me puxando janela abaixo. Nessas horas, eu como. Enfio uma castanha na boca, mastigando forte, afiando os dentes. Não menos frequente é a barra de chocolate, arma certa contra a maldade, tamanha docilidade contida naqueles quadradinhos macios. 

A cartomante me olhou de cima abaixo, logo que entrei na sua salinha impregnada com cheiro de incenso. Acho que usam isso mais para dar a impressão de um lugar místico, de contato transcendente, do que realmente fazer algum efeito físico no ambiente. Mas, o cheiro estava lá, marcante e inesquecível. Se tinha alguém na sala além de nós, era aquele corpo olfativo. Madame Mauva, esse era o seu nome. Não conseguia me concentrar nas cartas, porque o nome dela rolava na minha boca, eu repetia aquele ditongo: au, auuu, au. E, ao mesmo tempo, pensava na cor do esmalte, naquele rosa beirando a cor da uva. MaUVA. 

Ela me tirou desse looping perguntando o que me levava à consulta. Eu disse do probleminha na cabeça. Ela me olhava fixamente enquanto embaralhava as cartas, como se me scaneasse de fora pra dentro. Incômodo, mas eu estava lá para alguém me decifrar mesmo, então, deixei. Fiquei paradinha para evitar a confusão do espectro espiritual, caso eu mexesse demais meu corpo.

Ela colocou o baralho na minha frente, e eu já fui com a mão para cortar, quando ela me impediu. Se antecipou colocando a mão dela sobre o monte de cartas e disse: espere! Era serena e ao mesmo tempo profunda. Quanto mistério. É preciso curso de teatro para esse ofício de cartomante, né, porque se não tivesse todo esse protocolo, talvez as palavras não tivessem tanta importância. 

Eu fiquei com a mão no ar, esperando. Ela levantou e foi até a janela. Olhou para o céu e meditou por uns segundos. Deixou a sala em direção à cozinha e eu resolvi abaixar minha mão. Coloquei no colo, como uma boa religiosa faria. Sei lá, a gente vive fazendo essas poses como se isso significasse alguma coisa, né. Nesse caso, eu tentava ser respeitosa com as forças astrais para elas me ajudarem na resposta que eu precisava daquele oráculo.

Ela voltou com uma xícara de chá, verde bem suave, perfumado. Trouxe também um pires com alguns biscoitinhos de especiarias e casquinhas de laranja cristalizada. Arregalei meus olhos e quase já fui aceitando a comida quando lembrei que ela me ensinou que devo esperar. Me contive. Ela então me ofereceu aquelas guloseimas e solenemente falou: coma primeiro, depois você coloca a mão no baralho.

Provei o chá e depois peguei o biscoito. Comecei pelo chá porque eu quis dizer que não era gulosa e só estava pensando naquela massinha doce e crocante. A gente sempre deixa o que quer para depois, santa inquisição! Provei tudo, mas me contive, não repetir a dose. Ela então, empurrou o baralho na minha direção e ordenou: corte!

Ela olhava as cartas sorteadas por mim com olhar intrigado. Analisava cada detalhe como um cientista no microscópio. Silenciosa, sem expressões faciais, me deixou esperando. Rompeu o silêncio dizendo que era Lua cheia e o apetite estava em alta, por isso tinha me oferecido as guloseimas, para acalmar meu espírito faminto antes dele encontrar o caminho do destino. Eu sorri e perguntei: mas lua tem a ver o que com isso? Ela sorriu e respondeu algo que me fez todo sentido do mundo, só que não, "Tudo!"

Me disse que eu estava assombrada por viver sob tantas restrições. Qua eu não podia nada na vida, pois tudo tinha que ter uma explicação ou uma finalidade e isso tinha me tornado uma pessoa muito amarga e agressiva. Que o momento agora era de permissão. Eu ouvi e quando ia perguntar o que isso significava ela me interrompeu e encerrou a consulta de forma lacônica: vá para a casa, olhe para a lua e volte daqui 3 meses. A lua te dirá o que deve fazer.

Saí frustrada, me sentindo boba. Seria melhor ter ido a uma casa de chá, pelo menos eu comeria tudo que me servissem. Diante desse pensamento percebi que eu queria mais e não peguei. Andava na rua  repassando mentalmente o acontecido, como contei para vocês, e olhando o céu, mais especificamente aquela lua gigante, clara, que fazia a noite parecer dia. 

Cheguei em casa e não tinha nem chá, nem biscoitos, mas tinha laranja. Descasquei as tirinhas e fiz um cristalizado de açúcar nelas. Chupei aquela fruta fresca com vontade e fui dormir. 

Simone de Paula - 04/03/22