sexta-feira, 30 de abril de 2021

Migalhas

Plaft!

O som seco representava a queda do saquinho de mini-pães de queijo caindo no chão.

Laisse colocou o focinho no saco da forma mais veloz que conseguiu. Joca, tranquilão, como sempre, abaixou pra pegar. Não olha pra ela, nem notou o olhar dela que se dividia entre o cheiro atraente e a submissão ao dono. 

Ela quer, não sabe como pedir. Ele tem, e decide se quer dar ou não.

Sai andando, ela atrás, louca pra conseguir um pedaço do petisco. Ele abre o saco, faz barulho, pega um, morde, olha para o horizonte, dá mais uma mordida.. Enquanto isso, Laisse anda meio de lado, abana o rabo, não olha mais nada a não ser a mão dele. Aliás, mão e boca, seguindo aquela bolinha amarela pálida que despertou os demônios da cachorrinha. 

Na perseguição cega ao pão, e a confiança completa no dono, nem olha para a rua quando atravessa, correndo o risco de atropelamento num caso desses. O dono, sabe que ela quer, consegue ver pelo campo de visão todos os movimentos dela. Mas gosta de controlar a situação. Ameaça dar um pedaço, de forma dissimulada, só pra mantê-la o seguindo. 

Finalmente ele joga um pedacinho pra ela. Ela come, nem sabe o que entrou na boca, nem sabe que gosto tinha. Tão sedenta pelo que tinha desejado, engoliu sem nem perceber. 

Em um micro segundo, lá está ela de novo, olhando em desespero para o dono, olhar fixo entre a mão e a boca, na esperança de que em algum momento, mais um pedacinho, ou uma migalha, caísse no chão pra ela pegar.


Simone de Paula - 30/04/2021

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Extremos

O branco bem branco, da neve do pólo, é esse que eu quero.

Ou o preto fechado, a tal asa da graúna, é isso que eu espero.

Anseio o extremo, decidido, desenfreado, sem espaço para titubear.

O branco bem branco, sem nuances, sem olhar que duvide que aquilo  É o branco.

Na escuridão total, do fundo do buraco do centro da terra, nem me venha com micro brilhos da lava incandescente, É breu.

Promessa feita, último passo antes do abismo, fim da linha, fim da terra, é lá que vou estar.

Mergulho direto nas profundezas do oceano, em que os peixes são transparentes, cegos, não precisam de sentidos, só totalidade absoluta. Me ache fusionada com o nada.

Instante único, do além do último limite, mor(r)o lá.


Simone de Paula - 23/04/2021


foto: Michael Schlegel



sexta-feira, 16 de abril de 2021

Cigarettes

Eu não diria que foi engraçado, longe disso. Mas foi como podia, ou melhor, como devia ter sido.

Ainda que  o sexo nunca tenha sido a nossa, a decisão foi selada como o cigarro bem fumado no after sex.

Desligamos, decididos, era um fim ou não, mas era um ponto dando basta a tudo que veio antes.

Foi a dança mais sincronizada que tivemos. Nem chá,chá,chá, nem bolero, mas um passo após o outro, no ritmo lento e preciso, calculado e arriscado na mesma medida: fazia sentido.

Estava tudo tão presente, sem nada que sobrasse, até os corpos se encontraram e se moveram.

Desvio da rota. 

Valeu!

 

 

 

Cigarettes after sex 

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Stand up

Hoje o silêncio.

Ainda em pé, parada diante de ti, esperando.

Esperando que você pegue o que te ofereci, mesmo que sem ter pedido.

Tentei vias diversas de fazer chegar às suas mãos aquilo que levava mais do que o imaginado.

Mais do que o imaginado, só você poderia ver além daquilo ali.

Não invadi o espaço que a mim não pertencia, aguardei o seu passo decidido.

Não veio, eu vim. E fui, hoje eu fui.


Simone de Paula - 09/04/21

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Destinatário: Amor

Ainda não decidi se essa missiva seria carta ou bilhete. Só sei que optei, finalmente, por colocar o destinatário no seu devido lugar.

Te escrevo há muitos anos tentando acertar as palavras que fariam você se curvar, ceder da eterna posição de quem dá as cartas e termina o jogo, antes mesmo de termos um vencedor. E, pela lógica, ganhou aquele pra quem bastou o que tinha sido jogado.

Mas não era nada disso que eu queria te dizer. Vamos voltar ao começo: carta ou bilhete?

Bilhete. Pode ser curto. Não é nada demais a não ser um detalhe, um lembrete, uma coisinha que não pode passar em branco.

Amor, não sei porque insisto em te colocar no lugar de outro, muitas vezes no lugar do pai, sabe-se lá o que é isso: genitor, protetor, orientador, mito, deus? Bem, mas te escrevo para dizer, te quero! Só não sei se te posso.

Ficaria bom? Não. 

Nem sei como te escrever, Amor, porque as palavras são banais diante dos sentimentos intraduzíveis que sinto diante de ti, todas as vezes, arrebatada, disposta para tentar te alcançar.

Confesso, o que eu queria mesmo é que você me ensinasse a habilidade com as flechas. Estar no seu lugar, fazer o que você faz, sentir prazer no match bem mal feito, em que as partes em questão se desencontram na tentativa de fazer dar certo a promessa da união.

Inveja, é isso. Um dom como esse, quisera eu. Poder experimentar sem precisar me deter tempo além do deleite dos primeiros lampejos da inspiração. 

Me dá! Só quero um dia de você. Todo, completo, inteiro. Seu dom em mim e você arrebatado assistindo meus comandos. Me dá!

É, acho que um bilhetinho assim ficaria bom. 

 

Simone de Paula - 02/04/2021