sexta-feira, 1 de maio de 2020

On air

Eu moro bem pertinho de um cemitério. Da janela dos fundos posso vê-lo bem. Não é um cemitério de jardim, mas de túmulos. Algumas árvores, e um muro branco, o rodeiam, tentando separá-lo da vida urbana que acontece como se ele nem estivesse ali.
Desde que mudei para cá penso, como construíram essas casas tão perto de um cemitério? Me pergunto sem saber a resposta, mas já ouvi muito sobre esse tema e sei que cemitérios são construídos distante de onde as pessoas moram. Ele fica em um quarteirão bem íngreme, a região toda é cheia de ruas inclinadas. Mais um bairro montanhoso da cidade. O que nos separa é justamente a avenida que esconde hoje um córrego. Sim, no passado o cemitério ficava do lado de lá e as casas do lado de cá. Mas hoje, do lado dele, tem escola, casa, tudo que pode conter um bairro residencial.
É um cemitério misto, israelita e cristão. Cemitério misto instalado em uma montanha, praticamente o monte das oliveiras. Uma ironia porque os assuntos da morte sempre precisam de algum tipo de graça para descerem melhor. 
Ontem li algo que minha mãe quis me dizer, ela que sempre fez questão de deixar claro que a morte existe e não se deve lidar como se isso não fosse acontecer um dia. A frase era assim: a morte é o maior mistério da vida. É, faz sentido.
Quando acordo, vou olhar pela janela dos fundos, lá onde o sol nasce. Apesar dos prédios no meu horizonte, que tentam apagar a subida de resplendor do sol, ele vence sempre e encontra umas brechas para raiar luminoso nas cores mais variadas. E vejo o cemitério lá, no monte vizinho. Enquanto espero o café coar, observo o ritmo da avenida, vejo o momento em que o céu fica claro o bastante para as luzes dos postes apagarem, às sextas-feiras vejo as barracas da feira sendo montadas, e em muitas manhãs, especialmente quando o sol ainda não apareceu no horizonte, sinto o cheiro de velas forte, vindos dos velórios. Como tem encruzilhadas por estas esquinas, despachos (macumbas), também são figurinhas frequentes pelas imediações.
Gosto do silêncio, da penumbra, do vento nas copas das árvores, do vazio de corpos andando pelas ruas e também desse cheiro marcante da parafina derretida. É o terreno na morte, daquela que faz parte da vida, que transita entre nós e que evitamos ao máximo. 

Simone de Paula - 01/05/2020


Cemitério de Mirogoj, Zagreb, Croácia



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