sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Long trip

Decidi que era hora de inventar uma nova viagem, explorar um destino há muito desejado, mas sem saber o que ele poderia significar. Muitos já foram por ali, agora seria a minha vez.

Embarquei com pouca bagagem e já fui informada de início que seriam três percursos com dois saltos, que me ajudariam a atravessar de um ponto para o outro. Inusitado, diante do que eu imaginava que seria.

Comecei o primeiro e foi realmente um estado de maravilhamento. O tempo que ele durou foi o meu tempo. Fiz paradas, explorei os pequenos veios que ofereciam mais conhecimento sobre aquilo. Me surpreendi, especialmente quando ia me lembrando de outros lugares em que estive e que se conectavam com esse. 

Descobri, quase no meio do primeiro ato, uma via paralela que era mais colorida, mais suave, me convidava a fazer o percurso duas vezes, uma pela via oficial, mais complexa e sinuosa e depois pela paralela. Nesta, eu percorria o sentido contrário, começava de novo e passava por tudo de forma mais atenta, mais direta, me detendo nas notas que ajudavam ainda mais a explorar outros ângulos do mesmo caminho.

O primeiro salto foi estonteante. Parece que entre o pular e o aterrissar levei semanas. Foram tantas micro informações e adendos nesse movimento, que decidi que já tenho uma nova jornada quando essa acabar.

Comecei o segundo percurso com uma espécie de silêncio como companhia. Foi mais rápido, mas ao mesmo tempo com mais intervalos. Talvez a quantidade de elementos que cercavam o novo trajeto não tenha sido tão grande. Porém, era tempo mesmo de poder ter um ritmo mais encadeado, podendo verter tudo que tinha sido e o que deveria vir a ser. Cheguei no final e quando me preparava para um novo salto, fui tomada de assalto: o percurso parecia ter sido roubado dali.

Insólito, bizarro, quem tirou aquilo que deveria estar aqui? Curioso demais! Sem saber como  prosseguir. 

Talvez seja justamente esse o segredo, descobrir como se dará o novo salto, como é a passagem para o último e mais desejado percurso. E, é nele que moram as respostas para muitas das questões que destaquei nas infinitas notas que já registrei até aqui. 

Percebo uma luz intensa, vibrante e alaranjada. A imagem do fogo quente amedronta, mas impede que eu possa saber se é por ali mesmo que devo me atirar. Parece que quanto mais perto da satisfação tranquilizante eu imagino chegar, mais a ameaça se coloca no caminho.

Não é hora de decidir, escolho a parada investigativa. Duas possibilidades, encontrar nesse momento de passagem os elementos com os quais seguir, mesmo que eu só tenha a via sinuosa pela minha frente, ou, abrir um grande desvio, atravessar toda aquela outra jornada, que sei que devo fazer, para voltar para concluir esta. 

Volto com notícias na próxima semana.

Simone de Paula - 26/02/2021

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Nó cego

Não tenho palavras para dizer aquilo que é claro em mim. Como é difícil expressar o que as coisas são, as miúdas diferenças entre elas, que se tornam inconfundíveis na materialidade da coisa em si, mas que passando pela voz se tornam mescladas e confusas.

Penso, na minha cabeça, milhares de formas diferentes de expressar, através de frases distintas, a separação entre o animado inumano e o inanimado verbal. Mas quando coloco todos os elementos encadeados, o que resta é dizer o mesmo sentido. 

Me deparei com o impossível da linguagem, esse que leio diariamente em tantas bocas. Sei que quem escreveu isso chegou aí, só não sei se quem repete, também chegou nesse mesmo ponto, porque é tão perturbador, desafiador, provoca raiva, impotência, é o próprio limite.

Matemei para tentar me afastar de conceitos e teorias, porque eles são aquilo que está mais longe disso. Com saberes externos é que eu não conseguirei dizer de duas coisas diferentes, que se igualaram por terem sido significadas. 

Procuro no baú das palavras duas que se equivalham, mas que digam da diferença inegável do que quero dizer. Mas lá não acho. Fico bem quieta, tentando captar o som do ar, para ver se ele sopra o que seria o traço puro para poder reproduzir.

O silêncio é aceitável, o escuro também, mas a surdez e a cegueira, isso levaria justamente o pedaço material animado e inumado e deixaria o quê? nada. A cabeça que quis ficar com tudo, se reduz a nada sem o órgão tocador de real. Resta a mim procurar o quê desata esse nó cego. E daí, percorrer um espaço sem fim.

Simone de Paula - 19/02/2021

Obs.: Este é um exercício de linguagem e se você não entendeu do que se trata, bem-vindo ao clube dos desentedidos e ignorantes.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Desejo meu

Desejo sim, que você fracasse um pouco e depois disso, saboreie o sucesso com mais gosto.

Desejo ainda, que você se entedie bastante, sofra a falta de recursos materiais, emocionais e espirituais para aproveitar mais as vontades e apetites que vierem depois disso.

Desejo também, que você se sinta preso, impedido, amarrado nas próprias teias embaraçadas, e quando destilados e decantados estiverem todos os pensamentos mórbidos, seu caminhar seja leve, livre, solto e distraído.

E desejo, não por fim, mas para um novo começo, um retiro, desaparecimento, arrebatamento sem palavras e nem conceitos que possam alcançar a surpresa do novo tempo.

 

 Simone de Paula - 12/02/2021

 

Ilustração: Antonello Silverini 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Festa estranha com gente esquisita

Aquele dia foi muito louco.

Cheguei em casa de viagem. Tinha passado uns dias fora por causa do trabalho. Voltei exausta e frustrada como de costume: o trabalho não preenchia mais meus apetites profissionais, mas me pagava o suficiente para me manter.

A casa estava vazia, luzes desligadas, mas não estava escura. Uma espécie de luz indireta mantinha o ambiente em penumbra. Larguei a mala no chão da sala e, ainda com a chave da porta na mão, segui em direção à cozinha. A luz vinha de lá, a lâmpada do exaustor estava ligada em cima do fogão. Era aquele clima de madrugada: silêncio, luz da lua iluminando os espaços. Poético ou assustador, depende do que virá depois. 

Bem, o depois foi bem rápido, olhei e me surpreendi, tinha um homem sentado bem ali, na mesa da cozinha. Do ponto de vista lógico, ele estava sentado na cadeira, apoiando os cotovelos na mesa, mas foi um modo de falar. Era um desconhecido para mim, mas familiarmente acomodado na cozinha da minha casa. Cumprimentei e ele levantou sorrindo para retribuir o cumprimento. Sorri meio sem graça, porque ali era a minha casa e o desconhecido se portava como anfitrião. Pra quebrar o gelo perguntei: "cadê todo mundo?" E ele respondeu: " sua mãe saiu, seu sobrinho está por aí, e sua irmã também já volta. Fiquei estarrecida, ele sabia quem EU era. 

Ele, aproveitando que estava em pé, se virou, abriu a geladeira, pegou uma cerveja e me ofereceu: "quer?" E, saiu para o quintal, tranquilo, quase dançando. Recusei a cerveja e percebi que ali, no meu quintal, tinha mais gente, na verdade, tinha uma festa. WTF???!!!??? 

Fui passeando por entre as pessoas - todas desconhecidas. Elas conversavam, dançavam, mas o som de tudo era muito baixo, suave, quase um silêncio. Chamei o cara da cozinha, queria saber o que estava acontecendo ali. Ele sorriu quando viu a minha cara e disse: "vem curtir a festa." E nessa hora, bem nessa hora, meu sobrinho passa correndo, rindo. Ele estava brincando como sempre faz no quintal, mas com um adicional, ele estava pelado. Não, não temos piscina em casa. Não, ele não é o tipo de criança que tira a roupa por alguma questão íntima que nem psicólogos conseguem entender. Era estranho, ponto.

O bizarro se torna quase normal depois que passa um tempo, é como acostumar os olhos com o escuro ou os ouvidos com o silêncio, a ausência de estímulo vai revelando o que fica oculto sob o impacto voraz, ou da luz, ou do som.

Resolvi conversar com o "anfitrião", afinal, entrei na festa de bicão, na minha própria casa. Ele era muito alto, loiro, mantinha um sorriso permanente nos lábios e olhava diretamente para mim. Estava em outra sintonia, talvez maconha, talvez cerveja, talvez a leseira vinda de sei lá onde naquela personalidade. 

O papo foi rolando e o cara resolveu que a gente estava num flerte. Peraí, ele resolveu ou eu flertei? Já nem lembro mais o que veio primeiro, porque levei mais um susto. Foi eu baixar os olhos para colocar a minha cerveja na boca, e o cara ficou pelado.Antes de falar qualquer coisa, minha cabeça rapidamente se defendeu da nudez frontal do loirão em pé na minha frente com um raciocínio bem montado: "é moda andar pelado por aí? primeiro meu sobrinho, agora esse cara?"

Desviei do assédio e entrei em casa, ele veio atrás de mim, tranquilo, pegou mais uma cerveja e sentou na mesma cadeira da cozinha. E entabulou uma conversa, sobre sei lá o quê. E, eis que meu sobrinho passa de novo por mim, correndo peladão. Eu o chamo, ele me olha e ri, estava curtindo a beça correr pelado. Deve ser divertido mesmo, gostoso ter o vento no corpo, tudo livre, leve e solto. E, acho que era essa pegada hippie a da festa, porque de repente, um casal entra na cozinha, sorrindo, me dá um oi, abre a geladeira, pega mais uma cerveja e sai. Sim, estavam pelados. Fui até a porta e, no quintal, as pessoas sem roupa e as roupas penduradas no varal.

E justamente quando eu pensava se deveria entrar no clima, minha mãe e minha irmã chegaram, juntas, me olharam com surpresa e perguntaram: "você já chegou? " Eu respondi que sim e quando fui perguntar que raios estava acontecendo ali, elas largaram as bolsas e tiraram as roupas. E, pra completar, começaram a guardar compras de supermercado que tinham trazido da rua. 

Larguei a cerveja na ponta da mesa, olhei aquilo tudo, aquele non sense, virei sem dizer nada. Passei pela sala, peguei minha mala, subi para o quarto. Entrei no banheiro para tomar um banho antes de dormir e quando fui tirar minha roupa, o que é habitual e automático, tinha tomado um outro sentido. Eu percebia as peças, que pareciam ser levem, quase desmanchavam. E meu corpo, parecia ter vontade de saltar de mim, aparecer mais, se escancarar no mundo ao invés de se encolher dentro das roupas. Tomei meu banho, lavei meu corpo espalhado no mundo. Quando saí, uma vontade imensa de curtir uma festa baixou em mim. Fui direto para o quintal, porque ali o que me esperava agora era justamente aquela festa que eu recusei quando cheguei da rua.

Simone de Paula - 05/02/2021