sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

É só o Destino



Nasci num mundo cheio de gente. Gente de todas as formas, cores, tipos. Mas nenhuma encaixa.
Tento explicar pra mim mesma, mas nem eu entendo. O analista também não, o macumbeiro idem e a melhor amiga nem sabe do que eu estou falando.
Dei voltas ao mundo, procurando encontrar o par perfeito. Acho que nos desencontramos, porque é impossível não ter quem combine.
Poetas, escritores, cineastas, compositores e artistas, todos sabem exatamente do que eu estou falando, porque só alguém na mesma situação conseguiria descrever tão bem esse estado. Mas quando eu penso que fazer uma canção seria a solução, a folha em branco me lembra: é só você!
Essa verdade assim, revelada cruamente pela folha em branco, pede um revestimento melancólico. Bobagem, melancolia não sinto, nem isso.
Acabei de me dar conta de que nem os poetas, escritores, cineastas, compositores ou artistas encaixam, pois eles têm pelo menos a melancolia. E eu, nem ela me acompanha.
Uma vez encontrei alguém. Não era exatamente, mas dava pra fingir que cabia. Tentei tanto, que acreditei ter dado ‘match’. Anos se passaram e a rotina se encarrega de esconder as diferenças por trás das obrigações. Tudo parece combinar, como numa dança monótona: dois pra lá, dois pra cá.
Mas a gente não engana o destino, ele não tem pressa, nem ansiedade, nem preocupação em provar aquilo que está traçado. Ele simplesmente passa a caneta na hora certa.  E claro, a rotina sucumbiu à solidão e as coisas voltaram ao seu lugar. Estou só.
Engraçada essa coisa de solidão, me dei conta de que ela não me aflige mais. Ela não precisa ser evitada, escondida ou negada.
A última vez que ela me pegou, os disfarces se desconectaram. Tava tudo amarrado, girando numa aparente normalidade, mas soltou. E, ao invés de surpresa ou sofrimento, não tinha sentimento. O tempo parou, e assim não há ação possível. E nem pressa, nem incômodo, nem nada. Era isso, eu estava só. E algo novo tinha se revelado, era o destino, eu e ele, nós dois. Finalmente encontrei o que encaixava, eu mesma no meu destino. E o que ele me revelava, era que ele tinha me reservado a solidão.

Simone de Paula – 25/02/2016


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Aleijadinho


Cheguei em Ouro Preto por volta das seis horas da manhã.
- O sr. poderia me levar na melhor padaria da cidade? Perguntei ao taxista.
Acho que ele segurou o riso para ser gentil.
- Paulista? Se é a melhor eu não sei, mas se ocê quer um trem pra comer aí tem.
Responde generoso diante da minha total falta de sintonia.

A padaria no caso era um lugar que vendia quase tudo, de pé de porco a rosca de coco.
Compota, parafuso, jornal.
Mesa de centro para apoiar o copo, cortina vermelha dando aconchego ao frio da hora. Alguns tomavam sua última pinga, outros a primeira.
Cheiro de pão quentinho e café, o maior respeito aos sentidos.

Tinha uma pressa danada dentro de mim, não saía. Mastigar, andar, fotografar, postar. Vai, vai, vai.
Em pouco tempo, boa parte da cidade estava semi desvendada sem o menor cuidado.

Calma corpo, calma.

Era hora de me perder. Subindo e descendo.
Cheguei na Igreja do Pilar. A com mais ouro disseram.
Eu não entendi e não entendo até hoje, o formigamento que me deu.
Entrei.

Fui tomada por um choro como um vento levando tudo, tirando o que havia do lugar. Remexendo sólidos tijolos, cimentos barrocos, terra firme e roxa.
Caí em reverência. Não a um santo que não conhecia, mas ao sagrado que morava em mim e em um instante se reconheceu.

Era o prenúncio de um encontro.
Dali bem pouco, nos veríamos pela primeira vez.

Se eu pudesse, voltaria agora.
Não exatamente para a igreja, mas para dentro dessa cozinha mineira igual a que fui em Mariana, um maravilhoso templo.
Ouviria atrito de garfo e faca e fumaça.
Me aproximaria do grande fogão construído no meio do salão e bem devagar saberia que era lenha queimando, faísca por faísca, estalo, ardendo, em plena transformação, um estado em outro estado.
Bem esse que era em mim.
O de não ser o mesmo, a mesma. E nunca mais seria.

Depois dormir. Horas.

Respirar profundamente em frente ao santo, um santo barroco, exige maturidade da gente. Descanso.
Era preciso muito para estar diante de Aleijadinho.
Seguir seu rastro, se alinhar na sua costura pela cidade.
Juntando os pedaços.
O corpo, uma vida inteira.

Ele dizia em meus ouvidos:
Cale, silencie e penetre.
Há profetas em volta, são sábias as palavras, apenas escute.

Arrepios.

Foi artista, tido como herói, filho de homem português, mãe escrava, pai, sogro, branco, preto, pardo.
Só se sabe guiado por um anjo e o cálice da paixão.
Abram portas e janelas!
Maduro, a doença avançava. O que era? Ninguém dizia, aos poucos se desmaterializava diante da rigidez de suas pedras.
Ia embora perdendo a vida. Reconhecendo a vida.
Fragmentando-se. Aleijando-se.

Voltarei um dia lá, contigo. Você vai saber o que é um tutu de feijão, couve e São Francisco de Assis. Vou te mostrar meu tempo esculpido. Embora em constante reconstrução. Espero que faça frio para os nossos narizes gelados se tocarem e se reconhecerem.
E nossos corpos saberem-se quentes, amanteigados.

A gente se lembra do seu sonho, de que íamos para montanha. Estamos em frente a montanha.
Sei muito pouco, mas estou acordada.

Nada mais inteiro, que um amor quando abraça o outro.

Maria Laura, 25 de fevereiro de 2016.



terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Na tentativa de seguir...

Nora chegou à cidade e teve certeza que escolheu a melhor época do ano - outono. Caminhava pelas ruas em direção ao museu e tinha a impressão de estar em uma pintura. As cores que tomavam a cidade eram todas quentes. Cores que ela passou a vida inteira a perseguir. Realmente passou uma vida em vermelho, laranja e dourado. Programou essa viagem inúmeras vezes na sua imaginação, talvez, a partir do dia que entrou em contato com a pintura. Tinha treze anos e resolveu fazer aulas de pintura no colégio na tentativa de evitar horas livres em casa na companhia de um irmão chato. Não aguentava mais aquela relação, onde sempre levava a pior e acreditou que passar mais tempo na escola resolveria o problema. Não seria mais o alvo do irmão que na época atirava sua raiva e frustração em quem estivesse por perto. Se seu irmão era marcado pela raiva e agressividade, na primeira aula de pintura percebeu que sua marca seria a cor. Ela passou a tentar alcançar as cores em todos os lugares e momentos, até mesmo nos rompantes do irmão. É como se ali ela tivesse ganho seu filtro. Era a partir das cores que experimentaria tudo.

Caminhando até o museu, recordou essa cena inicial com a pintura, as cores e pensou no irmão. Ele tinha sido de alguma forma o responsável por ela ter encontrado a sua arte. E, também, pensou em quanto a vida do irmão lhe tinha ensinado sobre algumas cores e sombras: o escuro, o preto, o cinza e no fim, o vermelho, que tomou conta das últimas cenas da vida dele. Quando chegou ao hospital para tentar entender o que tinha acontecido, o encontrou rodeado de médicos, com seus aventais brancos encardidos, o verde desbotado das paredes e o corpo do irmão como se tivesse sido pintado de vermelho. Estava com o corpo inteiro vermelho, como se o seu sangue fosse uma tinta. O acidente fôra fatal, e ali percebeu que seu irmão sempre havia escolhido essas cores e suas intensidades. Não podia ter sido diferente. Quando Nora chegou em frente ao museu, aquela cena inicial com a pintura já ocorrera há vinte anos. A morte de seu irmão há dez e ela estava com trinta e três e sem cor alguma. Sua pele não era branca, era pálida, era a ausência total de cor.

Entrou no museu sem sua cor e logo reparou como esse lugar era familiar, independente do local do mundo em que estivesse. As cores começaram a chamar a sua atenção. Deu vontade de olhar quadro por quadro, mas sabia que tinha vindo para ver o quadro, um quadro específico. A pintura que a definiu nos últimos dez anos. Antes mesmo de chegar na sala onde a tela estava exposta, sua memória trouxe cenas que havia vivido em função desse quadro. Lembrou da primeira vez que entrou no estúdio do Homem que a ensinaria muitas coisas a respeito de pintura e do viver. Foi exatamente seis meses depois da morte de seu irmão e ela estava transtornada. A morte dele lhe tirava a força de uma época infantil e sendo assim não conseguia mais permanecer aos cuidados do professor de pintura da escola. Um amigo de seu pai disse conhecer um artista plástico de muito talento e se ofereceu para fazer as devidas apresentações. Nesse instante, pensou que o amigo do pai também era responsável por ela ter sua arte. Sem sua influência nunca conseguiria chegar perto do Homem que mudaria tudo, todas as cores.

Chegou na sala onde a tela estava exposta e antes mesmo de se colocar na frente dela, parou para olhar à distância. Havia um grupo de turistas fotografando euforicamente o quadro. E isso fez com que ela ficasse à distância. Primeiro porque não entendia como alguém que pretendia contemplar uma pintura pudesse fazer tanto barulho; segundo que não aceitava como alguém deixava de olhar o original para tirar tantas fotografias que depois nem iria rever; e, por último, percebeu seu nervosismo, sentiu um calor subir pelo corpo e chegar ao seu rosto. Sabia que estava levemente vermelha. Enfim, não era um encontro qualquer, era um encontro com o quadro que permeou os seus últimos anos.

Ainda de longe, lembrou a sua primeira visita ao novo professor. Ela esperava mais compaixão da parte dele, até por imaginar que o amigo do pai lhe tivesse contado a respeito do luto pelo irmão. Mas não. A primeira pergunta que o Homem fez foi: "qual é o traço da sua perda?" Ficou imóvel, não conseguia dizer nada e nem pensar em nada. Com os olhos cheios de água percebeu que não sabia qual era o traço que a morte do irmão tinha inscrito nela, apenas lembrava do vermelho, do sangue. Decidiu responder: "só tenho uma cor, vermelho". O novo professor rapidamente se deu conta que aquela garota não tinha elaborado muito, não havia nenhuma escrita nela a respeito da experiencia da morte, apenas uma mancha. E, delicadamente a levou para frente de uma mesa com todas as tonalidades de vermelho que ela pudesse imaginar que existiam. Diante das tintas ela só pôde chorar. Ele era a primeira pessoa a entender o que se passava nela.

Começou a frequentar o estúdio três vezes por semana de tarde até a noite. Eram dias esperados e mais que isso, desejados. Eram os espaços em que podia viver suas dores e cores. Ela lembrou disso tudo com sorriso nos lábios e com a devida distância que ainda precisava manter do seu quadro. Ela sorriu ao perceber, de forma ingênua, que ali naquele momento de dor com a morte do irmão, achava um lugar para de novo evitar sua casa, que hoje não era povoada por rompantes de raiva do irmão, mas pelo silêncio fúnebre dos pais. As coisas tinham mudado muito, mas as cores para ela continuavam as mesmas.

Os turistas se afastaram e ela precisava chegar perto do quadro. Tinha uma dívida diante dessa obra, essa pintura que lhe ofereceu tanto. Nunca poderia deixar de fazer reverências a essa tela. Quando olhou de frente o quadro era como se tivesse diante do espelho. Aquelas cores, traços, os amantes, a moldura, tudo fazia parte do que ela tinha se transformado. O gosto do vinho na boca, a música, as risadas e os corpos enlaçados tomaram seus pensamentos, como se estivesse vivendo aquele dia em que viu pela primeira vez o quadro. Permanecia hipnotizada, como no passado, pelo erotismo que estava retratado ali. Era a primeira imagem de vida, depois de tantas de morte que olhou e pintou. Aquele quadro representava a possibilidade de viver. Chegou a fechar os olhos e ouvir a voz do Homem que lhe apresentou o quadro: "quando você estiver na frente desse quadro a única coisa que te peço é que me dedique suas lágrimas". Elas, as lágrimas, vieram imediatamente. Seu pranto silencioso diante de uma obra que a recolocou na vida. Quanto à dedicatória, não sentia que poderia fazer. Não poderia dar lugar a um outro antes de dar lugar a si mesma. Ficou com as suas lágrimas e suas lembranças.

Carla 23/02/2016

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O amanhã não é o futuro


"Se meu casamento acabar, não terá sido por um outro homem, mas por uma outra mulher."
Era assim que ela pensava, porque tinha sido fiel a tudo e a todos a vida inteira. Era comprometida com o lugar da boa aceitação familiar. E como parte desse papel bem planejado, conheceu o rapaz que aceitaria fazer uma dupla com ela.
Casaram, construíram família. Tudo ia bem, justamente quando essa frase começou a ser usada para lembrá-lo de que era proibido trair. E o marido, que nem pensava em outra mulher, visto que se ocupava em 'vencer no trabalho', se sentia culpado cada vez que uma mulher o interpelava. A esposa lia Nelson Rodrigues e fazia questão de contar para ele como a 'tentação' podia estar onde menos se espera. Ela se sentia segura em demarcar cada passo que ele dava com seu olhar perseguidor. Mas esquecia de observar seus próprios desejos que deslizavam pelo imaginário erótico disponível na literatura. Era Emma Bovary com medo de  ceder. Mas o corpo, cheio de libido, gritou! O coração começou a bater forte, uma onda de calor lhe invadiu o rosto e o peito. Ela precisava sentar para não cair. Com toda prontidão de quem sabe o que fazer com os problemas da vida, marcou a consulta com o clínico geral. Este fez exames e nada constava, mas era melhor procurar um cardiologista. Mais uma série de exames e nada. O cardiologista sugeriu um endocrinologista, poderia ser algo hormonal. Mas não era, e a possibilidade da menopausa precoce a levou ao ginecologista. Não, ainda não era isso, demoraria alguns anos para essa nova condição. Mas a sensibilidade do ginecologista foi maior que a dos outros especialistas e ele sugeriu um analista.
Ela se assustou, como poderia ser levada ao analista por causa de uma taquicardia. Rapidamente se aprumou e fingiu ser uma mulher avançada e bem informada. Topou a sugestão, sem demonstrar que era a contragosto.
A primeira sessão foi estranha, ela não sabia direito como fazer. Ali, ela não tinha experiência. Pensou que deveria ir deitando no divã, mas o analista a orientou a sentar na poltrona e contar porque ela o procurou. Ela contou da taquicardia e da visita aos médicos. Comentava e criticava a cada um deles, definindo o erro de cada um. O analista ouve o relato até o final, levanta-se indicando o momento da despedida, coloca a mão na maçaneta da porta e pergunta:  "E o meu erro, qual foi?" Ela se assusta. Que surpresa! Como poderia ela lhe dizer na cara uma coisa dessas? Como poderia ele ser tão invasivo? Ela diz: "não posso responder", no tom mais baixo em que falou nos últimos 20 anos. Ele se despediu e disse que a veria na próxima semana.
As sessões transcorriam, a taquicardia diminuía, mas os calores, não. Ela se sentia bem em frequentar o analista, mas ainda se sentia invadida com a pergunta que insistia em sua cabeça: 'e meu erro, qual foi? Desde o início do tratamento, usava todo o tempo que tinha tentando limpar sua barra, falando de assuntos que provavam que ela não era tão crítica, que ela confiava nas pessoas, que ela não tinha controle de tudo e, principalmente, que ela respeitava os homens. Falava muito do marido e o quanto ela o admirava por colaborar com ela, especialmente nesse momento da doença. Ela não deixava escapar a palavra que vinha na ponta da sua língua todas as vezes, não soltava a frase: 'ele me obedece', mas sabia disso.
Um dia, atarefada que estava com os preparativos do aniversário da filha, esqueceu de ir à análise. Quando ouviu o relógio da sala badalar, lembrou que aquele som indicava um fim de uma sessão em que ela faltou. Ela errou.
Atormentada com a culpa pela falha, mandou mensagem para o analista, que não respondeu. Na semana seguinte, passou a sessão se justificando. E, uma semana depois, quando ela ia começar a ladainha das desculpas, ele encerrou a sessão com uma observação serena: todo mundo erra.
Ela saiu furiosa, não aguentava mais esse tipo de postura dele. Sentia como uma falta de compostura ele a provocar desse jeito, com esse ar de superioridade.
Chegou na sessão seguinte e foi logo dizendo: seu erro é invadir minha privacidade! O analista sorriu e disse: ótimo, deite-se no divã e vamos começar.
Ela pareceu tirar um dragão do peito. Seguiu falando de coisas que antes ela nem pensava. Não tinha mais preocupações em manter tudo no lugar, muito menos a vida do marido e da filha.
Um dia, chegou e disse que o marido tinha lhe dito que ela não dizia há muito tempo que o casamento, caso acabasse,  seria por causa de outra mulher. E ela se dava conta que o casamento não existia há muitos anos. Que aquela relação estava soterrada, que era preciso fazer algo com isso. Seguiu mais um longo tempo discutindo questões sobre si, sem nem tocar no casamento novamente.
Numa tarde chuvosa ela chega chorando muito. A briga com o marido tinha sido muito violenta, ela não tinha tido forças para convencê-lo a ficar. Não sabia como voltar a ser como antes. E ouviu do analista a frase que representava uma revelação sobre si mesma e a constatação de ter realizado um desejo que existia há tanto tempo dentro dela: "se o seu casamento acabar, não terá sido por um outro homem, mas por uma outra mulher." O choro cessou, ela se levantou e saiu.
Na semana seguinte, chegou diferente, com uma roupa mais leve, um sorriso tranquilo e um pedido legítimo: sou outra mulher e quero um outro homem. Será que meu marido conseguiria assumir esse lugar?

Simone de Paula - 16/02/2016

Inspirado em "Do amor louco e outros amores", de Ricardo Goldenberg e "Palavras por dizer", de Marie Cardinal.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Ouro Chico, Preto Rei

Era Copa do Mundo. Chovia.
Me lembro de contar, aconchegada no teu colo.
Um trovão do lado do outro.
Eram minhas férias, em Ouro Preto, no meio da praça principal, eu e os gatos pingados diante de um telão acinzentado.
Desejava uma alegria que não sentia, porque não apagava mais as coisas que tinha visto pela cidade.
Quer dizer, tinha uma cidade impressa dentro do meu corpo
Uma parte minha. Uma ladeira escondida.
Foi que descobri Chico Rei e não sabia nada dele.
E pensar que se não fosse ele, sua mina, todos os gritos, eu nem teria te conhecido.
Era só o começo. Era antes do começo.
Depois de visitar as senzalas, se prestar bem atenção as paredes de pedra continuam falando contigo, sussurram suas histórias de sangue. Que você não pensa, não lembra, nem sequer sabe.
Eu sabia outras coisas.
Da sede que tomava, da sola que aperta o chão. 
O tronco da árvore vai cair. Jajá.
O que eu não percebi, é que havia uma construção bem na minha frente. Não a via.
Quem cavou, urrou, foram esses pequenos pedaços da memória que falha, quem nunca existiu. 
Lembrados pela algema de ferro, uma na mão outra no pé. Pescoço, cintura, tronco, alma.
Não tinham nem nome.
Eu ouvia o machado. Escavadura.
Poderia ficar horas ali, e quanto mais horas, mais perguntas.
Não tenha pressa para ouvir. Hoje em dia eles não costumam mais atropelar as palavras.
Virou museu. 
A palmatória que punia a mão, tantas mãos, está lá.
Não se vê a mulher, seu medo, mas estão lá também. 
Onde pode deixar o desespero de se saber morto enquanto respira? 
...
O futebol começa.
Uma vontade de gritar, da coisa toda explodindo.
Mas não faziam gol e eu não tinha coragem de berrar: Vai Chico Rei! 
Não se sabe nem que rosto ele tinha, dizem estar estampado na mata, é cara de vento, sem forma.
Era um rei. Feito escravo. Não sabia mais do sol. Enterrado.
Dia e noite. cavava a mina, suava a mina, cavava a mina.
Um dia ele encontra uma coisa. 
Uma coisa para se lapidar.

Um sim. 
Ouro.
Parece que camuflou até onde pode.
Depois assumiu o que encontrara, na sua devida hora, valiosos subterrâneos esses.
Uma senhora lenda e um novo reinado. 
Chico de novo! Chico do povo rei!
Cantaram todos!
Eu também.

Sabe por que eu te amo?
Para ser livre.

Maria Laura



terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Interrogação.

Ele simplesmente olhou nos meus olhos e perguntou: quem é você? Quem você é de fato? Não tive muita certeza do que responder. Ele tinha me convidado para ir a um restaurante que gosto muito e imaginei que seria uma noite agradável. Mas, não. Assim que cheguei, sentei, olhei para ele e escutei a pergunta: quem você é de fato?

Se fosse ao fim do encontro, com todo o vinho que imaginei beber, seria mais fácil responder. Mas, de início, sem contexto e sem alcool, a pergunta abriu um vazio imenso. Quem era eu? Onde estaria essa resposta? Ou essa imagem? Nada encontrei, apenas abismo.

Nem lembro direito como foi o restante do jantar. Acho que rimos, conversamos sobre política e cinema, acredito que nos beijamos, mas não tenho muita lembrança de como foi. A única memória dessa noite foi o vazio sentido. Queria formular algo, ter uma opnião, uma bela figura que respondesse o tamanho do vazio que sentia.

Sentia um vento gelado percorrer o meu corpo, apenas sentia o vento em mim. Eu era apenas vento e o que falar? É algo que só existe em movimento, não se pega, não se prende, apenas passa. Se é bom ou ruim? Essa não seria a questão. Talvez isso dependa do contexto. No fim, não temos nada para entregar, apenas algo sentido.

Carla 16/02/2016

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Dog-boy

Eu conheci um cãozinho, Dog-boy.
Ele chamava pouca atenção: tinha porte médio, era branco com algumas manchas de cores comuns. Nada demais. Apesar dessa aparência indistinta, ele era um cão muito ativo, não parava, sempre pra lá e pra cá circulando, chafurdando, farejando.
O mais curioso é que ele parecia ser muito interessado no mundo. Atento, olhando tudo e todos com muita atenção. Investigativo, chegava perto e parecia querer muito interagir. Ele rondava, se aproximava, mas perdia o interesse e seguia em outra direção.
Um dia resolvi prestar atenção ao que ele fazia e por que se desinteressava. E notei que ele tinha um limite, ele estava preso. Pensei: mas que coisa, como pode um cão sem coleira estar preso?
Observei o espaço que ele ocupava e percebi que não aparecia nenhum dono, nem voz de dono. Ele estaria sozinho? E por que permanecia ali, brincando apenas naquele espaço restrito? O que não havia me dado conta é que tinha uma fronteira entre ele e o mundo. Ele estava num quintal, na frente da casa, mas entre ele e a rua tinha um belo portão. Como o portão era baixo, nem imaginei que isso o limitaria. E se ele quisesse, o portão não seria problema para ele sair e explorar aquela imensidão que passava pelos seus olhos, pelo seu faro. Fato é que Dog-boy não fugia. Ficava ali, serelepe, animado, mas obediente ao seu amo, delimitado pelo quadro que lhe tinha sido designado.
Dog-boy era um cão safado, porque não tinha carisma, mas se mostrava para quem dali se aproximasse. Ganhava pouco tempo de atenção e guardava aquilo como um troféu da sua aventura. O que faria Dog-boy viver alguma aventura um dia? Como será que ele atravessaria aquele portão? Daí fui eu que fiquei presa naquela teia de fantasias e suposições, ligada naquele cãozinho, na rua, separada por aquele portão. 
Um latido vindo de outro lado me acordou. Percebi que Dog-boy tava todo excitado com o cachorro saltitante que passeava com seu dono e isso me deu a pista pra entender quem era Dog-boy, o cão que não late, não morde, só fareja.
Simone de Paula - 31/1/2015
Conto inspirado em uma cena urbana que se repetia diariamente

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Me lembro como se fosse ontem



Ao ouvir o apito e o fechamento das portas do metrô, Juliano parou de correr para tentar pegar aquele trem. Não estava atrasado, mas tinha o hábito de se adiantar sempre que possível. 
A manhã tinha sido como todas as outras: acordar, ir ao banheiro, tomar banho. Esquentar o café com leite no micro-ondas e comer o pão com manteiga que tinha trazido na noite anterior. Morava sozinho. Veio do interior do estado para fazer faculdade. Era um cara normal, até mesmo banal.
Olhou para a linha do trem, ansioso. Queria ver os faróis acesos do próximo, no qual ele embarcaria. Chegou. Embarcou entre o empurra-empurra típico daquele horário. Como ele estava bem na frente da porta, conseguiu um lugar para sentar. O banco era duplo e, a seu lado, estava um sujeito bem espaçoso, que parecia ser aquele tipo que briga por tudo. Sentou bem no canto do banco para nem encostar e não provocar ira no vizinho de assento.
Sentiu um cutucão no braço, olhou e viu que o sujeito do lado o observava e já foi logo falando.
- Você é o Juliano, né? Lá de Lins, não é?
Juliano se surpreendeu e parecia ter sido pego num ato proibido. Ficou branco, sentiu um gelo na barriga e respondeu que sim com a cabeça. Viu estampado na cara do outro um sorriso largo de reconhecimento. Não gostou. Mas foi obrigado a continuar ali, não podia fugir, mas sabia que os pensamentos e lembranças que começavam a chegar na sua cabeça indicavam perigo. Teve medo.
O outro continuou:
- Lembra de mim? Sou o Rick. A gente estudou juntos lá na Escola Monteiro Lobato. A gente se divertia naquela época, né?
Juliano pensou: ‘você se divertia, eu sofria’, mas não disse nada, só assentiu com a cabeça, fazendo o mínimo de gestos para não mostrar o medo, que agora estava escancarado nos olhos fixos e arregalados.
E Rick continuou, dando um tapa no ombro de Juliano:
- Cara, tô morando aqui faz uns 10 anos. E você?
E sem esperar resposta, continuou:
- Vida dura, não aguento mais, esse metrô lotado, essa gente te empurrando, e nada de grana...
Juliano se esforçava para não ter os pensamentos que chegavam feito um furacão na sua cabeça. Lembrava do horário do recreio, e da fome que sentia porque tinha seu lanche roubado. Começou a sentir vontade de urinar, queria sair dali, e o metrô andava, mas nunca chegava na estação. Não sabia se ia levantar e descer na próxima, pois as pernas não agiam. E a pergunta fatídica veio da boca de Rick:
- Tá indo trabalhar? Desce em qual estação?
Juliano não podia mentir e disse:
- Conceição.
A alegria de Rick produziu mais desespero em Juliano.
- Que bom, tá longe ainda, nem chegamos na Vergueiro, dá pra bater um papo, colocar a conversa em dia.
Juliano se odiou como fazia todos os dias de sua vida, quando queria mentir e não conseguia por medo e por falha naquela cabeça apavorada que tinha. Passou alguns minutos se xingando e se culpando por ter que seguir mais um longo trecho ao lado de um de seus maiores inimigos.
Lembrou-se de Rick quando criança. Menino cheio de personalidade e maldade. Fazia com Juliano o mesmo que todo moleque faz, inventa papéis de quem manda e quem obedece e se acredita poderoso. Isso passou para ele, hoje era o obediente que sempre achou que não seria, mas isso nem passava pela imaginação de Juliano. Naquele momento, lado a lado, Juliano sentia o medo que relembrava sua fraqueza, mesmo que nem lembrasse da sua força.
Não conseguia ouvir o que Rick dizia, e nem perguntava nada. Passou aquele longo tempo olhando os lábios do colega mexer, evitando olhar em seus olhos. Estava apavorado, mas tentava se controlar. Não tinha cabeça para se lembrar de quem era hoje, nem que tinha crescido e nem que o colega não o ameaçava mais. Estava fixado, parado, no passado.
Rick percebendo que Juliano cada vez se encolhia mais no banco, perguntou:
- Cara, você tá bem? Você tá esquisito. Vamos descer e você toma um ar, esse vagão tá lotado.
Foi pegando no braço de Juliano que já sentia que aquilo, que sempre imaginou, fosse acontecer. Já sentiu socos e pontapés, já pensava nos seus dentes caindo, sangue escorrendo, o barulho dos ossos quebrados.
Rick, foi gritando:
- Dá licença aí, pessoal, meu amigo vai vomitar!
Caminho aberto rapidinho e Rick saiu do trem, carregando Juliano pelo braço e rindo. Juliano já estava quase desfalecendo, aquela risada era o sinal de que Rick acabaria com ele.
Rick soltou Juliano e continuava gargalhando. Juliano parou e olhou o colega ali, rindo, meio bobo, meio moleque, não estava nem mais tão perto dele e resolveu ouvir o que o outro estava dizendo:
- Essa gente morre de medo de vômito, né? É falar que alguém vai vomitar, todo mundo corre.
Juliano respirou e lhe veio à mente que ali não tinha mais nada, nem força em um, nem fraqueza em outro. Eram dois homens comuns, que se reencontraram depois de tantos anos. Ficou surpreso em ver que o outro não o odiava e parecia nem lembrar de quão idiota tinha sido na infância. E, que tinha sentido um medo tão forte, que nem teve a chance de saber o que o outro fez da vida. Percebeu que não tinha mais medo, tomou coragem e perguntou:
- Cara, quer  tomar um café?

Simone de Paula – 04/02/2016

Conto inspirado numa cena urbana, reproduzida nesse guache de Leandro Robles