sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Morrer de amor

Vou contar a história de um homem que morreu do coração. 
Ele era amado, amável, amante. Viveu nesse estado apaixonado. 
Sofreu, porque quem ama sofre. Mas não reclamou disso, porque quem ama, quer mesmo é amar e sabe que sofrer é parte do jogo.
Jogou sem pensar nas estratégias, como um tolo. Ganhou e perdeu. Não tentou recuperar as perdas, mas continuou no jogo. E foi aí que o destino deu sua grande cartada, colocando ele frente a frente com uma das maiores perdas da sua vida, que ele nem imaginava ter perdido, porque era um amor que não se perde. 
Olhava o retrato guardando na memória, congelado. Foi exposto à vida real e teve que fazer instantaneamente uma atualização do tempo que ele nem viu passar. Descobriu-se tremendamente apaixonado, mas sem saber como recuperar os anos de amor não vividos. Olhou para aqueles que de pequenos tinham crescidos. Os mesmos e tão diferentes. Como era possível esse amor à primeira vista de novo? Reviveu o que tinha acontecido a cada primeiro encontro, a cada nascimento. Sofreu dessa vez tremendamente. Não sabia o que fazer depois de entender que tinha perdido muito tempo de amor. Não podia mais continuar. E foi bem nessa hora, que o coração explodiu.
Essa não é a história de um amor romântico, de um casal desencontrado, mas apenas a história de um homem que amou.

Simone de Paula - 30/08/2019

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O futuro

Celina morria de medo de ir à cartomante e ver revelado o pior cenário para o seu futuro.Já tinha passado por situações difíceis na vida, em que as amigas a aconselhavam a procurar uma pessoa que pudesse lhe revelar o que iria acontecer. Mas ela resistia. Tinha sido criada em uma família religiosa e que colocava mau agouro naqueles que soubesses dos mistérios do mundo. Que dirá alguém que pudesse saber da vida de outro?
Mas a situação atual era muito perturbadora. Tinha se apaixonado e não sabia o que fazer. Não queria aquele amor, nem aquela pessoa, mas se via aprisionada às teias invisíveis da paixão. Fantasias e medos, expectativas e frustrações. Passava o dia combatendo os pensamentos românticos que invadiam sua mente. Tentava racionalizar, explicar, despistar todas as cenas insólitas que ela imaginava. Se excedia em afazeres, mas nada era capaz de eliminar o incômodo.
A situação era insustentável, pois lhe faltava concentração para as tarefas mais importantes e sobrava exaustão em uma mente excessivamente trabalhadora. Decidiu que só desta vez cederia ao conselho místico. Perguntou a uma das amigas sobre a cartomante que ela frequentava. Pegou o telefone, marcou, respirou fundo e foi.
Chegando, o ambiente era aconchegante. Nada sombrio e escuro como ela imaginou. Ar agradável, apesar do cheiro doce de incenso. Luminosidade vinda das luzes acesas nos outros ambientes, mantendo a casa harmoniosa. Sentaram-se frente a frente em uma mesa redonda, coberta com um lenço muito bonito, colorido e trabalhado com bordados. Dava para ver que tinha sido escolhido a dedo. 
Roberta, a cartomante, era, aos olhos de Celina, uma mulher normal, como ela mesma. Ficava difícil confiar que ela poderia saber alguma coisa que Celina não soubesse. Por outro lado, essa imagem familiar a deixava muito tranquila, solta na cadeira que ocupou. 
Primeiro passo, Roberta pediu que ela escolhesse um entre tantos baralhos que ela tinha. Eram cartas diferentes, coloridas, interessantes. Depois de alguns minutos admirando aquelas imagens, escolheu um que lhe parecia mais intenso nas cores e nos desenhos. A cartomante sorriu e a consulente achou que ela tinha alguma pista sobre sua personalidade só pela escolha. Ficou com a dúvida pairando sobre a sua cabeça.
Procedimentos padrões da leitura de cartas: embaralhar, cortar, selecionar, virar as cartas revelando o que foi sorteado e começar a interpretação. Isso ela já sabia de tanto ouvir as amigas contando para tentar deixá-la mais calma para o evento. Nada foi diferente e ela parecia se sentir no controle. Mas teve um pequeno detalhe em tudo isso. Antes de Celina começar a escolher as cartas, depois do corte, uma carta escorregou das mãos de Roberta, que olhou e a colocou de lado. O restante da tiragem seguiu tranquilamente.
Roberta já tinha pedido para Celina pensar em uma pergunta, que deveria ser respondida pelo oráculo. E, diante do jogo, Roberta sorriu e disse: "uau, que belo jogo, existe boa sorte e um final satisfatório. E então perguntou: é uma situação amorosa, né?" Celina não sabia se nessa hora mentiria ou revelaria tudo. Era tudo ou nada, tamanha aflição que sentia ao se deparar com final feliz e situação amorosa tão próximos um do outro. Balançou a cabeça afirmativamente. E Roberta seguiu dizendo que apesar de tudo parecer um conto de fadas com o encontro perfeito entre o par amoroso, havia um impedimento, algo nesse caminho, que aquela carta que tinha caído revelava. Era ela mesma, Celina, que impedia as coisas de fluírem. Roberta seguiu perguntando e interpretando a carta principal, a intrusa, que dava para Celina informações arrasadoras sobre si mesma. Ela era tão responsável pelo seu destino, que lhe assustava ter tamanho poder e não saber nada sobre isso, por se achar completamente impotente diante da vida e dos acontecimentos.
Finalizaram a consulta e Celina saiu muito balançada. Agora, ao invés de pensar nele, pensava em si mesma. Parou num bar perto de casa e resolveu beber tudo que pudesse, até ficar completamente embriagada. Conseguiu. Saiu do bar cambaleando, andou pelas ruas e se perdeu um pouco, mas chegou. Abriu a porta com dificuldade, tirou a roupa e se jogou na cama. tudo rodava, ela ria, apagou. Acordou no dia seguinte de banho tomado e com pijama, debaixo das cobertas. Ficou totalmente surpresa, ela tinha feito tudo isso sem lembrar. Começou a experimentar a vida dessa forma, vendo o que ela fazia sem saber que fazia. Para isso, precisava se entorpecer, ora com bebida, ora com maconha, mas ficou com medo de se viciar. Tinha lido em algum lugar sobre os efeitos da música e da dança para entrar em transe. E experimentou isso também. Rodar até cair de tão tonta, perdendo a noção de espaço. Ouvir mantras ininterruptos até não saber mais do tempo. Se divertia com esses experimentos. Não contava pra ninguém, porque essa não parecia ser ela, mas era. Aceitou que ela conduzia sua vida mais do que controlava. Resolveu ligar para o tal perturbador que ela tanto evitou. Deixou o papo rolar, marcaram um encontro, ficaram juntos, transaram e no dia seguinte ela se descobriu completamente desligada dele. Tudo aquilo era só isso, ir lá e ver pra crer. Crer que as cartas revelam mais do que o futuro, que o amor é bem diferente do que contam os filmes americanos, que a gente não sabe nada, mas faz tudo. Se despediu dele e da antiga versão de si mesma naquela manhã, com uma xícara de café na mão. Realmente Roberta estava certa, seria uma linda história de amor com final feliz. Ou, nas exatas palavras dela: "existe boa sorte e um final satisfatório"

Simone de Paula - 23/08/2019





sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Promessa

Aquilo que é sua promessa se realizará.

Os últimos dias têm sido de extrema clareza. Dias de sol ou nublados, não é a isso que me refiro. Águas claras ou barrentas, também isso parece que teria alguma diferença. O som distante ou potente da voz se tranquiliza diante de um silêncio fresco que permite que nenhum turbilhão atrapalhe a claridade.

Me afastei das sombras. Não me amedrontam, mas se alimentam de mim e depois de um tempo, ali não há mais como me sustentar.Quanto mais me afasto, mais densa e escura ela parece, até se ocultar em si mesma. Os raios de luz chegam despertos, definidos, mas sem muita intensidade, para não me explodir. Eles permitem apenas detalhes. São sinais de alerta, não por medo ou preocupação, mas por atenção. Alguma coisa está ali.

Passei uns dias nas reminiscências. Sem sofrer, lembrando aquele que abriu mais portas no mundo do que é possível calcularmos. Mas aquelas que me permitiram fazer um belíssimo giro em direção ao melhor entendimento que eu poderia fazer do ontem. 

Queria te contar, mas não posso te contar. Você iria escutar, mas possivelmente não entenderia. O obscuro das paixões doloridas dos desencontros ainda te acomete e impede que você saia daí. 

A você, você ou você, para sempre estarei aqui. 

Simone de Paula - 16/08/2019

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

E lá se vai

E lá se vai mais um dia.
Mais do mesmo, novo, inesperado, surpreendente, tedioso.
Começa igual, cansa.
Segue possível, mas nem sempre alcança.
Termina suave, balança.
Já nem é mais uma questão do tempo, porque ele já ficou pra trás.
É uma questão de linearidade, de inércia.
E segue então, deslizando, escorregando.
Passou.

Simone de Paula -  09/08/2019

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Comunicação improvável

Certa vez, numa dinâmica de terapia de grupo, fizemos o exercício da comunicação improvável. Um era surdo, o outro mudo e o terceiro cego. Ainda bem que não tinha o manco, pois cada um deveria orientar o outro para que chegássemos juntos, a algum lugar.
Apesar de estarmos num mesmo grupo, faltava a intimidade que permite se comunicar por outras vias, deixando de lado a palavra. 
Nem lembro bem que papel eu fazia, mas eu era uma das três faces de um dos pontos impedidos do nosso corpo, ou cega, ou surda, ou muda. 
No início fica aquela situação com o desconforto de estar evidenciando algo que deveria estar esquecido, o mal-estar de mancar em um ponto cardeal, ou melhor, sensorial. Risadinhas, o corpo recolhido, mostrando as inibições como se alguma peça de roupa tivesse sido retirada. 
Depois, a dificuldade em si: quem deveria decidir para onde ir, como guiar, se ali faltavam os conectores básicos, elementos comuns e compartilháveis, como olhar, ouvir e falar?
Olhos? tínhamos. Boca? também. Ouvidos? evidentemente. Mas eles realmente estavam apartados de nós. Era a fase da irritação, do desencontro, da vontade de puxar daqui e empurrar dali. Como é difícil não conseguir comandar o outro. A vontade própria aparece descarada, afinal, o que devo fazer, não sei, e ainda assim, faço.
Fase três, tempo se esgotando, indefinição em saber como chegar ao destino. Qual é o destino? E o destino, quem definiu qual seria? 
Dois tinham o olhar. Se olharam, se acalmaram, tocaram o terceiro usando do tato como voz para que cessasse seu movimento. Um de cada lado segurou no seu braço, enlaçando cotovelos e fechando os olhos. Respiraram e então, movimentaram os três corpos juntos, saíram do lugar, permitindo que todos finalmente estivessem nas mesmas condições, podendo chegar em um lugar possível, apenas isso.
Dez passos depois, encontraram uma cadeira no meio do caminho. Tatearam. Ao lado dela haviam mais duas. Se soltaram, sentaram. Tinham chegado aos seus lugares.

Simone de Paula - 02/08/2019