quinta-feira, 28 de julho de 2016

Single



Helena olhava as gôndolas do supermercado e tinha muita dificuldade em escolher o que ia levar.
Pensava que precisava de itens para o café-da-manhã, mas um pacote de torradas duraria muito tempo e ela teria que comer as integrais mesmo querendo um dia ou outro a ‘sabor castanha’. 
Notava que nas prateleiras os produtos tinham se multiplicado muito, especialmente em relação ao que tinha disponível na infância. Mas, ao mesmo tempo, ela achava inviável comprar tantos itens pra uma pessoa sozinha.
Ela gostava de ser single na vida. Não precisava discutir o filme que iria assistir, nem o destino da viagem de férias. Mas pagava um preço alto por isso. E era um preço de verdade, porque ser single custa mais caro do que ser double ou family.
O modelo social é o da abundância e ela não cabia nele. Parecia um peixe fora d'água, visto que a sociedade não era receptiva com essa postura singular. Tudo é massificado, 
Ela não tinha problemas de relacionamento, coisa que se poderia imaginar de uma pessoa que opta por estar sozinha. Tinha família, irmãos, amigos e até uns namoradinhos de ocasião. Só não queria dividir casa, comida e roupa lavada com ninguém. Desde quando começaram a imaginar que optar por viver sozinha era algo ruim? Aliás, isso acontece especialmente com as mulheres, porque homens vivem só e ninguém se ocupa muito de atribuir-lhes solidão, pelo contrário. No máximo fofocam sobre a sexualidade deles. Enquanto as mulheres são dadas como 'chatas, rabugentas'. Que meio difícil!
Helena não queria mudar nada em grande escala, pelo contrário, queria poder viver nas pequenas escalas. Inclusive, transformaram a lógica das escalas, como se a natureza das coisas fosse do tamanho family e devessem ser divididas caso se quisesse menor. O tamanho single nem tinha existência e pela excentricidade dele. Deveria ser criado especialmente para esses seres estranhos que vivem só.  
Naquela noite, no supermercado, Helena percebia mulheres e homens sozinhos com suas comprar. Pelos produtos nos carrinhos sabia quem era sozinho e quem estava ali comprando para um casal ou uma família. Ela notava, porque os poucos itens tinham cara de que eram grandes demais para o desejo dos consumidores, mas na falta de coisa melhor, escolhiam o mais básico. Se vai durar mais, que seja o menos específico.
Helena chegou em casa, abriu a janela e ouviu o barulho de fora e o silêncio tranquilo de dentro. Não ela não tinha nem cães, nem gatos, só a sua própria vida para ser vivida num mundo feito para grupos. 

Simone de Paula - 26/07/2016

terça-feira, 26 de julho de 2016

Vazio

Tem dia que é assim: vazio. 
Começou cedo, mas sem nada na agenda.
Hoje o telefone não tocou, o email não chegou e nada aconteceu.
O corpo se moveu, mas sem nenhuma intenção. 
Um dia inteiro em branco. 
Isso sempre me alegra.
Mas, hoje, fiquei na espera.
Esperando estou por amanhã.

Carla -26/07/2016

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Minhas Férias

"Minhas férias!"
Todo começo de ano eu ouvia essa frase e já queria ter faltado na aula. Eu não tinha 'minhas férias', ao contrário. Meu pai, dono de uma oficina mecânica, não tinha 'o luxo' de tirar férias. Além disso, trabalhava de domingo a domingo, porque tudo que ele queria era sair cedo de casa e só voltar para jantar e ver tv, dormindo no sofá, enquanto minha mãe reclamava da falta de dinheiro. Eu ouvia aquelas reclamações noturnas e nem penaaria em reivindicar 'férias'. Sentia culpa só de pensar. Quando mais novo, eu cheguei a pedir para ver o mar. Levou uma hora para a discusão deles terminar. No dia seguinte, meu pai trouxe um jornal cheio de graxa, com uma foto da praia lotada no verão. Ele me mostrou aquela foto e disse: "olha a praia, esse monte de gente suando, é isso. Um dia você chega lá." A surpreaa em ver aquela reação me fez desistir de pedir alguma coisa. Durante os meses de verão eu ia com ele pra oficina. Gostava do cheiro de óleo queimado, da sujeira nas mãos, da mijada atrás do muro. Me sentia um pouco neu pai e até inventada de falar de forma rude com a minha mãe, que me dava uns tapas nas cosstas pra mostrar que em mim ela mandava.
Mas a professora pedia redação e eu inventava uma viagem por ano. No começo escrevia o que tinha ouvido das histórias infantis. Depois, o que eu ouvia nas aulas de geografia. Mas foi ficando dificil inventar do nada e passava as férias lendo um livro, e recontava como uma aventura inédita.
Hoje tenho um emprego, esposa e filhos. Todo ano reservo ao dias das férias da família. Mas confesso que nenhuma viagem foi tão diverida quanto os dias de oficina. Uma coisa eu ainda faço, levo um livro. E quando volto, coloco partes dele quando conto como foi a viagem.

Simone de Paula - 22/07/2016

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Estou te vendo

Caixa do banco, limite da hora para pagar a conta, limite da conta para pagar a conta.
Um senhor se aproxima, deve ter mais de setenta anos. Está de terno amarelo ou amarelado. Usa um óculos antigo, grande, lentes grossas incapazes de disfarçar a profundidade, algo triste. Usava gravata, maleta, cabelos penteados com gel, brancos, suados. Ele fala comigo, estou desempregado, me ajude, pode me ajudar?
Nós dois, ali, me desculpei, saí.

No entanto, ele continua na minha frente. Até hoje, agora. 
Deve ter uma família, deve ser só, pode ser avô e só viu o neto uma vez, às escondidas, enquanto o garoto abraçava o pai depois do futebol no campo improvisado da praça.
Talvez tenha uma mulher em casa que o espera de forno ligado enquanto as batatas não chegam. Essa mulher o abraça, diz que a vida tem muito a ensinar, que tudo há de melhorar, que das armadilhas do destino sairão fortalecidos.
Ela fala, mas não acredita.
Sabe que estão diante da escassez.

Os corpos fracos, as mãos enrugadas tocam-se antes de dormir. 
Talvez sonhem com a fome ou com um afeto. E depois acordam assustados, desesperados em busca de fé. 

O pão está guardado para a manhã.

Maria Laura

terça-feira, 19 de julho de 2016

Um início

Era um quarto de hotel, como tantos outros espalhados pelo mundo. O que eu esperava? Talvez  algum sinal de familiaridade. Algo que não estou encontrando no endereço que viverei nos próximos meses. Tudo milimetricamente colocado na pia do banheiro, o criado mudo com o clássico telefone, papéis com o timbre do hotel e a relação de número da recepção, serviço de quarto, lavanderia e afins. Tudo estava ali, como deve estar, como em um bom quarto de hotel. Mas  confesso que houve um estranhamento. Sei lá, imaginei tanto esse momento que acho que esperava algo diferente, algo que representasse tamanha intensidade do que iria viver ali, naquele quarto e naquela cidade. Na verdade, não encontrei absolutamente nada que pudesse ser um símbolo da confirmação de que havia feito o melhor, de que morar em um quarto de hotel para realizar aquilo que era o meu maior desejo havia sido a decisão certa. Sabe essas coisas que gostamos de inventar para afirmar aquilo que gostaria de confirmar? Acho graça de pensar que sou um sujeito que inventa uma narrativa em detalhes antes mesmo de ser real e quando estou vivenciando tal narrativa, construo uma outra narrativa para confirmar a primeira e passado o tempo, reconstruo de outra forma, para que vire uma história cheia de significados e mensagens ocultas até para mim. Enfim, a louca das narrativas. Fato é que estava difícil e eu cansada de toda essa viagem que começou anos atrás. Decidi tomar um banho e relaxar. O banho foi ok, nada  incrível. O chuveiro não era tão forte como eu gostaria, mas ok. Fui até a única poltrona do quarto e puxei até a janela. Sentei e senti. Sim, era o meu quadro. Olhar para fora e ver aquela rua, imaginada e desejada por anos, ali, na minha frente. Sim, estava no meu novo endereço e começava a pendurar os quadros.

Carla - 19/07/2016

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Vida colaborativa

Aninha se viu feliz da vida no micro apartamento que tinha acabado de alugar. Passou meses ensaiando esse grande momento da vida, morar sozinha. Ela, que tinha nascido numa família numerosa, só pensava em solidão.
Tinha mudado com o básico: colchão, fogão, televisão. Só ela mesmo para trocar a geladeira pela televisão e o microondas pelo fogão. Mas ela era assim mesmo, meio diferente, meio esquisita.
Aninha cozinhava a beça, sabia fazer receitas elaboradas, e nos últimos anos tinha assumido o comando culinário na casa da família. Eles sentiriam a sua falta. Ou, pelo menos, sentiriam fome.
Ela tinha muitos planos, queria transformar o micro apartamento num espaço gastronômico, aqueles de refeição para pouquíssimas pessoas, sob o comando dela. Ela tinha ensaiado isso com os pais e os irmãos. Agora seria moleza, porque naquela família, criticar era o esporte preferido.
Sentada no seu colchão, ela olhava pela janela e sonhava com a primeira receita. Alguma massa seria mais fácil. Produtos frescos, comprados na hora, elaboração na quantidade exata. Perfeito. Como o sonho era antigo, ela escolheu o apartamento perto de um supermercado e com feira semanal na rua paralela. Ela estava bem, feliz, ansiosa.
Daquele ponto, no chão, ela olhava o teto, que parecia meio velho. Mesmo recém pintado, não escondia a idade e as 'rugas'. Ela decidiu que o chão não seria um bom ponto de vista para os convidados / clientes que ela receberia. Bem, era preciso comprar mesa e cadeiras.
No dia seguinte, Aninha saiu pelas ruas do bairro tentando encontrar o estilo de mesas e cadeiras dos bares, ou mesmo das residências, que ela insistia em tentar captar seu interior através das janelas abertas. Sim, tudo era meio antigo e mal conservado, velho mesmo. Parou no bar do seo Antonio para tomar um café e tentar conseguir uma mesa e quatro cadeiras. Papo vai, papo vem e o velho cedeu uma das 4 mesas que ele tinha lá. Disse que pediria para o rapaz das bebidas conseguir uma de plástico para completar o espaço vazio. Ela levou a mesa nas costas e ficou feliz, a casa agora tinha o lugar dos clientes. Mas podia dar uma melhorada naquela mesa e principalmente nas cadeiras. Aninha era muita habilidosa com as mãos e comprou lixa, pincel, verniz e tinta colorida. Fez uma restauração simples, mas deu outra cara para o micro apartamento, que subiu de nível. Parecia até ter ficado um pouco maior.
Decidiu que ia seguir esse método colaborativo na vida. Fez um bolo invertido de maçãs com caramelo e foi visitar os pais. Chegando lá. trocou o bolo por um jogo com  pratos, copos e talheres para quatro pessoas. Prometeu levar o sorvete de passas ao rum na semana seguinte, pois era uma troca injusta, tantas louças por um bolo. Agora precisava de tolhas e os tais clientes.
Notou que na rua da feira tinha uma costureira, dona Jeny. Entrou na pequena oficina de costura e começou a conversar sobre a dificuldade que tinha para fazer barra reta. A senhora estava disposta a explicar e ensinar. Ela aprendeu e resolveu trocar uma fornada de pão de azeitonas com patê de queijo pela toalha de mesa. Dona Jeny fez e aceitou de bom grado a oferta da comida.
Tudo estava pronto, mas se fosse servir bebidas, precisava de uma geladeira e isso bagunçava a sua estrutura mínima e o novo estilo de troca. Voltou ao bar do seo Antonio e perguntou se poderia gelar bebidas ali. Ele topou, mas queria em troca um pote de sardela, que ele adorava e o fazia lembrar da mãe, dona Carmela. Ela topou, mas inclui um pacote de gelo na troca.
Aninha, quando saiu de casa, com as economias que tinha feito da sua mesada nos últimos 4 anos de estudos, não imaginava que seria tão boa no lance de trocas. Adorava trocar as necessidades dela pelos serviços culinários.
Agora ela estava pronta para receber os primeiros clientes. Quem seria? Pensou nos pais, eles aceitariam, mas não poderia ser assim, era fácil demais. Depois pensou em fazer um jantar para seo Antonio, dona Jeny e os acompanhantes deles. Mas eles tinham colaborado com ela, ela não poderia pedir para pagarem um jantar. Lembrou dos amigos da faculdade, mas será que eles viriam?
Ela não tinha meios de se divulgar, nem internet, nem nada. Os recursos estavam acabando e ela precisava descolar uma grana rapidamente, pois o mês iria virar e ela ainda tinha que pagar as contas da casa. Se acalmou e pensou no menu do primeiro jantar. Enquanto escolhia os pratos lembrou de um ex professor, que dizia que adorava ver as versões renovadas de pratos básicos como macarrão ao sugo ou mesmo minestrone. Era isso, os professores que ela mais gostava, que a tinham inspirado a pensar a vida além do curso de Economia que ela tinha feito. Fez um patê de azeitonas e foi pra casa dos pais. Trocou por uma hora de internet pelo patê, mas levou um potinho extra, caso precisasse de mais tempo de wifi.
Mandou um email para ele e passou seu número de celular. Convidou o professor para ser o primeiro cliente e trazer com ele três amigos. Disse que o menu seria surpresa e passou o valor. Disse que se ele aceitasse a oferta, que deveria lhe mandar uma mensagem.
Foi embora e sofreu por 4 horas deitada no colchão e olhando o teto. Mas ele respondeu, aceitou e disse que sábado, 19 horas, seria perfeito. Ela confirmou e começou a preparar as coisas.
Tinha só um dia para fazer tudo. Começou pela massa fresca. Amassou, descansou, abriu e cortou. deixou secar num varal improvisado. Teve a certeza de que realmente uma mesa naquela casa era fundamental. Pelou os tomates e fez o molho mais demorado da sua vida, que apurou durante horas no fogo bem baixo. Aproveitou a sobra dos pães de azeitona que tinha feito para dona Jeny, transformou em torradinhas para a sardella do seo Antonio. A entrada estava pronta, a massa também. Agora era hora de fazer a reinvenção da sobremesa. O velho e bom pudim de leite ganhou um toque especial de laranja e whisky, versão que tinha ouvido de um antigo professor de filosofia. Tinha que gelar a sobremesa e lá foi ela para o bar do seo Antonio. Arrumou toda a casa, toalha e louças na mesa, colchão camuflado, encostado na parede como se fosse uma tela num ateliê de pintura. O figurino dela era o melhor, avental e lenço na cabeça.
Ao toque da campainha, o disparo do coração e o sorriso satisfatório aparecem instantaneamente. O professor Marcos Lineu, como ele gostava de ser chamado, entrou animado. Com ele vieram seu amigo Flávio, sua mãe, dona Emília e a antiga amiga de Aninha, Carla. Ele a convidou para fazer uma boa surpresa. O jantar aconteceu, eles se divertiram e a comida estava deliciosa.
Sozinha no seu micro-apartamento, cansada do trabalho daquela noite. ela se deu conta de que tinha ligado a televisão umas três vezes no mês. Aquilo não cabia mais na vida nova. Decidiu que a trocaria por uma mini-geladeira, que seria muito melhor, pois não poderia sair no meio do jantar para pegar o pudim no bar. Aninha ainda notou que precisava de um rádio, faltava música para acompanhar o jantar. Isso também seria troca, talvez uma receita de brigadeiros de café para o irmão. Mas antes, precisava fazer mais uns três jantares para garantir o mês. Ela estava feliz, mesmo que nada disso durasse mais do que o primeiro mês, ela já tinha aprendido o maior importante da vida: o valor que tem aquilo que fazemos e as relações que estabelecemos.



Simone de Paula - 15/7/2016

Inspirado no livro 'Papel Manteiga', de Cris Lisboa

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sampa

Início da manhã, centro de São Paulo, pão na chapa, expresso. Estava sentada no banco alto, onde meus pés nunca encontram apoio,  na minha frente uma farta exposição de coxas creme, esfirras, kibes, empadinhas, bolovos e um pernil inteiro. O barulho da louça se confundia com o vapor saindo da máquina de café, os homens falavam alto, a mulher ao lado escolhia um enroladinho enquanto contava dos seus 30 anos de trabalho, nenhuma falta, nenhum atraso, nunca houvera sequer um atestado. Agora ela precisa falar, exclamar o orgulho de si mesma diante de um café da manhã solitário buscando algum conforto atrás do balcão.

Tenho que ir para Vila Mariana, me perco. Vou do lado errado do mapa e me vejo em frente a um parque pequeno, nunca estive ali, fico contente em perceber que não era só um lugar novo fora de mim, sei que dentro ainda existem possibilidades das quais razão nenhuma me farão conhecer.

Já era hora do almoço. Contra acebolado, arroz, farofa, salada de alface e tomate, óleo composto completamente duvidoso. A garçonete me pergunta se a água com gás vai ser gl. Gl? Sim, senhora, gelo e limão. Claro, gl para o dia quente, sol no asfalto. O movimento na Domingos de Moraes é grande, continuo andando, escuto o ônibus, as conversas da calçada, pamonha e cural anunciados. 

Me lembro dos trilhos de Mumbai, da língua incompreendida da Índia, das multidões das ruas, dos olhares curiosos, incessantes, dos que me perguntam quem era eu ali.

Volto para Pinheiros, desço na estação Clínicas. O final do dia mostra os rostos cansados, a pressa para entrar e sair. A pressa do descanso. Me reconheço. Sou parte. 

Quanto café faz a gente chegar?
Quanta lembrança não deixa a gente sair?

Quem está de volta é outra, em processo. Estou aqui.
E então percebo, meu afeto condutor. Minha fome reconhecida.

A noite o jantar foi preparado em casa, era um molho de tomate com manjericão, mas entre os minutos do fogo baixo, posso dizer que coube a cúrcuma, o óleo de côco, o gengibre fresco, a pimenta, o coentro, garam masala. Desse macarrão não vi na Índia, nem no Brasil, foram mais de 30 anos, com muitas faltas e atrasos, no entanto recheados de presença. Como a que sinto agora, quando me ardem os sentidos. Como me arde o amor.

Maria Laura

terça-feira, 12 de julho de 2016

Partida

Já estava impaciente. Parada. Esperando o trem. Tinha tanta coisa para fazer no meu destino. Não tinha tempo a perder. Comecei a escutar um barulho. Me levantei e olhei o trem lá longe. Ele foi se aproximando, me levantei, caminhei em direção a ele, a porta se abriu e o que aconteceu nos minutos seguintes não teve nenhuma lógica. Fiquei ali parada diante do trem e não entrei. O trem fechou suas portas e saiu na mesma velocidade de sempre, em total normalidade. E eu? Fiquei ali, parada, olhando o trem se afastar, sem saber porque não havia entrado. Sem saber porque havia ficado.

Carla- 12/07/2016

sexta-feira, 8 de julho de 2016

No tempo da certeza

A renúncia não foi pela culpa ou pela consideração, mas pelo fato de que só seria possível uma renúncia naquele dia.
O céu amanheceu alaranjado, indicando que o dia seria de sol. O vento frio anunciava que o clima era de fim de outono. A rotina matinal seguiu seu ritmo normal e a marca de certeza a habitava no meio do peito.
As Certezas são muito traiçoeiras. Eu mesma não confio quando sinto uma, pois elas logo mostram que são volúveis e mudam tudo por qualquer traço. Tristeza, insegurança ou indecisão. Os traços rasgam as certezas ao meio e geralmente as transformam em vazios.
As horas do dia foram passando e a certeza evanescendo naquele peito. A luz vibrante que estava acesa desde o despertar, agora dava lugar a um entardecer pálido de um dia indiferente.
Ela já vinha pensando há algum tempo se essa impressão de certeza era verdadeira. E naquela manhã, era. O tempo passou liso, suave, sem turbulências ou escansões e isso justamente fazia a manobra lenta e definitiva na tal da certeza.
O Tempo é outro que não se deve confiar. Se ele passa, pode contar que algo vai mudar. “É agora ou nunca” - o ditado não deixa de confirmar. Os modos de funcionamento do tempo são vários, mas o adiamento geralmente tem apenas um elemento, o medo. De quê? Pouco importa, pois se há o medo, de fato não há espaço para o acontecimento.
A hora chegou. Ela olhou para o horizonte, foi verdadeira consigo: não tinha mais nenhuma certeza, mas também nenhum medo. A questão não era de adiamento, mas de renúncia, porque chegou a hora de dizer: chega!
Ah, essas certezas, essas velhas inimigas do juízo...
Foi só afirmar que tinha se decidido, que o seu peito voltou a acender e num rompante a agonia toma o lugar da decisão e a joga novamente nos braços das possibilidades, nas armadilhas do acaso.
Certa sou eu, que não confio nas minhas certezas, optando por nem tê-las. E, pra evitar adiamentos ou antecipações, deixo o tempo correr, solto, nas trilhas do destino.

Simone de Paula – 7/7/2016

terça-feira, 5 de julho de 2016

Um fim


Ela tinha passado o dia inteiro sendo vigiada. Os olhares a acompanhavam em todos os momentos, desde que pisou, logo cedo, no trabalho. Ela imaginava que chamaria atenção por voltar ao trabalho três dias depois do que aconteceu. Mas não pensou em momento algum que seria vigiada. Ela passou o dia inteiro sendo olhada e pensou: Por que isso era tão ruim? Na verdade, nenhum olhar dizia algo, apenas questionava: Como você já está aqui? Como você consegue? Você deve estar em processo de negação, né? Não é melhor ficar em casa mais um tempo? Essa eram as vozes na sua cabeça, já que quase ninguém falou com ela durante o dia, ninguém quis conversar com ela, apenas olhar.

No metrô, a caminho de casa, pensou: Por que é tão difícil lidar com o fim? Por que as pessoas querem evitar a todo custo pensar no fim? E, ainda mais, nesse momento em que o fato aconteceu com ela e não com eles. Enfim, do que eles têm tanto medo? Sentiu uma cutucada no braço e quando virou para ver do que se tratava, um lindo sorriso a esperava com um tímido: “Tudo bem? Desculpa incomodar, mas como sua música está alta, não pude evitar de escutar, que música linda! De quem é?" Ela, meio surpresa e meio atrapalhada, porque nem sabia qual música estava escutando, saiu do seu fim para um início: “Oi! É uma música de um pianista pernambucano..."

Carla - 05/07/2016

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Ronda diurna

Olhando aquela cena, a impressão era de uma tragédia. A Rua das Oliveiras estava bastante tumultuada naquela tarde de quinta-feira.
O policial auxiliava o ciclista sentado no meio-fio. Ele tinha sangue na palma da mão e a bicicleta caída ao seu lado, tinha a roda amassada. O policial não sabia a gravidade da situação. Sondava se deveria chamar uma ambulância. 
- Policial, eu vinha subindo a rua tranquilo, cantando, como faço todo dia. De repente, ele se atirou na minha frente, me deixou sem saber o que fazer, era ele ou eu, e escolhi me atirar no chão.
- Mas você bateu a cabeça?
- Não, não sei, quando vi eu estava preocupado em não ser atropelado. Acho que não bati a cabeça.

No banco da pracinha, ela chorava desesperada com o cachorro agarrado nos braços. Entre soluços e lágimas, falava sem parar.
- Ele é muito bonzinho, não faz esse tipo de coisa. Quando eu vi, fiquei desesperada. Nem correr eu conseguia, porque meus pés pareciam grudados no chão. Eu gritei, chamei, mas ele parecia não me ouvir. Quando tudo aconteceu eu pensei em acudir o rapaz, mas ele não precisava e o Toby veio em minha direção para me consolar, me acalmar. Ele viu como eu estava exaltada.

Seu Tobias, dono da banca de jornais, olhava aquilo tudo e pensava em como a vizinhança tinha mudado. O bairro simples tinha ganhado moradores com mais dinheiro e tudo tinha cara de novela da globo. O policial chegou perto da banca e seu Tobias quis dar a sua versão.
- Olha policial, eu vi tudo. Tenho essa banca há cinquenta anos. Isso já aconteceu outras vezes, mas não foi coisa que precisava de polícia. Ele vinha pedalando, subindo a rua, mas começou a mexer no bolso, acho que estava mexendo no celular. Quando olhou, nem deu tempo de brecar, foi pro chão. Mas não bateu a cabeça, não. Eu ajudei ele a levantar, foi só uma ralada. Coisa que a molecada do rolimã vivia todo dia. Ela é esquisita, fala sozinha, vem com esse cachorro toda tarde, não fala com ninguém. Ela acha que o cachorro é gente, dá bronca, faz carinho. Mas ela vacilou, tirou a coleira e estava fazendo cafuné. O bicho olhou do outro lado da rua e saiu feito louco. Ela caiu sentada no chão, gritou e cobriu os olhos. Não viu nada. Quando olhei o cachorrinho tava lá cheirando o morador de rua que agora se instalou ali. O cara assobiou e ele foi correndo. Essa raça gosta de correr, e ficar preso na coleira ninguém quer, né?

Os policiais que faziam a ronda se olharam.
- O cara não bateu a cabeça, não precisa chamar socorro. Vambora!

Entraram na viatura e sairam. As pessoas que tinham parado pra ver o que tinha acontecido também foram embora. Em menos de 10 minutos tudo voltou ao normal na Rua das Oliveiras.

Simone de Paula - 01/7/2016