sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Repetições

Hoje ainda não dá, mas amanhã começa.
Começa o descanso.
Começa a dieta.
Começa o exercício físico.
Começa o desapego.
Começa o cumprir das metas do ano novo.
Começa a leitura dos livros da estante.
Começa a meditação.
Começa, começa, começa. Amanhã é sempre um começo.
O difícil mesmo é hoje ser o fim.
O fim das paranóias.
O fim das expectativas.
O fim do controle.
O fim das auto-exigências.
O fim das cobranças.
O fim do tempo perdido.
O fim dos maus investimentos.
O fim da tentativa de definir o que deve começar.
Tem sempre ontem, hoje, amanhã e depois de amanhã.
O que não tem é o saber do que será de mim nesse tempo definido.

Simone de Paula - 28/12/2018

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Será?

Será que o não um dia vira sim?
Sigo acreditando que sim, mas não sei se é só um jeito de permanecer tentando.
Já respondi o por quê de muitas formas. Mas nem todo argumento ou retórica parecem servir pra girar a roda do destino.
Porque sim, mesmo não sendo resposta, muitas vezes é querer.

Simone de Paula - 21/12/2018

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Undreground shots

Sentados lado a lado no metrô, o casal em torno dos sessenta anos tentava disfarçar o desejo escandaloso que passava nas suas mentes. Durante uns bons minutos, ele, elegantemente vestido, esfregava as mãos na alça da mala, remexia os olhos, procurando um assunto para abordá-la. Ela correta, mostrava, deste o vestuário até a forma de sentar, que tinha sido muito bem educada. Uma mulher bonita, que os anos tiraram o viço. Ele decide dar o primeiro lance, perguntando uma amenidade qualquer. Ela responde como se estivesse sendo avaliada numa prova oral. Ele não se constrange, afinal, conseguiu uma resposta, mesmo que monossilábica. Continua buscando um novo tópico. Se volta para ela e diante da nova pergunta, ela segue o mesmo protocolo. Ela evita ao máximo olhar para ele, nos olhos dele. Ele, por sua vez, a olha e desvia, não quer ficar hipnotizado diante do que o tirou do marasmo de tanto tempo sem se interessar pelas mulheres. Ele percebeu que tinha sido aceito e resolveu cometer uma ousadia. Chegou o rosto mais perto do dela e sussurrou nos seus ouvidos uma provocação mais ousada: "vamos tomar um drink?" Ela, surpresa, olhou para ele. Os olhos brilharam, os lábios se abriam, ela sorriu. Mas logo voltou o rosto para frente e respondeu, agora mais baixo do que antes: "pode ser". Alívio, ela topou. Mas ainda precisariam ficar por ali cerca de quinze minutos antes da estação correta para a descida, onde poderiam encontrar um bar bacana que combinasse com eles. Ele não queria começar mal. Seguiu perguntando sobre ela discretamente e entrecortando o tema comentando sobre a cidade em que viviam e os problemas característicos de uma grande metrópole. Seguiram. Me retirei antes que pudesse ver o jogo daqueles corpos em movimento, sem a garantia que as poltronas do vagão davam a eles. O primeiro lance tinha encantado a dupla, mas diante do movimento, será que isso se sustentaria?

O squeeze passava de mão em mão. As três meninas riam e incitavam uma a outra a beber um pouco mais. Definitivamente estavam a caminho da balada. As roupas, maquiagens, excitação jovial, tudo era o 'esquenta' delas. Mais do que o que se passava ali, no papo delas, o que me intriga é saber se o mesmo referencial de beleza que eu tenho, outros povos também têm. Dessas três graças, qual para mim é a mais bela? Assim como Páris, me coloquei no campo do difícil julgamento da beleza. Para mim, uma delas era mais bonita que as outras duas. Mas para quem está do meu lado, que compartilha da mesma cultura que eu, será que isso se confirma? Sim, mesmo tendo gosto diferente, meu companheiro também inclinava seu voto para a mesma moça que eu. Olhei em volta, tentei perceber qual delas era a mais olhada, eu realmente queria saber se nossos gostos são globalizados. Eu sei que cada cultura tem seu padrão de beleza, mas ali era algo um pouco mais sutil, que envolvia saber se os índices de avaliação são os mesmos, mais do que o gosto em si. Tomada pela mesma dúvida do belo rapaz do conto mitológico, eu não conseguia responder a mim essa questão. Saber quem é a mais bela, não era importante, o que importava ali é saber com que bases se julga. Elas seguiram, rindo, bebendo e animadas para a festa. Eu saí, deixando para trás a resposta que naquela situação eu não pude saber.

O futuro estava ali e era lindo. A filha menor conversava com o pai, contando o que tinha aprendido na escola. Era muito graciosa e falava com animação. O pai, olhava, perguntava, parecia não ceder aos ardis de sedução de uma criança, falava de forma séria. Ao lado, mãe e filha compartilhavam a leitura, elegantemente sentadas, tranquilamente concentradas. Elas não se perturbavam com o externo, mergulhadas naquele momento único. Era uma família, estavam unidos e reunidos, pareciam não precisar, naquele momento, de mais ninguém. Carregavam a esperança que precisamos diante dos acontecimentos do mundo. A aposta deles é de que isso tudo ainda continua e bem. O tempo é cruel, parece sequestrar a esperança. Mas o desejo é transgressor, ignora a realidade e realiza a continuidade. O peso e a dor dos nossos tempos difíceis, ali não entravam. Era preciso manter uma fina película de separação do mundo para que aquele projeto de imortalidade seguisse. Desci, sem que eles tivessem dado conta da minha presença.

Simone de Paula - 14/12/2018


sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Mira

Sentada de forma elegante, mostrando dignidade acima de tudo. Calça e casaco de lã pretos, de corte sóbrio. A malha amarela, escondida sob o casaco, era o detalhe da excentricidade dessa mulher. O lenço  de cor mostarda, beirando o dourado, cobria a cabeça e se cruzava delicadamente no pescoço. Coroada, se portava como rainha. 
Falava muito, num tom baixo, mas muito seguro. Com o árabe ma língua, apontava os dedos quando queria indicar o bem e o mal em algum tipo de situação. Claro estava que ela ensinava por exemplos, tanto nela, quanto nos outros. 
Filha e neta pareciam não querer cair nos trejeitos hipnotizantes. Mas a potência da voz e do discurso da moral ideal estavam ali, delineando cada centímetro daquelas mulheres. Olhos amendoados, maquiados de forma madura. Unhas feitas, acessórios marcadamente dourados e com pedras, tudo indicava uma rainha, onde quer que estivesse. 
Olha nos olhos do interlocutor, segura a atenção deste, sem que ele se dê conta disso. Chama para si, aponta para onde se deve olhar.  Se sabe em público e aproveita disso. 
Mira, nome forte.  Significado: “peregrina”, “aquela que nasceu rodeada de palmeiras”; “vigorosa”, “cheia de vida”, “animada”; “mar”; “paz”; “cheirosa”, “aquela que tem uma fragrância agradável”, pela relação com a Mirra.
Os caminhos se cruzaram e descruzaram, só ficaram as imagens pra contar esta história.

Simone de Paula - 07/12/2018

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Cereja

Me chamou pelo nome,
esperou olhando de longe.

Atravessamos a rua,
me mostra sua palma oferecendo mãos dadas.

Caminhamos, ele me olha,
diz que tenho medo de ser desejada.

Abaixo a cabeça para ver o chão,
um passo está ao lado do outro.

E nos beijamos. Com chuva. Juntos. Acolhidos. Entregues. Reais.

mlsp.








quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Mais uma do tempo

Cheguei e teria um tempão.
Passou o hoje e o amanhã duas vezes e cheguei no aqui e agora. Amanhã quase acabou, tem só mais um tantinho de depois de amanhã, e pronto. Incrível, mas aqui o tempo some e sempre parece que não fiz nada.

Simone de Paula - 30/11/2018

Fato

Não diz não ao outro
mas a si mesmo.

ml

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Coisas de mulher

O tema me faz chorar.
Um choro fundo, doído, inteiro.
Se penso no tema, não tenho porque chorar. Mas as lágrimas se debruçam sobre meu olhar mesmo assim.
Ontem mesmo, naqueles dois ou três pequenos textos do livro de capa preta, o fato se deu. Sem vergonha, sem temor, no meio de muitos conhecidos e desconhecidos. 
Só voltei a respirar muito tempo depois e dentro de mim, não ficou tristeza.

Simone de Paula - 23/11/2018

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

O não e o nada

O não eu posso suportar.
Com o não, dá pra fazer algo.
Já o nada...
O nada é impossível.

Simone de Paula - 16/11/2018

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A fenda

Cerrei as pálpebras levemente. O esforço não foi ali, nos olhos. 
A cabeça pesada, pressionada pelo intenso trabalho do corpo.
A imagem nítida forte, escura apareceu de surpresa. Não pela primeira vez, mas sempre inesperada. Uma fenda de luz amarela chamando para um outro lugar.
Interpretei como uma fresta em uma rocha, inicialmente foi isso que eu vi.
A luz intensa amarela foi ficando alaranjada, mais quente, me remetendo a lava incandescente escorrendo de uma rocha, talvez de um vulcão. 
Olhado sob nova perspectiva, o rasgo vibrante cor-de-laranja poderia ser um horizonte num por-do-sol, visto de longe, emoldurado por duas montanhas. Existia assim lá fora e aqui dentro.
Resolvi brincar controlando o foco do olhar, gerando assim duas repostas satisfatórias: vulcão, interior de uma caverna. 
Mas meu olhar não permitia meu controle e a luz avermelhada, aquela espécie de fogo, foi dando lugar a uma cor mais rosada, púrpura, e então roxa. Ficou mais escuro, a fenda foi se fechando. O rasgo de ponta a ponta se despedia, se consolidava com espaços escuros no traço do percurso até que tudo ficou preto. Cerrou!
Voltei relaxada, a cabeça leve e o silêncio preciso.


Simone de Paula - 6/11/18

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Passo a passo

Há tempos que não há palavra,
um ausente
outro presente

No meio,
diante do que não esperava
choque na vida

Com uma nova morada à espera,
em soluços e descalça com a sola dura
a gruta aberta dando passagem

Um passo,
e o caminho
o mesmo que mora dentro.

Sorte é deus, como disse hoje o proprietário.

Maria Laura



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Dia dos Mortos

Efeméride curiosa, dia de finados, dia dos mortos.
Tive a chance de escrever no meu aniversário, aquele dia em que se comemora o nascimento e a vida que ainda é vivida. E hoje é o dia de guardar a atenção para a memória deve ser reverenciada. 
O tema da morte me chama, me intriga, mas confesso que não quero encontrá-la tão cedo. Não apenas porque tenho muito para viver, mas porque morro de medo de morrer. Sei lá, deve ser algo sobre amar demais a mim mesma e não considerar que algo desse tipo pudesse ocorrer comigo, esse objeto de amor eterno. Sei que esse dia vai chegar e eu mesma não vou lembrar. Não terei a chance de viver a experiência e poder registrá-la, guardá-la comigo para depois rememorar.  É por isso que quem morre não pode saber da própria morte. Que coisa mais cruel, justamente um ponto tão fundamental da nossa vida não nos é permitido conhecer. E pensando nesse sentido, também não conhecemos, através de nós mesmos, da nossa faculdade racional, sobre o nascer pelo qual passamos. Os outros nos contam, mas a gente mesmo não consegue reviver aquele fato, porque não conseguimos registrar pela via da cognição. Dizem que sensações persistem, mesmo que a cabeça não se recorde. Quem sabe? Só se supõe mesmo.
Uma amiga querida, um dia desses, fez um texto lindo sobre um objeto perdido. Ela que diz perder pouco, conseguiu uma lindeza de testemunho sobre sua perda. Se perdido foi é porque outrora era possuído. Se sentimos falta é por apego ou porque o que foi perdido deixou tantas marcas, que a saudade revitaliza aquilo que não pode estar ali, de corpo presente? Marca mais a presença ou a ausência?
Diferente dela, já perdi muito. Perdi pessoas, coisas e situações. E ainda o que quis e nem tive, a esperança de ter aquilo que não tinha, mas queria. Perco diariamente células, cabelos e unhas. Perco os anos que já passaram e ganhos usufruídos. E por perder tanto, acho que sempre quero mais.
Sinto saudades, muitas vezes nem sei de quê. Hoje é um dia que dá lugar à melancolia, sentimento humano geralmente deixado de lado como algo ruim. Melancolia é bom de vez em quando, silencia a boca, tapa os ouvidos, nos coloca lá dentro, quietinhos, mergulhados no nosso magma mais precioso. O melancólico se ama muito, mas nem sempre sente isso pelo mundo, por isso deseja morrer, para poder ficar só consigo mesmo.
O mundo não para, nem a história, nem as mudanças. Se formos pensar, vivemos alguns pares de anos e brigamos por alguns valores essenciais. Depois disso tudo, o que resta de nós é o que lembram da gente.

Simone de Paula - 02/11/2018

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Carta de despedida

"Obrigada por ter transformado minha vida num inferno."
Começou assim a carta que escrevia como despedida.Olhava a frase e pensava se ela estaria no início ou no final da carta. Não conseguia se decidir. 
A frase já dizia tudo, não precisava de mais nada, sintetizava perfeitamente tudo que ela tinha para dizer. A  contradição vista no agradecimento e padecimento parecem não conviver harmoniosamente. Mas pensando bem, naquela situação, conviveram. 
A incerteza sobre estar na abertura ou no fechamento da carta, apontava também essa oposição que ali estava posta. Começo ou fim?
Uma carta, que com o passar do tempo, podia estar contida num bilhete. Melhor, num tweet, num telegrama,  qualquer fragmento de pensamento já resolvia o problema.
Não que não tenha sido uma relação de muitas palavras e nem que essas palavras já tivessem se desgastado a ponto de não ter mais espaço para serem pronunciadas. Mas é que parecia que elas só fariam sentido se ouvidas, se lidas, em tempo real. E, no espaço de tempo entre escrever e ler, tudo que poderia ter entre o 'obrigada' que abria e o 'inferno' que fechava, já não tinha mais razão de existir.
Decidida sobre isso - o corpo da carta resumido em uma frase -, entrou em mais um dilema, o ponto final concretizado com o que desejamos ao remetente. Ela balançava entre o "seja feliz" e o "que você morra sozinho". Era realmente uma questão as contradições que se escancaram no campo aberto entre dois. Percebia que a frase síntese falava dela e que o best regards falava dele. O sentido primeiro era o que ela podia dizer de tudo que foi pra ela e a sequência era voltado para o outro que podia abrir mão do desejo. É preciso que a gente se encontre no desejo para que ele se realize para nós. E se ele nem quisesse felicidade e nem morte ou solidão? O desejo ficaria pendente, esperando se soltar de um para algum outro qualquer. Decidiu: melhor não.
Não tinha iniciado com o nome, parecia endereçar a uma única pessoa que saberia quem era e nem poderia ser outra. E, logo, quem assinasse, ela, também seria única nessa situação. Na relação a dois, não existe mais nada e nem ninguém. A cumplicidade garante que não é preciso dar nomes aos bois. Posto isso, ela resolveu que nem assinaria. Mas será que ele entenderia que era dela? Talvez o nome precisasse estar lá, uma marca indelével que não permitiria mais malentendidos. Era dela mesmo essas palavras. Foi além, mais do que ele poder saber que era dela sem a assinatura, ela queria garantir que, menos por ele e mais pelas palavras escolhidas, essa frase fosse dela mesma. Assinou.
Depois de muito tempo, muitos pensamentos, uma seleção de músicas aleatórias que garantiam um algo a mais embalando suas reflexões, ela terminou aquele conto. 

Simone de Paula - 26/10/2018

Obs. Depois das uniões de Libra, os finais escorpiônicos irrompem. E nada como uma boa Lua em Gêmeos para tagarelar sobre isso. Assim na Terra como no Céu.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Durga presente

A gente nunca sabe o que o futuro nos promete. Pode ser repetitivo o destino, mas é imprevisto. 
Hoje calhou de ser meu aniversário. Todo ano, no mesmo 19 de outubro, reitero minha forma de viver. Corpo, mente, vida, tudo aqui na Terra. Sinto um gosto especial de aniversariar na sexta-feira, dia que, além de carregar misticismos, é um dia delicioso mesmo. 
Tudo segue como de costume: a rotina, os encontros e desencontros, mas cabe a mim ver o presente que se apresenta em cada momento.
Não nego o êxtase de um acontecimento, mas quero também poder perceber o que é prazer naquilo que pode nem parecer especial porque já faz parte.
Mais um ano e ganho presentes. Alguns bons, logo à primeira vista, com sol, luz, força e proteção. Outros que se assemelham a presentes de grego, aqueles que só mostram a potência da sua natureza depois de uma jornada.
Um presentinho especial entrou pelos meus ouvidos hoje. Veio lembrar que ouvimos com todo o corpo, porque os ouvidos em si, são apenas um longo túnel para passar o ar. 

Simone de Paula - 19/10/2018


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Só um ponto - de vista


Naquela tarde eu tentei manter a vírgula abaixo do ponto final. Neguei o quanto pude. Acreditei que aquele ponto, para você, queria dizer reticências. Mas não, era ponto.
Ponto final para mim. Para você, talvez apenas ponto. Um ponto cruz numa história que ainda está atravessada na minha garganta, silenciada por um ponto que me fez aspirar desejando também a vírgula. Não tive permissão para dar vazão a esse ar. Não sucumbi, mas quase sufoquei.
Aquele olhar era o ponto de basta daquela situação. Olhar que podia ser cúmplice, seguido do ato definitivo do entrelaçamento. Ou poderia ser neutro, delatando a covardia insistentemente esquivada. Penso que foi o segundo.
Tinham tantas coisas acontecido antes, que, impactantes, mereciam destaque. Justamente o momento de ver e concluir coincidiram, mas foram deixados de lado. Eu tentava ainda buscar formas de compreender, botando fé numa conclusão diferente, surpreendente. Mas não. O que foi visto, sem ser lido ou ouvido, precisou de tempo para poder ser reconhecido.
O rio segue seu curso, as margens garantem isso. Ali havia uma bifurcação naquele caminho que até então, tortuoso, permanecia consistente. A água se dividiu, diminuiu em fluxo e ritmo, e seguiu.
Vista de longe, a beleza da natureza parece tão suave e pacifica. Dentro dela, é impossível controlar. Chego aqui e repouso à espera do Sol a me iluminar.

Simone de Paula – 12/10/2018

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

XIX - XX - XXI

A história começou com um palitinho. Depois mais um e outro. E quando demos por nós, era um monte deles.
Foram juntando, combinando. Ora todos em pé, ora deitados. Unidos pelas pontas, transpassados pelo meio.
Hoje são dois cruzados juntos com um palito sozinho de canto. Mas teve um tempo, no passado recente, que esse sozinho do canto tava desaparecido, permitindo que a duplinha do X pudesse recuperar o tempo perdido. Perdido especialmente quando o sumido do tempo passado, antes ainda, aparecia dividindo as coisas. 
Nessas passagens de lá pra cá, combinatórias nem sempre definitivas, seguimos brincando com esses pequenos traços, mirando no horizonte o dia em que não haverá mais distinção e nem separação.

Simone de Paula 05/10/18


O XIX deixou-nos divididas, sem força. O XX permitiu nosso destaque, marcadamente no xx das mulheres. E no XXI, sem divisão, mas com a impressão da impossibilidade de negociação. 

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

De pernas no ar

De menina, eu gostava de ver a vida lá do alto da roda gigante. Era claro, infinito. Meus pés fora do chão provocavam uma leve vertigem na subida. Mas depois, os olhos garantiam tanto prazer, que eu nem lembrava que podia faltar algo abaixo de mim.
O tempo passou e eu finquei meus pés no asfalto, para poder fazer o que eu queria e não ficar sonhando acordada. Mas o querer tem dessas coisas, e quanto mais você tem o que quer, mais quer. Não acaba.
Dos giros da roda gigante, passei aos insistentes quereres, fincada no chão.
A gravidade, na minha língua, carrega toda gravidade que a realidade, na minha terra, comporta. Pra voar preciso encontrar uma nova roda gigante, uma grua que me eleve dessa terra firme. Me prendi no chão. Me enterrei. 

# killbillfeelings


Simone de Paula - 28/9/2018

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Encaminhar

Há tanto tempo não falamos.
Seja breve.
Estamos no meio do caminho.
Pare de gritar, está louco de ódio.
Faz frio aqui.

Eu me senti sozinho tanto tempo.
Não tinha para quem gritar, nem sabia se era isso.
Então eu fiz o que podia, agredir a ti e o que vi pela frente.
Eu pensava em alguém que viria me salvar, queria, tanto.

Ele não vem, já mora em ti.

Maria Laura Cesar 

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Canela de Gabriela

Troquei cadeia por cadela e depois por canela dela.
De um susto, acordei da leitura onírica bordejante que embalava o momento exato entre o sono e o sonho. 
Não vi cadeia, nem cadela e nem a canela dela. Mas de fato, vi a imagem de Gabriela, com os cabelos e olhos de Sônia Braga. O desenho fugaz formado no olhar. Abri os olhos e procurei no texto os fonemas, as vogais, os sons para saber, afinal se eu li primeiro cadeia, cadela ou canela. Não achei nenhuma das palavras referidas. Comecei  de novo, lá de cima, do início do parágrafo e quando cheguei finalmente na cadeia, percebi que ela estava escondida entre duas outras palavras, sem destaque, mas destacada para minha cadeia associativa. Confesso ainda, que vi de relance a cadela mordendo a canela dela. Branquinha, com uma ou outra manchinha, porte médio para pequeno, inofensiva a princípio, mas fêmea feroz diante de uma perna tão bela. Ela sentiu as dentadas. A pele firme não foi perfurada. A fuga pronta foi a ação que me trouxe de volta à lucidez. Tudo, tudo era o sonho da leitura, que comportou aquela tão falada nota azul.


Simone de Paula - 21/9/2018


sexta-feira, 14 de setembro de 2018

É primavera, te amo...

A primavera está chegando. Esse inverno não foi frio, mas foi longo. 
O som do trovão ouvido do quarto escuro nem trouxe consigo a luz intensa do raio, mas fez retumbar um pouco meu coração. Pensei, sai tristeza, sai e dê lugar ao mato verde que forra o chão. 
Sempre tem vida guardada, especialmente se conservada com lágrimas. Essa chuva particular que garante que o que esta vivo nunca morra. 
Hoje se combate o choro, como se ele fosse matar o sofredor. Imagine, ele é a maior expressão de vida, desde o nascimento do bebezinho até o pranto do amante amado enlutado pelo que se foi. 
Chove na minha cidade e na sua, não porque moramos perto, mas porque compartilhamos um fim de inverno. Lá fora, as angústias e decepções parecem fazer a gente achar que o mundo vai de mal a pior, mas ele sempre foi o mesmo. A gente que no último verão pensou que o sol fosse brilhar para sempre porque o idolatramos. 
Somos humanos vivendo nesse pedaço de terra, nesse momento do mundo, dando nomes e sentidos às coisas externas para tentar dar conta do íntima que segue persistente pelos ciclos constantes da vida. Tudo é só isso. Enquanto estiver aí, viva!


Simone de Paula - 14/9/18

Obs.: o titulo faz referência à música do Tim Maia, claro. Amo a primavera, estação em que nasci.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

A escrava

Almejava liberdade, não das correntes que prendiam os seus pés, mas dos olhares que seguiam os seus passos.
Não era dona nem do seu corpo, nem do seu destino, pois mesmo se escondendo e esquivando, o desejo alheio não a esquecia.
Não tinha gosto de elogio a perseguição desmedida, mas de cruel capricho de quem pouco obedecia.
Alguns que lhe tinham compaixão, diziam para pensar em outro lugar, se transportar para evitar todas as humilhações e ofensas. Mas era impossível imaginar qualquer outro lugar que não aquele, em que nascera, fora nomeada e criada. 
Nos momentos em que alguma agressão física era inevitável, a dor do copo não podia criar um escape, nem mesmo assim, tinha liberdade para sentir raiva. 
Obediente e passiva, afirmava sobre si mesma que era uma escrava e assim deveria ser tratada. Se reconhecia ali, sendo quem tinham dito que ela era.
Só se pode ver mundo quando mundo te dão.


Simone de Paula - 07/09/18

Conto inspirado na leitura de 'A escrava Isaura', de Bernardo Guimarães

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Palavras

No meio do dia ouvi um barulho estranho, insistente, que parecia vir de fora, mas era tão próximo que podia estar dentro da minha sala. O que era dito não parecia querer dizer nada, mas tinha uma sonoridade familiar. Tentei me concentrar no que eu estava fazendo, focada num tema que eu precisava aprender, novo, que pedia muita atenção.Mas o burburinho não deixou a minha curiosidade em paz. Fui ver do que se tratava. Olhei pela janela, mas por causa das casas vizinhas, eu não tinha um ângulo de visão satisfatório. Não vi nada, mas percebi o som mais nítido. Sim, era um bando de papagaios repetindo palavras sem muita conexão. Poderia ser um antigo disco de vinil riscado, mas eram papagaios. 
Papagaio voa? Voa! 
Essa é uma dúvida que nunca tinha me ocorrido até o dia que, numa filmagem, o bicho fugiu. Era como toda filmagem, cheia de contratempos para deixar tudo mais excitante com um 'quê' de vitória de gincana. Era um filme para uma ong, sem nenhum dinheiro, equipe 'colaborativa', se diria hoje, porque eram as pessoas com quem eu trabalhava sempre, topando ceder uma manhã para ajudar em alguma campanha. Pensando bem, esse filme era para o festival de Cannes, um filme fake, mas o chamávamos de 'fantasma'. Interessante isso, o fantasma virou fake. Voltando... o adestrador de papagaio, um velhinho que deve estar vivo até hoje, nem lembro o nome, tinha dado petiscos para acalmar o pássaro. Sim, as estrelas animais dos comerciais também são drogadas para suportar tal atividade, glamourosa para quem está fora e destrutiva para quem está dentro. Voltando 2... Tudo pronto para rodar, o produtor chama o papagaio. E diz o tratador, "o papagaio já deveria estar no poleiro", no set, na cena. Não estava, tinha sumido. Procura o papagaio daqui, de lá, chama e nada do bicho. Sim, pensando bem, há uma meia hora o ambiente barulhento tinha perdido uma voz, a do papagaio, e ninguém notou. Talvez porque ele estivesse repetindo suas falas e aquilo que se fala demais, para de fazer som. Cancela tudo! E era nessa hora que meu telefone tocava, quando o problema sem solução aparecia. Recebo a ligação com a seguinte mensagem, "o papagaio fugiu!" Como assim? Papagaio voa?, eu disse. E me explicaram que voa, afinal, é ave, como o frango que a gente compra e come, mas nunca vê o corpo inteiro. Eu soube então que ele voa, mas que cortam as asas para que ele fique no poleiro sem precisar ser gaiola fechada. Odiei naquele momento cada pessoa que já teve ou tem um papagaio em casa, para seu deleite, para gozar da repetição da sua fala na boca do outro. O adestrador estava chateadíssimo, porque tinha perdido, não um animal de estimação, mas sua fonte de renda tão estimada. Equipe de volta, cada um na sua casa, panfletos distribuídos pela região de Pinheiros, e algumas semanas depois o resgate eficiente. Moral da história: mesmo drogado, com asas o papagaio voa.
Mas olha que desvio que eu fiz, justamente porque queria contar da cena fantástica de um bando de papagaios fujões, que falavam livremente as palavras repetidas por anos de confinamento, num ato rebelde e libertário. 

Simone de Paula - 31/8/2018

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O halterofilista

As ruas são o retrato vivo do que as redes sociais insistem em tentar expressar. 
Ontem mesmo eu andava de ônibus pela avenida bernardino de campos, aquela no comecinho da avenida paulista, e dei de cara com o 'halterofilista'. O cara não tinha nenhum tipo de constrangimento em fazer seu treino no meio da rua. Às suas costas, estava o ponto de ônibus, à frente, a banca de jornal. Ao lado, estava a família de moradores de rua com seu carrinho de supermercado lotado de cacarecos e mais adiante, o ponto de táxi. Margeado por duas vias por onde circulam carros, ônibus e milhares de pedestres todos os dias, ele ocupava o centro da rua, ou melhor, o centro do palco. Não tinha como não ver a sua performance. Roupa de ginástica, calção, camiseta, tênis, mas com o toque inusitado que chamava a atenção, o gorro a la 'onde está wally', completando o visual. Na mão, um haltere pesado que servia para o exercício de bíceps. No entanto, otimizando o tempo, ele aproveitava e a cada subida de braço vinha um agachamento completo. Ele não urrava nem fazia ruídos, mas seu gestual era tão expansivo que exercia um chamamento ao olhar de quem estivesse por ali. Não tinha foto, tinha cena. Não tinha barulho, tinha som.
Sorri, como sempre faço. Pensei, quero contar isso pra alguém. Ligar? Não. Escrever? Sim. Desenhar? Também.

Simone de Paula - 24/8/2018


quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Sem a noite não tem dia.

A beleza:

imperfeito
desigual
disforme
dolorido
irritante
raivoso
histérico
fedido
atordoante
inconveniente
desagradável
vergonhoso
destrutivo
encabulado
repetitivo

Somos.

Maria Laura C



sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Morri aos 27

Sou naturalmente nostálgica, ainda que tente viver entre o futuro e o presente, planejando e executando. Mas meus sonhos e devaneios insistem em relembrar.
Morri aos 27, juntei-me aos bons. De lá pra cá conservo o antes com carinho, orgulho, prazer, mas sem saber, mesmo que eu quisesse, reviver.
Nem sei mais ser aquela e ela existe em mim, na minha solidão.
Uns sofrem de pânico, choram, gritam e se apavoram.
Outros de depressão, ficam apáticos ou ansiosos, mas se resguardam do mundo, se fecham nos quartos escuros.
Tentei militar, cansei. Apostei no ritualizar, mas não acreditei. Tremi de pavor com o barulhinho ameaçador, mas passou. 
Afinal, se esse treco tivesse um nome, pelo menos eu podia transformar num personagem e falar alguma coisa disso. Mas não.
Fucei, pensei, olhei pra cima e pra baixo, direita e esquerda, e a turma da pnl nunca vai saber pra onde eu olhava quando decretei: sofro de solidão. 
Aqui pensando, até considerei que seria porque aquela lá morreu aos 27. Mas quem nasceu, eu, era também o que eu queria de mim. Então, não é solidão disso.
E veja bem, sofrer de solidão não é ser solitária. Mas é o quê?
Isso é novo, recente. Se está sendo inaugurado agora, ainda tem muito para ser dito. Hoje eu só precisava escrever isso. 


Simone de Paula - 17/8/2018


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Pastiche

O pastiche é a expressão do pós moderno. Fiz aula de Filosofia da Arte agorinha mesmo, mas posso me confundir, desentender conceitos. 
Se o outro disse e eu ouvi. Se durante tantos anos repeti. Se cantei, dancei e vivi, já sei que curti. Rima graciosa pra fazer o texto dar cambalhota e produzir mais sonoridade do que significância.
Lá no século passado, o coração apaixonado do Herbert Vianna. Puro amor, poesia, era coisa de jovem, sem muito requinte, mas quentinho. Ele tinha lá a versão da namoradinha dele, delicadamente romantizada. Sim, eu podia apelar para o Chico, mas fiquei Herbert. Simplifiquei.

Bora? Bora!

Eu quis dizer - Você não quis escutar
Isso tem acontecido muito desde que eu resolvi falar. “Eco, (minha musa atual) não há saída, né minha linda... “ só entrada.

Agora não peça, Não me faça promessas
Verdade seja dita, você não faz promessa nenhuma. Já fez e não cumpriu. Usa promessas como forma de retórica. Passou e eu ainda me apego nessa.

Eu não quero te ver - Nem quero acreditar - Que vai ser diferente -Que tudo mudou
Repetição, só repetição... é a imaginação querendo fazer a cena da realidade. Claro que aqui eu não posso deixar de usar a palavra de ordem: ‘agora inverte!’

Você diz não saber O que houve de errado e O meu erro foi crer Que estar ao seu lado bastaria
O que basta, acaba.

Ah meu Deus Era tudo o que eu queria
Verdade seja dita: era tudo que eu queria.

Eu dizia o seu nome Não me abandone jamais
Já somos órfãos-abandonados... melhor o exagero do Cazuza, do que essa possessividade eterna.  Me abandona, passa por cima, mas depois volta com a velha calça desbotada.

Mesmo querendo, Eu não vou me enganar
O problema é todo esse, não querer se enganar. Mas o inconsciente é poderoso e prova, seja pela denegação, seja pelo jogo de sentido da frase, não quero me enganar e delego a você a função: me engana que eu gosto.

Eu conheço seus passos, Eu vejo seus erros
Por que esperamos que vai ser diferente com a gente, né? 

Não há nada de novo Ainda somos iguais
Sim, a intimidade, ainda somos nós. Nossa, acho que eu devia citar outra figura da mpb brazuca, mas me escapou... a idade, o esquecimento... memória, história, o não apagamento do sofrimento. Tudo muda o tempo todo no mundo, mas o mundo só gira e tudo fica sempre igual. Mpb na ponta da língua de novo, mas longe das orelhas.

Então não me chame Não olhe pra trás
Sim, segue. Sigamos Weavers... o trocadilho infame que cabe nesse fim de tarde com a rádio cultura am.

Claro que tem refrão, né... 

Putz, enquanto eu escrevo isso, no meu ouvido a voz do locutor da alfa fm fica fazendo tradução simultânea da eterna Carly Simon e suas baladas românticas.. hahahha...lembra? 
Tudo isso é pra rir, ou pra chorar...

I love you...
Eu te amo, baby.. (imposta a voz e fala sussurrando)

ha ha ha

Simone de Paula - 10/8/18

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Pino

"Tentei" entender algumas vezes,
que você era um homem e só podia fazer o que podia fazer.

Mas eu tinha raiva e gritava, implorava para que fosse outro,
que contivesse meu desejo.

Não é que eu entenda agora, mas sinto/ sei o que era humano em ti.
E fizemos as pazes.

Não diga nada frente a um corpo morto, não diga nada.
Apenas respeite quem chora diante dele e perceba como é real.

Um mundo novo está diante da ausência.
Cada um re nasce a si, quando fica.

Maria Laura Cesar





sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Ainda vive em mim

A morte. O que deixa, o que leva. 
Deixou a mim, levou meu pai.
Deixou eterna presença esperada, ansiada, desejada. Levou o corpo belo, quente, presente.
Deixou uma promessa de mulher. Levou a menina estacionada naquela última dança.
Deixou um vazio. Levou a chance de fazer valer o lugar que ele ainda tem.
Deixou 'tanto tempo sem'. Levou 'tão cedo', quando quase estava de volta.
Deixou lembranças e esquecimentos da necessidade dele. Levou a possibilidade de ouvir de sua boca todas as respostas para as minhas perguntas.
Deixou a relação pai-menina. Levou a vivência pai-mulher.
Deixou a segurança de ter tido o melhor e único pai que quis. Levou a infantilidade da demanda ‘me dê papai’.
Dois pais tão próximos deixaram suas meninas nesses últimos dias. 
Um, amigo querido do meu próprio pai. Outro, pai da amiga-afilhada.
Choro, dor, saudade do que foi, do que poderia ter sido, de quando se transforma em nunca mais.
Pai, vale cada afeto, cada desejo, cada decepção. Só assim nos tornamos mulheres.


Simone de Paula - 03/8/2018

obs.: O que dizer sobre sincronicidade? Que isso existe, porque todo ano, muito perto do dia dos pais, eu ainda escrevo para ele, sem pensar, sem querer. É minha memória que se manifesta. Escrever e reescrever nas formas possíveis meus inscritos, meus mortos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Morte

Diante de um corpo. Ouvi seu último chamado, sua linha decisiva.
Disse: vai! Estarei aqui.

Uma vida entrelaçada a outra. Nós e embaraços. Contentamento em 4 filhos, 1 neta e toda a ternura/ tortura de um grande amor.

Serei teu e tu serás minha. Alma a alma.
Agora choramos e cremos no tempo. 
Diante de um corpo, seu corpo frio, abraço minha casa vazia. Confio nos mistérios, inícios e fins.

Tudo se recria.

Maria Laura Cesar.


sexta-feira, 27 de julho de 2018

Barco com asas

Eu olhava tranquila a paisagem, deixando meus olhos se fecharem diante da imperturbável beleza daquele lugar.
O balanço manso da água embalava o barco. Nenhuma corda o prendia ou remo permitia tirá-lo de lá.
O barulho molhado no casco se misturava com a brisa leve no mato. Nada parecia se agitar, só perambular.
Relaxei músculos, pensamentos e desejos, dormi profundamente na natureza viva que se estendia para mim.
Um sonho agitado me despertou. Tempestade, muito vento e chuva me faziam correr desesperada em busca de abrigo. Abri os olhos, afoita para me tranquilizar novamente. Olhei e não pude acreditar no que vi. 
Do casco velho do barco brotavam asas emplumadas, tão bem encaixadas como se lá tivessem nascido. A luz forte do sol forçava a poeira do ar a se mostrar. 
Aquele universo surreal não parecia se incomodar com a estranheza que eu sentia. Meu olhar via uma aberração, mas meu corpo estava tomado da emanação de uma força viva e positiva. Era um entre-mundos, uma fusão de níveis, numa sutileza ímpar. Tudo se passava num mundo paralelo, sem que a minha presença significasse nada. Não era um espetáculo para mim, mas um desejo daquela natureza se deformar, se transformar, criar. 
Acompanhei a metamorfose. Asas eram paridas nas laterais daquela pequena embarcação. O barulho intenso de madeira sendo quebrada, rompendo a superfície coesa, rachando sua solidez. A proa se esculpia em carranca, indicando que aquela calmaria iria mudar, que de lá, o barco iria zarpar. Na proa um chumaço de penas parecendo um enfeite, regulava o equilíbrio. Agora eu entendia a tempestade do meu sonho. 
O movimento seguia, se transformava agora em impulso. As asas começaram a bater, espirrando o rio em todas as direções. A nau se elevou ao céu. Partiu, seguiu. 
Imaginei algo sobrenatural, mas não senti isso. Era normal. Seria fácil dizer que foi sonho ou alucinação, mas não era nada disso. Uma quimera, sem dúvida, disso eu podia chamar, pois todas as partes eram verdadeiras, mas aquela nau era completamente falsa e só poderia me levar para o mundo da lua.


Simone de Paula - 27/7/2018