sexta-feira, 17 de abril de 2020

Cinzas

O que é melhor como conto do que nossos sonhos?
Tive um sonho essa semana e esse nem foi fragmento, foi uma narrativa completa. 
Roteiro, personagens (com seus atores perfeitos para o papel), direção, direção de arte e fotografia, e é claro, produção, para tudo funcionar direitinho. Sempre tem produção, mesmo que ninguém se lembre disso. Teve fala e silêncio, preto & branco e colorido,  travelling, edição e até trilha sonora, que na verdade era composta das vozes dos personagens e do forte barulho do vento, mas som ambiente não tinha. 
Fiz algo incomum, levantei para anotar. Depois, deitei novamente e pensei em interpretar. Deslizei por entre filmes e ideias e perdi o gosto pelo exercício, porque era uma tentativa de acabar com a poética do sonho. Ele era só pra ser contado, assim como sonhado, sem necessidade nenhuma de ir além disso, muito menos decifrar os tais pensamentos inconscientes.
Foi mais ou menos assim:
Uma pedra deslizava pelo mar. Eu estava deitada sobre meu quadril, apoiando o rosto na mão. Ele estava sentado atrás de mim, apoiado sobre os cotovelos. Pedra cinza, céu nublado,  mar grafite. Nada tinha cor, mas tinha a beleza da monocromia entre o branco e o preto. Quanto mais baixo, mais obscuro, quanto mais elevado, mais suave. O ar claro, a água escura. Entre eles, a pedra cinzenta, mesclando o lá e o cá. 
Enquanto conversávamos, a pedra deslizava pelo mar, seguia o fluxo. Devia existir alguma corrente marítima além da brisa. O dia pedia uma garoa, mas não chovia. Navegavam. 
Eu falava, dizia coisas que nem sei dizer o que era. Um sem fim de pensamentos projetados pela voz aguda e melodiosa. Ele ouvia, atento, mas apreciando aquele cenário natural. Quando desejou, me perguntou algo, interrompendo o fluxo de pensamentos tagarela, que é tão comum em mim. Não entendi: o vento soprava forte, tinha uma distância entre nós e o tom baixo e grave da voz dele, tudo me impedia de saber exatamente o que ele perguntou. Ele repetiu, eu não ouvi, desistimos. Isso me levou a olhar melhor a tal paisagem, os olhos calaram os pensamentos e o silêncio se instalou. 
Um tempo se deu. Muito? Pouco? Não se sabe. Resolvi olhar para o lado, vê-lo. Mas ele já não estava mais lá. Nem ele, nem a parte da pedra onde ele estava sentado. Pensei que ele me convidou para estar ali, ele devia saber para onde seguíamos. Mesmo não estando mais presente, a pedra seguia e eu não senti nenhuma espécie de ansiedade. Aproveitei e permaneci admirando aquilo tudo, sentindo a brisa fria e a impressão imparcial da água. De repente a pedra colidiu com outra pedra. Resolvi parar por ali, descer da pedra e esperar pela chegada dele. Era uma pedra firme, fixa, ligada a outras pedras. Dali vi outra pedra grande e poucas pessoas sentadas, esperando. Eu em pé, na pedra firme, segurando a pedra solta, em que eu naveguei. Olhei para o mar e vi uma pedra grande, essa também deslizava. 
Ri. Tudo era muito curioso, as pedras eram embarcações e as pessoas andavam pela água, subiam e desciam e não parecia que o mar fosse um impedimento para embarcarem. Nessa hora percebi que ele estava lá, ao lado das pessoas que esperam, sentado, olhando apreensivo. À espera também, mas de mim. Soltei a pedra, que agora tinha uma gramínea verde intenso em seu topo. Fui até ele. Ele me olhou e seu rosto refletiu alívio, mas não disse nada.Pensei: ele é assim. Saímos juntos pela pedra firme.
Depois de contar esse sonho, ele me perguntou afirmativamente, "a jangada de pedra, do Saramago"?
Levantei hoje cedo e peguei o livro, deve ter algo a mais ali. E, com certeza vai manter a magia da poesia das imagens do sonho, sem necessidade nenhuma de interpretação.

Simone de Paula - 17/04/2020







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