sexta-feira, 27 de julho de 2018

Barco com asas

Eu olhava tranquila a paisagem, deixando meus olhos se fecharem diante da imperturbável beleza daquele lugar.
O balanço manso da água embalava o barco. Nenhuma corda o prendia ou remo permitia tirá-lo de lá.
O barulho molhado no casco se misturava com a brisa leve no mato. Nada parecia se agitar, só perambular.
Relaxei músculos, pensamentos e desejos, dormi profundamente na natureza viva que se estendia para mim.
Um sonho agitado me despertou. Tempestade, muito vento e chuva me faziam correr desesperada em busca de abrigo. Abri os olhos, afoita para me tranquilizar novamente. Olhei e não pude acreditar no que vi. 
Do casco velho do barco brotavam asas emplumadas, tão bem encaixadas como se lá tivessem nascido. A luz forte do sol forçava a poeira do ar a se mostrar. 
Aquele universo surreal não parecia se incomodar com a estranheza que eu sentia. Meu olhar via uma aberração, mas meu corpo estava tomado da emanação de uma força viva e positiva. Era um entre-mundos, uma fusão de níveis, numa sutileza ímpar. Tudo se passava num mundo paralelo, sem que a minha presença significasse nada. Não era um espetáculo para mim, mas um desejo daquela natureza se deformar, se transformar, criar. 
Acompanhei a metamorfose. Asas eram paridas nas laterais daquela pequena embarcação. O barulho intenso de madeira sendo quebrada, rompendo a superfície coesa, rachando sua solidez. A proa se esculpia em carranca, indicando que aquela calmaria iria mudar, que de lá, o barco iria zarpar. Na proa um chumaço de penas parecendo um enfeite, regulava o equilíbrio. Agora eu entendia a tempestade do meu sonho. 
O movimento seguia, se transformava agora em impulso. As asas começaram a bater, espirrando o rio em todas as direções. A nau se elevou ao céu. Partiu, seguiu. 
Imaginei algo sobrenatural, mas não senti isso. Era normal. Seria fácil dizer que foi sonho ou alucinação, mas não era nada disso. Uma quimera, sem dúvida, disso eu podia chamar, pois todas as partes eram verdadeiras, mas aquela nau era completamente falsa e só poderia me levar para o mundo da lua.


Simone de Paula - 27/7/2018

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Brisa

te conto uma saudade, não tarde.
sei dos seus abraços, meu corpo.
a família dividiu os grãos; e um chocolate.

ardo
fecho os olhos
não conhecia nada que era isso

e agora, agora vento em cada passo.

Maria Laura, SP.


sexta-feira, 20 de julho de 2018

Foi por ai

Por muito tempo as palavras brotavam sem pedir licença. Escapavam da minha boca e eram admiradas pelos meus próprios ouvidos, como se nunca tivessem sido pensadas por mim. Não nego que saiam incertas. Trafegavam nas rotas abertas em busca de quem (era certo pra mim) existia.
Sua chegada foi só corpo, buscando qualquer coisa que pudesse conter o furor dos movimentos. Foi estranho, porque se minhas palavras eram errantes, seu corpo era delirante. 
Resolvi brincar com a incompatibilidade, musicando com palavras os gestos bailados dos seus movimentos. Foi uma peça longa, cheia de atos e desatos, conexão e quebra.
Te ensinei palavras, você me ensinou corpo. Te devolvi carne e você me entregou segredos. 
Me ligou. Uma fenda se abriu. Não consigo mais só palavras, tenho corpo. 


Simone de Paula - 20/7/18

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Destruição


Um poço de lodo transbordando toda sorte de reminiscências de uma vida mal vivida.
O desejo do fim grita, mas o destino insiste em não atender o suplício de uma alma desesperada.
Por que tanto capricho se o fim chegará de qualquer forma?
Se entregou ao bel-prazer dos desprazeres da realidade, insistindo em fazê-los diversões.
Fracassa, mas não pode assumir esse erro.
Tenta controlar a verdade que reina esplêndida diante dos seus olhos, eliminando tudo aquilo que poderia provocar um despertar.
Não reconhece em si a potência da criação, convertendo-a em destruição.
Refuta o bom, belo, justo e amoroso que suporta os desvios, o sombrio de sua mente.
Recusa a mão, o braço e o abraço do corpo magnético que se oferece para fazer girar essa roleta e deixar a sorte mostrar outro espaço a ocupar.
O colo perdido, nunca substituído, se transformou num barril de pólvora pronto para explodir.  E antes que seja lançado para o espaço, manda tudo pelos ares, conquistando a única vida que lhe pertence, aquela excluída do centro do mundo.

Simone de Paula – 13/07/2018


quinta-feira, 12 de julho de 2018

Inverno

Ele disse que queria mudar,
iria em busca.

Onde?

Um caminho que o trouxesse fé,
mas não tinha.

Acabou?

Seus limites se diluíram,
foi inundado do não crer.

Então?

Permaneça nos pântanos e observe as perguntas,
apenas esteja.

Presente.

Maria Laura, 12 de julho, São Paulo, frio.

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Foi hoje o dia.

Ele acordou cedinho, ainda era noite no céu. Tomou banho, porque apesar do frio, suava muito de nervoso e ansiedade. Tudo tinha que dar certo, mas sentia que podia dar muito errado. Não estaria sozinho, mas era cada um por si e deus por todos. Essa era a primeira oportunidade que tinha na vida. Se fizesse bem, podia subir de posto e ganhar muita grana. 
O ‘batismo’ tinha sido um mês antes, e ele mandou bem. Agora era pra valer. 
Entrou na van que o esperava na esquina. Olhou no rosto de cada um que já estava dentro do carro. Rodaram mais meia hora, entraram mais duas pessoas. Chegando no centro, a moça desceu e eles ficaram em quatro rapazes, mais o motorista. Foram para um bairro residencial. Ele rezava, porque isso ajudava a acalmar. Tinha sido criado na igreja e contava com deus a seu lado.
O motorista parou e desceram. Se olharam e cada um seguiu numa direção. Ele se benzeu, arrumou a mochila, colocou o fone no ouvido e as mãos no bolso, apertou o passo e seguiu. Olhava brevemente as pessoas na rua, não fazia contato visual, nem olhava muito demoradamente para nada nem ninguém. Viu na frente dele uma moça bem nova, jeito de estudante, bolsa de lado e livros nas mãos. Apertou o passo, chegou junto. Falou baixinho pra ela passar a grana. Ela virou o rosto para ele, arregalou os olhos e ele levou um susto. Ficou na dúvida se era ela ou ele, porque tinha jeito de menina, mas também barba rala e rosto de homem. Na mesma hora, perdido diante da androginia que via e aturdido com a ereção que acabava de sentir, se perdeu no próprio corpo. Desarmou as defesas e levou um soco na cara. Se desequilibrou e caiu com tudo no chão. Virou o rosto para olhar de novo aquela figura que o impressionava. Ganhou um olhar da raiva e desdém que fizeram seu corpo estremecer de desejo. Sua cabeça girava. Náusea, tontura, zumbido no ouvido. O vômito imperioso o fiz voltar a si. Procurou, mas tinha perdido seu alvo. 
Precisava continuar. Levantou e viu que alguns transeuntes se agitavam à sua volta. 
Ele saiu para outra direção até sentir que tinha despistado os curiosos. O corpo doía e ele estava muito frágil. O tempo passava e ele não conseguia achar outro alvo. Foi elevando novamente suas defesas. Força e raiva se misturavam, mas quando fechava os olhos, lembrava do olhar que viu, o desejo que sentiu e a surpresa que tinha virado insegurança. Parecia negar algo dentro de si, mas ainda não entendia o que. De inseguro a raivoso, foi um passo. Estava com medo de não conseguir nenhum pertence naquele dia. Fracassar logo de cara, nem pensar. Ia ter que explicar o que aconteceu e tinha vergonha. Olhava muito para o chão, parecia querer se esconder, mas não podia, porque o tempo passava e ele tinha uma missão. 
Saiu das ruas mais movimentadas. Se sentia reconhecido por qualquer estranho que estivesse na sua frente. Se benzeu, rezou, seguiu pela viela com determinação. Viu na sua frente mais uma menina, mesmo jeito de universitária. Mochila nas costas e uma garrafinha de água na mão. Apertou o passo. Raiva nos olhos, vingança nas mãos. A atacou. Não queria carteira ou celular, queria sua macheza de volta. Ela, pega de surpresa, nem soube como se defender. Ele a estuprou com o desejo que sentira algum tempo antes. Arrancou a mochila das mãos dela e saiu correndo. Sentia alívio, agora tinha de novo sua sanidade. Sorria e fingia não notar a culpa que o acompanhava como uma sombra tenebrosa. Olhou no relógio, era hora de voltar. Entrou na van e mostrou a mochila. Lá dentro nada de grande valor para ele, mas a alma estava lavada. Se benzeu novamente, agradecendo a deus que tudo tinha dado certo. Fechou os olhos e descansou no banco, esperando chegar em casa logo. Por traz das suas pálpebras, o olhar que recebeu naquela manhã jamais seria esquecido, e nos pensamentos, a decepção por ter cometido o pior ato. Foi marcado para sempre, num único dia, com o maior desejo e a pior culpa de sua vida. 


Simone de Paula - 05/07/2018

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Somos muitos

Um homem revia a si mesmo em toda a vida, mas aos poucos. O trabalho era exaustivo, não acreditava. O sentido se perdeu. Esse cansaço não se repara facilmente. Em volta, a família o solicitava, mas sobrava pouco dele mesmo para qualquer outro. O cachorro o temia, assim como se teme um homem cujo o único recurso para sua raiva seria ataca-lo. O antigo modelo caia, o corpo procurava outras formas. A dor. Uma cabeça latejante. A emoção em dívida com o espaço de existir. Passo a passo. Existia uma verdade, mas não vivia uma verdade. Era outra. Não pode ficar, mas o medo de ir, o medo de ir.

Se deu conta de que a responsabilidade de ser o que era, era dele, somente. 
E seguiu amando.

Maria Laura.