sexta-feira, 28 de junho de 2019

O protagonista esquecido

História a gente conta porque já passou.
Fico ruminando o futuro, planejando passo a passo daquilo que serei amanhã.
Por trás de mim, há esse outro que sopra baixinho, ao pé do ouvido, o que eu devo imaginar. 
Que serei eu quando fizer isso que ele me induz a pensar que devo fazer?
Protagonista eu? Só se for no aqui e agora do pensamento, porque amanhã, não tem nada além do relato do ontem feito pelo coadjuvante que parece ter visto tudo, mas não viveu nada.
Essa história já foi dos pais, avós, bisavós e tataravós. E eu ainda quero fazer de novo, igual, repetidinha? Pra quê? Pra quem? Pra saber o final?
Se fico contando essa história, nem coadjuvante sou, sou mesmo narrador. 
Quisera eu ser autor. Fazer diferente, mesmo que usando partes iguais. 
Na reorganização das cenas, dos pedaços, sempre sobra aquela pecinha que não encaixou em nenhum lugar e nem faltou no todo completo.
Protagonista eu seria, se tivesse que fazer alguma coisa com isso que ficou de fora, materializado, sobrando, esperando um destino.
Foi bom o tempo que os deuses, ou o dramaturgo, inventavam uma boa história para o pedacinho esquecido na montagem do todo. 
Sozinho no palco, eu e aquele extra, só me resta assumir meu corpo e viver uma cena inédita, sem pistas de como termina. 
Tudo isso só pra lembrar que eu estava esquecido.

Simone de Paula - 28/6/2019


sexta-feira, 21 de junho de 2019

Você

Você viu... vou te contar...
Essa gente com quem você anda.... esses seus amigos...

Você viu... que eu amo... vou te contar... sonho, imagino, penso o que não posso falar...
Essa gente com quem você anda.... que eu queria poder também estar... esses seus amigos... que estão com você em qualquer lugar...

Simone de Paula - 21/06/2019

quinta-feira, 20 de junho de 2019

(en) cara

A resposta que me deu foi a que não pude ouvir de mim.
Por que?
Era cruel demais para sair,
ficava dentro consumindo células.



sexta-feira, 14 de junho de 2019

Contar

Contar, seja com números ou letras. Somar, narrar, daí tudo muda?
Conto quase tudo para alguém, pensando narrar uma história, um fato, um episódio importante. Coloco muitos elementos acreditando adicionar todos os detalhes fundamentais para tornar valioso o relato.
Sou ouvida como uma caixa registradora, mostrando quantas notas e moedas foram empilhadas para dar conta da féria do dia.
O que tem valor pra mim, tem valor para o outro? Sim, mas deslocados de posição aquilo que imagino falar e o que de fato se ouve podem ser próximos, mas sob pontos de vista, menos óbvios.
Tudo é uma questão do enfoque que se dá.
Imaginar é bom! Com elementos, se imagina mais ou menos do que sem nenhum ponto de partida?
Quanto se conta os contos de réis? Essa já foi a nossa moeda, contos de réis. Nosso dinheiro.
Tira um detalhe ali, muda de cenário e ficamos com os contos de Reis. Nuance na escrita, acentuo na pronúncia e a coisa não apenas muda de figura como revela o que estava quase esquecido quando disfarçado no uso comum.
Se um dia eu chegar fazendo contas, te dando conta dos meus números, me ouça como uma contadora de histórias.

Simone de Paula - 14/06/2019


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Júnior

Entre o pai elegante e os brinquedos bem cuidados, o destino de Júnior parecia estar traçado. 
Mães e tias olhavam orgulhosas para o menino bem educado e obediente. Na escola também sabia cumprir bem os deveres que lhe eram passados. Mas o sentido da vida não segue a rota da moral de seu tempo. Aliás, o destino, esse pregador de peças, faz a moral rolar morro abaixo.
Chegou a adolescência e Júnior, que era o foco principal dos pais, deixou de ter importância que tinha. Agora, ele não dava nem trabalho e nem preocupação. O vazio da vida pré-fabricada dos adultos produzia silêncios desconcertados entre aqueles três membros da família bem ajustada. Conversas brandas vinham do pai comentando alguma nova promoção no trabalho. Da mãe, o assunto era as novas aquisições de vizinhos e parentes. Júnior ouvia aquela conversa e comentava alguma coisa do seu universo de jovem,  se enquadrando nos temas definidos pelos pais, localizado na sua rotina de estudante.
Alguém ali tinha que romper com isso. Quebrar pratos, bater portas, dar um berro. Mas ninguém fazia. 
Júnior, de fato, parecia ter o lugar do prometido para o sucesso. Mas olhando bem de pertinho, ele servia apenas para atrair olhares admirados aos pais. E ele sentia isso. Não sabia como dizer, mas tinha um estranhamento de ser alguém sem ser. Pensamentos surgiam nesse sentido, mas embaralhados com os sentimentos de deslocamento no seu próprio lar. 
Numa tarde de sábado, a mãe pediu que ele a ajudasse a mudar coisas de lugar. Ele  gostava desse movimento de bagunçar tudo e depois arrumar. Animado, falava com a mãe e dava dicas. Ela nem o ouvia, mas dizia docemente: “meu anjo, acho que isso não é funcional.” E recusou todas, exatamente todas as falas dele. 
Com 15 anos, ele não era mais nem anjo e nem inocente como imaginavam. Ele sabia quando sua opinião era considerada e quando nem era percebida. Queria pelo menos um momento de atenção. Não pensava exatamente como faria isso, só notou de fato essa intenção, depois do ocorrido. No transporte do espelho, que os pais ganharam no casamento, da avó da mãe, que o ato se precipitou. Era uma velharia cheia de importância, mas em realidade, era apenas um cacareco muito brega. A mãe caminhava de costas, ele de frente. Moviam o objeto de um canto da sala para outro. Uma dobra no tapete fez com que ele tropeçasse e fosse junto com o espelho para o chão. Cacos por todo lado, alguns machucados leves no rosto e nas mãos, e o presente da vovó espatifado. A mãe soltou um grito desesperado e socorreu o espelho. Olhou para Júnior com o olhar de ódio que ele sentira inúmeras vezes, mas nunca tinha interpretado assim. 
Ele levantou e foi buscar vassoura e pá para limpar a sujeira. A mãe imediatamente teve uma enxaqueca e se trancou no quarto. Limpando, ele lembrou das frequentes enxaquecas. Sim, a mãe odeia muito, mas se esconde do sentimento ruim. 
Ele não sabia o que fazer. Era um misto de culpa com êxito que abarcavam seu ser. Diante do pai, naquela noite, não sabia porque era tratado como alguém que cometeu um delito grave. Mas só, se via em posição de defesa, justificando e repassando o ocorrido. Depois de não acharem mais culpados, além do tapete, para que ninguém sofresse punição, o pai conclui o caso da forma mais definitiva que pode: “espero que a gente não tenha 7 anos de azar.” Falou e disse, os sete anos seguintes viveram sob um turbilhão de emoções. As cosias não pareciam mais tão bem arrumadas. A imagem perfeita agora não escondia as verdades que ocupavam aquelas vidas. Nem era nada grave, pelo contrário, eram desencontros entre o que foi bem projetado e mal executado, de acordo com a imagem bem alimentada  que exibiram durante anos. 
Júnior não entrou na faculdade logo que saiu do colégio, como imaginavam pelas notas do garoto. Tentou, mas não deu pra atingir a nota. Não ficou nem na lista de espera. Se decepcionou consigo mesmo. Também não conseguiu formar um grupo de amigos com quem pudesse sair, se divertir, conversar. Se via ainda grudado ao amigo de infância, tão obediente quanto ele, mas que não tinha nem mais papo. Continuava com o misto de sentimentos do dia do espelho, culpa e êxito. Anos passaram e ele era comandado por isso. Tentou entrar no grupo de jovens da igreja, mas nem isso dava perdão para ele. Um diabinho falava ao pé do ouvido, diariamente, "fuja, já!" 
Um dia, ele obedeceu. Mas como o Júnior que era, comunicou que iria fazer uma viagem para conhecer o Brasil. A natureza, a cultura, saber mais do seu país. Os pais ficaram levemente incomodados. Para quê ele precisava sair do grande centro em que viviam? E mais, por que não estava estudando para a bendita faculdade que era adiada a cada ano para o seguinte? Mas, como o dinheiro tinha sido presente do tio, irmão do meio do pai, não puderam opinar. 
Ele arrumou a mala e partiu. Viu vidas, percebeu a sua vida. Não tinha muito o que contar, mas ouviu histórias sem fim. Notou que as pessoas se preocupavam muito com imagens, espelhos, fotos, bom acabamento de casa e carros. Achava curioso ver que se lavava carro em dia de chuva e calçada para o cachorro cagar logo depois. Ria quando notava as mulheres se arrumando no espelho dos carros, passando batom mesmo sem ver direito a boca. Mas ele mesmo, nem se olhava, nem se via.
Resolveu brincar de Narciso, olhar seu reflexo na beira da água. Fez isso. Se reconheceu, mas nem sabia direito o que aquele rosto significava no mundo. Era familiar, mas ao mesmo tempo, não dizia nada, só sabia que era ele. 
Quis fazer um experimento, era a situação ideal, pois ninguém o conhecia. Perguntava para estranhos o que achavam dele. Recebeu muitas opiniões. Ora falavam sobre como achavam que ele chamava e o que fazia da vida. Outros iam mais fundo e descreviam a personalidade que imaginavam para ele. Pedia também que fizessem fotos, que o registrassem de formas inusitadas. Só queria ser visto, lido, definido, para sair daquela múmia em que tinha se transformado para ficar perfeito diante do cacareco da vovó.
Voltou pra casa com duas resoluções, estudaria antropologia e assumiria o mais inusitado do que tinha sido dito dele. Comprou peças de roupa que ele nem imaginava vestir antes de ter saído de casa. Frequentou lugares diferentes, que nem sabia que existiam na cidade que ele nasceu. Se chamava de nomes diferentes cada vez que se apresentava para um estranho e o nome correspondia com uma personalidade também escolhida.
Foi se definindo, se assumindo, se montando. O ponto final foi o nome. Pegou o registro de identidade e leu em voz alta o próprio nome: Hélio. Largou o Júnior para trás. Era a criança. Agora, seu tempo de adulto era outro. Ascendeu no céu, brilho para o mundo. 
Nasce novamente a cada dia.

Simone de Paula - 07/06/2019