sexta-feira, 29 de março de 2019

Tudo passa

Vai passar?
Vai passar...
Vai passar.
Passou!

“Não há mal que não acabe
E
Nem bem que só perdure”

“E tudo passa, tudo passará....
E nada fica, nada ficará...”
(esse refrão é tão potente que nem lembro o resto da música)

E falando em música...
“Vai passar, nessa avenida um samba popular....”

Pronto, passou! 
Pra todos vocês aflitos com mercúrio retrógrado no céu, saibam, ele voltou ao movimento direto.
É incrível, mas ouvi todos os dias algo sobre isso nesse período de retrogradação do planeta no céu. E olha que ninguém que me falou disso era astrólogo. Foi um tal de jogar a culpa no raio do Mercúrio. 
Mercúrio passante, passista da avenida chamada via-lactea. Brilhando no céu, encenando a maravilha da velocidade e da constância. Experimente andar para frente e para trás. Brinque um pouco com o corpo, coreografe-se. Desafie as leis da rota pré-comcebida. Pare de andar pra frente. Vira, volta, faça outra vez. Sai da toca, larga a mira, se perde no mundo, deixa Mercúrio retrógrado ou direto te fazer errar. E não pelo erro, mas pela angústia de fazer de novo e de novo, até se encontrar no seu ato.

Hoje é sexta, dia de Conto porque conta, e eu passei por aqui.

Simone de Paula - 29/03/2019

quinta-feira, 28 de março de 2019

Leitura

Sabe quando você acreditou que não tinha valor, voz, saída?
Um quase nada de migalha no chão.
Você quase acreditou.

Agora te acolhe em teus próprios (a) braços.

Maria Laura Cesar






sexta-feira, 22 de março de 2019

Falta de quê?

A voz soa clara por trás da porta da sala: "não é falta de saudade, é falta de tempo, meu bem..."
A maquininha de pensar foi ativada com a interrogação que não me deixava parar de processar aquelas palavras. Primeiro com a dúvida: 'Será?'. Depois com a reorganização da frase, em busca de sentidos múltiplos que pudessem me revelar mais do que o que estava dito ali.
Aquela voz não faz resumir, mas multiplicar, proliferar, exagerar. E assim incessante pelo poder da linguagem. O estímulo vem do pensar ou do falar? O que eu queria mesmo era saber, é namoro ou amizade? Com quem fala a voz, com o amante ou a amada?

Simone de Paula - 22/03/2018

quinta-feira, 21 de março de 2019

Acupuntura

- Vai doer?
- Provável que sim, mas não muito. Só quando precisa.
- Mas quando precisa?
- Quando você não vê, maltrata, agride, fere, boicota.

Respiração profunda e olhar compenetrado.

- Já vamos começar assim tão rápido? Não estamos nem a duas horas aqui! Será que você tem todos os elementos que precisa? As informações? Digo, não é melhor pensar um pouco, elaborar um sistema e começar outro dia? Eu tenho horário na quin....
- Vamos suba, tire os sapatos, deite para cima, me conte seu dia. Está tudo bem. Sorri calma.

Primera agulha.
Estrategicamente quase não se sente.

- Eu dormi mal sabe, acordei muito na noite, de manhã caindo de sono, caindo da cama, tropecei, pé doendo, tudo inchado. Sonhei muito, tinha um monte de gente. Onda, família, carro. Comi o de sempre, farinha, gordura, tudo quentinho, com geléia de figo que minha amiga me deu lá da Argélia. Ela estuda literatura lá. Loucura. Queria comer fruta e aveia, mas...

Aaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!

Inspira, expira, inspira, expira. Morde.
Olha para o quadro na parede com rim desenhado no dedão, fígado na orelha, animais voando pelo céu, uma onda Chagall. China. Shaimum.
Inspira, expira, inspira, expira.

- Pronto. Pode descer.
- Sério?

Ri acolhedora. Espere amanhã, ela diz, você vai melhorar. Estamos cuidando de você.
Confiei. Sim, sim, sim.
Estou vendo.

Maria Laura Cesar







sexta-feira, 15 de março de 2019

Na ponta dos pés

Segui os passos como o combinado.Cheguei e toquei a campainha. O porteiro me fez a pergunta esperada, pedindo para eu me identificar. Usei o código formal, nome e destino. Ele conferiu as informações e me deixou entrar. Ele nunca tinha me visto ali, mas ainda assim me perguntou: você sabe onde é? Respondi que não, afinal, era um momento inaugural. As coordenadas: segue aqui, entra na porta à esquerda e pega o primeiro elevador à direita. No hall, seguindo as instruções, subi ansiosa para o nono andar. Olhei as portas, conferi o número e toquei a campainha. A porta se abriu e um sorriso convidativo me chamou a entrar. Mas as palavras foram: te esperava na outra porta, você entrou pelos fundos. Caminhei pelo apartamento, passando pela cozinha. Os pés tentavam levitar um pouco para não amassar o chão. Estranho. Por que eu parecia querer evitar a gravidade para não marcar aquele lugar? Entrei na sala e um tapete branco, volumoso, esperava pelos meus pés. O convite para que eu sentasse exigia atravessar aquela cobertura imaculada no chão. Pisei,. Meus pés afundaram, senti quase um arrepio. Não era a sensação gostosa, macia, do pêlo delicado da tapeçaria, mas a certeza de que eu trazia sujeira. Estava de sapatos, vinha da rua, restos do asfalto e lixo compartilhado na grande cidade. Engoli corajosa aquela contrariedade que habitava meu peito. Sim, eu marcava o tapete com meus pés. Se a sola estava suja, não era isso que aparecia ali, mas a força da gravidade, a intensidade da materialidade do peso do meu corpo sobre uma superfície plana. Sentei na beira do sofá. O couro áspero se fez sentir sob as palmas da minha mão. Me acomodei mais um pouco, apoiando meu quadril no encosto. Mais uma vez as mãos acariciaram o tecido do sofá, que tinha textura e frieza. Apoiei minhas costas, relaxei ombros e cabeça. Meu corpo não suja o sofá, minhas mãos não marcam o assento, mas porque meus pés marcariam tão definitivamente o chão? Me perdia nesses pensamentos enquanto tentava manter a conversa com minha anfitriã. Ela perguntava e eu respondia, comentava, mas dentro de mim outra falava, sentia, julgava. Quis me livrar de estar vivendo aquilo ali, não pelo ali, mas pelo aquilo. Não tinha como voltar, agora era hora de seguir em frente. Recebi mais uma instrução: tire os sapatos, siga para a sala à direita, ali no corredor. Cheguei lá depois de uma breve parada no banheiro, como forma de interromper a angústia dos pés sujos, agora descalços, limpos, mas ainda pesados. Pés pesados, que curioso isso, nunca tinha colocado a coisa assim, lado a lado. Mais um comando: sente, vou te conhecer. Com gestos silenciosos, o reconhecimento dos corpos se fez. Ela não me disse o que meu corpo é em mim. Mas, depois de um longo tempo, intervenções inesperadas, pensamentos atravessados pelo grande movimento de ar produzido pela respiração, alguma coisa pude conhecer de mim no meu corpo que antes eu nem tinha ideia. Saí de lá sem pensar nos pés. Calcei os sapatos, levantei, caminhei. Quando pisei novamente na calçada, o resto de água da chuva, no asfalto sujo de fuligem, me garantiram que sob a sola dos meus sapatos, há muito mais marcas do que eu imagino.

Simone de Paula - 15/03/2019

quinta-feira, 14 de março de 2019

Saída

Eu pensei em mim, mas era o outro.
A chuva atrapalhava o trânsito, mas o outro, o outro, morria a vida na tempestade.
Eu achava que a dor não era minha, era do outro.
Namorou apaixonada, trabalhou apaixonada, seguiu o próprio caminho apaixonada. Espancada. Espancamento meu mundo turvo. Sufoco.
Eu pensei que não ia chorar a dor do outro. Lágrima a lágrima, corre.
Presos, torturados, mortos, sequestrados, humilhados, dilacerados, a dor do caminho. A dor. A dor espalhada. Constituída. Cada poro de grito aberto.

O abraço. A abraço.
O ar está poluído, inspiro forte, pra cima, puxando céu.
Ar, ar, ar.
Armar. Des armar.

Amar, amor.

Maria Laura, São Paulo, Brasil.


sexta-feira, 8 de março de 2019

Intimidades

Um café, uma água e o papo prosaico.
Também pode ter empanadas e bolo, suco azedo e risada.
Conversa fluída, entrecortada, animada.
Fiquei pensando: pra mim, animação tem intensidade e fogo, mas não beira à agressividade.
E pra você? Será que também?
Nos detalhes vemos as sutilezas das difrenças. Na conversa aberta, franca, podemos compartilhar muito mais do que fatos, sentimentos e intenções, presenças e ausências. Forças, fraquezas e fragilidades.
O mundo das mulheres exige muito mais atenção e decifração do que uma conclusão rápida do ambiente. Nada é certo, definido ou conclusivo, está sempre aberto a novas considerações, novos arranjos.
Tudo está nas teias, nos traçados, nos nem sempre ditos. Na intimidade.
Vivi e vivo entre muitas mulheres. Engolir diferenças tal como se engole comida. Perceber detalhes como ingredientes. Esperar o tempo certo para ficar pronto.
As mulheres se reunem para muito mais. E mais, e mais, e mais.

Simone de Paula - 08/03/2019

quinta-feira, 7 de março de 2019

Chão

Onde dói?
O pé.
Onde?
Em cima, subindo, depois embaixo, descendo. Aí para e volta de novo. Aí fica, sobe, estica e contorce.
Qual a pior hora?
Quando acordo.
Os primeiros passos são os mais difíceis. Continue.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Restos

Estela voltou ao trabalho. O pentelho ainda estava gravado na pálpebra fechada, impedindo que ela se concentrasse em qualquer outra coisa. Queria o dono daquele pêlo. 
Percebia em si uma coisa que não fazia sentido, nunca tinha sido assim, ligada nisso. Pêlos, secreções, odores, isso era tão dessexualizado pra ela. Seja pela profissão ou pela repressão. Sempre lhe pareceu que o que a interessava era um cara bonito, com um papo bom, uma cantada decente. Mas o corpo em si?'? Ouviu de cientistas que a coisa funcionava desse jeito. Mas ela não tinha sido pega, pelo menos consciente, por aí.
Decidiu abrir o aplicativo, precisava apagar aquela imagem. Sexo seria uma boa tática. Deu match com um cara. Saíram, tomaram uns drinks, foram para a casa dela, transaram. Ela admirava aquele corpo, como uma especialista. O cara adorou estar ali, avaliado pedaço por pedaço. Mas a intenção era ver se o que ele tinha combinava com ela. Mesmo não sendo um cara já conhecido, estava investigando se era qualquer pêlo ou apenas aquele lá. Ela parecia o príncipe da Cinderela, procurando o pêlo que encaixava no saco certo. 
O sexo foi bom, porque até sexo ruim é bom se você sabe o que fazer ali. Então, valeu a noite. Mas para sua pesquisa, não funcionou, precisava ir atrás do dono daquele artefato poderoso. 
Ela não tinha mais o pentelho em mãos, só lembrava da imagem, mas resolveu reencontrar as últimas transas. Pensou nos nomes, nos rostos, qual deles tinha potencial de poder ser o cara certo. Não, isso não funcionou. Resolveu transar todo dia ou noite, recapitular os encontros. Alguns acharam estranho ela reaparecer. Outros estavam comprometidos e não podiam vê-la. Nem toda pesquisa funciona de forma controlada e do jeito que se quer. Duas semanas de encontros e sexo e nada do peludo gostoso. Chamou uns amigos para desencanar um pouco da fixação, pois ela mesma não aguentava estar tão limitada por aquela história. A turma dela era pequena, 3 amigos que geralmente se encontravam para reclamar da vida. Cada um levava bebida, ela providenciava comida. Ligavam a tv em algum filme ou seriado, menos para assistirem e mais para ter algo ali, de fundo, que pudesse ser olhado quando o papo acabava. João e Marcelo vieram juntos e já foram colocando bebidas na geladeira e as mochilas no quarto. Eram 'de casa'. Marina chegou apressada, como sempre. 
Estela tinha decidido fazer algo diferente, porque precisava desviar a mente. Fez jantar ao invés de petiscos comprados. Mesa posta, entrada, prato, sobremesa. Tinha caprichado. Durante o jantar conversaram, riram, ela pensou se contaria ou não para eles sobre a sua nova paranóia, mas não achou um espaço. Nem ligaram a tv, apenas a música continuou tocando. Se jogaram no sofá e o papo foi dando lugar ao sono. 
Acordaram amassados, sem pressa de irem embora, era sábado e ninguém trabalhava. Cada um foi se encarregando de arrumar a louça da noite anterior e preparar o café-da-manhã. Pareciam irmãos ou colegas de casa. 
Depois do café, foram todos embora e Estela foi dormir mais na cama. Acordou depois do meio-dia. Quando chegou na pia do banheiro, deu de cara com o pêlo novamente. Era o mesmo que tinha voltado pelo ralo, vivinho da silva? Ou era um novo, da mesma fonte, do mesmo dono? A cabeça deu um giro e ela não podia acreditar naquilo. Agora ele não estava no cantinho, mas bem no meio da pia branca. João ou Marcelo?'? Jura?'? Mas como aquilo tinha ido parar ali? Perguntas rodavam a sua cabeça sem parar. Ela ficava num misto de desconforto e desejo, pensando o que tinha acontecido naquele banheiro. Transar com um deles era como transar com um irmão. Incesto. Não podia encarar esse desejo.Mas além do desejo tinha a curiosidade sobre o que um daqueles dois tinha feito no banheiro dela. Precisava averiguar.
Chamou todos no final de semana seguinte para sua casa de novo. Não conseguia se concentrar nas conversas, só olhava os pêlo dos braços e do peito dos dois. Acompanhava cada um que ia ao banheiro e o tempo que levava lá. Era tudo meio parecido, não saberia como decidir qual dos dois era o cara.
Não sabia o que fazer. O sentimento de carinho vinha quando olhava e conversava com eles, até durante o abraço. Mas quando imaginava que debaixo da calça tinha aquele pêlo, sentia o tesão solto, intacto, sem a necessidade da pessoa de qualquer um deles, apenas o corpo. Objetificava os amigos agora, como tanto criticou os homens que se fixavam em bundas e peitos dos corpos das mulheres. 
Olhou para eles mais uma vez, decidiu abafar aquele desejo. Fez piadas, riram, deixou o caso pra lá.

Simone de Paula - 01/03/2019