sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Última sexta

Última sexta do ano. Dois anos completos. Pelas contas, mais de cem contos.
Tudo começou, como vocês sabem, como uma experiência ente amigas. O mundo disponibiliza formas de fazer sem tantas dependências de meios ou formas certas e isso permite o exercício da execução. 
Comecei acreditando que o ato da escrita se desse a partir de uma ideia insistente, como uma revelação. Percebi que não, pois muitas semanas me deparei com nenhuma coisa interessante pedindo para ser contada. Entendi que para escrever devemos parar, pensar, imaginar e rabiscar. Dada a partida, o autor que habita em nós faz seu trabalho. Talento é outra coisa. 
Fiz escritos, mais do que contos, pois tentei poesia e haicai, meditações filosóficas, outras formas de expressão além do conto em si. Mas a constante que parece guiar minhas ideias e letras se dá nas relações. Até quero fazer diferente, mas quando vejo, já relacionei algo, principalmente, alguém. Não seria diferente, sou uma libriana. Mas o exercício me permitiu colocar em cena isso das relações desproporcionais que afligem alguma coisa em mim. 
Das minhas duas parceiras, uma seguiu em outra direção, o tempo dela é outro. A outra seguiu seu ritmo, transitando entre presença e ausência até achar alguma coisa do seu próprio tema. 
Seguirei, seguiremos. Na semana que vem começa mais um ano e na primeira sexta, publicarei um conto porque conta. 


Simone de Paula - 29/12/2017

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Sax

A amabilidade é encantadora 
quando a hora bate tarde, 
e não tarda
na hora

de retribuir-me.

Maria Laura

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A voz

Estava fadada àquele destino. Se escondia atrás de véus, de trapos, tudo em vão.
O som da voz denunciava sua essência, a alma que a habitava.
Nunca soube direito se escolhia as imagens que vestia para esconder ou revelar (rebelar) melhor a face verdadeira do seu desejo. Sofria quando era tomada por essa face, mas era inevitável, pois não tinha controle sobre a musicalidade, o timbre, a singularidade daquilo que saía da sua boca. O que entra se controla, o que sai, não se sabe.
Os anos passaram, ela começou a brincar mais com o que tinha em volta, só então se deu conta que a revelação morava justamente onde ela não tinha acesso e nem controle. Aceitou, mas será que poderia se apropriar disso? Talvez se conformar com ocorrência imprecisa? Curtir a brincadeira que isso trazia, seria a melhor forma de tomar para si o que era verdadeiramente seu. 
Mas se não sabia de onde vinha, apesar de sair pela boca, e também não tinha controle, será que pertencia a ela mesmo? Se era no olhar do outro, no desejo despertado no outro, não pelo que este via, mas pelo que ouvia e se manifestava nele, era dela mesmo ou do outro?

Mélange, essa era a palavra mais precisa para dizer disso. Com significado de mistura e sonoridade de melado, a palavra desvelava aquilo que ela talvez provocasse quando falava. Uma mistura entre desejo de um e desejo de outro, provocando demandas indizíveis em busca de prazeres nem sempre possíveis.

Simone de Paula - 21/12/2017

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Salão de Festas

Durante a música, aproxima-se.
Passo e ritmo.

Não escuto mais a sua voz.
Nem um sussurro sequer.

Você soltou minhas mãos.
Enquanto amorosamente me agarrei a elas.

Aos poucos a distância cabe: um lugar.
Estou aqui.

Ao meu lado.
- Vem?
- Como?

Dançar, dançar.

Maria Laura



sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

City shots



A sexta-feira era de primavera. A temperatura quente prometia uma tarde sofrida na metrópole agitada e barulhenta. De repente a chuva, intensa, molhada, aliviando os corações. Naquela avenida movimentada, carros e motos seguiam sem mudar a velocidade. As pessoas, essas também, não mudavam o ritmo. Era sabido, ninguém mais se abalava diante de uma tempestade imprevista. Chuva boa.
No ponto de ônibus as pessoas se espremiam, inclusive com seus guarda-chuvas abertos. O casal de jovens, carregando o cachorrinho preto pela coleira, voltava com a orquídea de presente embrulhada num saco preto. Os pedreiros animados com o fim do experiente, alegravam-se com a promessa da cerveja do fim do dia. O desespero do desempregado dá lugar ao delírio do artista no palco, cantando no meio da avenida, entre o vai e vem dos carros, a melodia de louvor ao deus que insiste em castigar os pecadores encarnados. Um ônibus chega, alguns entram, seguem seu destino. 

Simone de Paula -14/12/2017

Conto inspirado na cena urbana do dia 08/12/17, na avenida Dr. Arnaldo em São Paulo, sentido Perdizes. 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Aniversário

Inteira
em cada pedaço.
Revelada
no outro que não supre
e nem deverá.
Para que enfim, eu seja.

Maria Laura


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A surpresa

De repente, pende na minha frente, balançando solto no ar, aquele que é um dos bichos mais misteriosos que conheço.
Minha primeira reação é a surpresa, porque surge diante dos meus olhos, vindo do céu, de um tamanho bem diminuto e sem asas que permitiriam que estivesse ali. 
Procuro a teia, não acho. 
Como ela chegou assim, sem vir tecendo e descendo devagarzinho?
Veio. 
Ficou balançando diante de mim, dos meus olhos. Transgrediu a gravidade e agora fica dominando meu olhar. Diante do fascínio de vê-la permanecer levitando no ar, minha cabeça tenta pensar o que fazer ou se é venenosa. Mas nada provoca em mim algum tipo de movimento. 
Quero parar o tempo nessa beleza do mundo. Não consigo, ela some, do mesmo jeito que apareceu. 
Procuro, não acho. Já valeu.


Simone de Paula - 5/12/2017



quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Peça

Entraram em cena.
Talheres, barulho, voz.
Respire fundo, aqui exploramos um terreno íntimo.
Somos todos convidados. 
Deveria ter nascido como desejo.
E fui o que eu nem sabia.
Inconsistente e imprecisa. Perfeita na medida de não caber.
Devorada pelo fantasma de uma (s) vida corroída.
Retorno e me visto do que imagino que deveria, em forma.
Abraço um pai, uma mãe, um bebê desnudo, aprendiz.

Aplauso. Fim.
Em reconhecer-se.

Maria Laura


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Lágrima

Diante da lágrima que se precipitou do seu olho, pode ver com maior clareza, no tamanho exato da necessidade da sua visão, a letra que insistia em ser uma bailarina incansável que se movia sem coreografia certa.
Viu, muito brevemente, viu. Foi maravilhoso, mas secou a lupa que tinha se formado no seu próprio corpo. Rolou a lágrima, perdeu o foco, chorou.


Simone de Paula -21/11/2017

Ciranda

Algo em você sabe que um momento gira para o outro 
preparo requintado que leva tempo, desejo
parece que não está certo ser tanto por coisa tão pequena
esqueceu que as medidas não são cores primárias,
mas infindáveis: temperatura e ar 

espero

amorneço.

Maria Laura

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Timoneiros do apocalipse

Estavam sentados lado a lado no banco do shopping, em frente à loja de artigos de cama, mesa e banho. Era irônico. Os corpos próximos pela intimidade de anos de convívio constrastavam com a distância que tinha se instalado entre eles. Patrícia notou o reflexo deles no vidro da loja. A imagem se misturava com as promoções de lençóis. Era um fato, estavam baratos, talvez ela até precisasse comprar um jogo. Mas não negou a surpresa que sentiu em notar a si mesma com pensamentos tão banais nesse momento, ao lado de Alberto. Tinham se encontrado para falar da assinatura da separação. Os advogados pareciam dificultar um processo que os dois queriam muito. Não se olhavam, não falavam, nem sabiam porque tinham que estar ali, pagando a fortuna que estavam pagando para os trâmites do divórcio.
Casaram por amor e vontade de construir algo juntos. Separaram porque tiveram tantas coisas juntos que não sobrou espaço para as individualidades necessárias, que é preciso para cada ser humano se sentir único. Tudo clichê. Ela casou porque precisava desesperadamente de alguém para ajudá-la a viver uma vida que queria, mas não tinha forças para realizar. Ele casou porque era muito carente e tinha medo de ficar sozinho depois da morte dos pais. Casaram para ser ‘para sempre’, mas não imaginaram que escolheram a ‘pessoa errada’. Ela buscou o pai ideal, ele a mãe perfeita. Erraram feio no alvo. 
Alberto finalmente percebeu o reflexo deles naquela vitrine gigante, olhou nostálgico, percebeu um traço da beleza que viu em Patrícia no primeiro encontro. Ela era viva, mas beleza não tinha tanta assim. Isso inclusive foi bem importante na segurança que ele sentiu quando decidiram casar. 
Os pensamentos frouxos dos dois, o silêncio calmo daquele momento, a visão de um horizonte que parecia melhor do que o lugar onde se encontravam. Realmente, nem se deram conta do que viria pela frente e estavam justamente no meio de todas as fantasias e ilusões que acreditaram ser a vida e a felicidade.
Um idoso encosta no ombro de Alberto pedindo para ele abrir espaço no banco para poder sentar. Alberto chega mais perto de Patrícia, que ao mesmo tempo tirava a bolsa que estava ao seu lado para dar lugar à criança que tomava sorvete com a mãe. Ela parecia não se importar com aquilo, mas sentiu, sentiu algo, abafou algo.
Finalmente se olharam através do vidro, imagens misturadas com produtos em liquidação, agora ladeados pelos novos personagens daquela cena vazia.
Ela sentiu nele a apatia. Se ela não começasse a falar, passariam horas ali e nada resolveriam. Mas era um assunto que deveria ser começado por ele, que estava criando problemas com a divisão dos bens que construíram em dez anos juntos. Ele viu nela a insegurança. Jamais ela começaria a conversa, mas a qualquer palavra dele, ela tentaria levar as coisas para uma discussão enorme. Ele só queria o jogo de jantar que a Tia Lina tinha dado, porque era importante para ele, ainda que ela adorasse aquela louça.
Emoções afloradas pela presença dos novos personagens e pela proximidade dos corpos. Continuaram se olhando através do espelho que a vitrine se tornou. Ela olhou a criança e olhou para ele. Ele entendeu que ela estava receosa que pingasse sorvete na sua roupa. Mas o que ela queria mesmo ter dito é que talvez um filho teria evitado a situação. Ele mexeu os lábios e inclinou a cabeça para o velhinho que mexia na receita médica que tirou do bolso, tentando enxergar bem o que estava escrito. Ela achou que ele estava achando que um idoso não deveria andar assim, desacompanhado, pelo shopping. Mas ele queria mesmo dizer que eles chegariam na velhice sozinhos. 
No mesmo momento, a mãe da criança pede para ela olhar a menina por alguns minutos enquanto ela ia jogar os guardanapos no lixo e o senhorzinho pediu para ele decifrar a letra do médico. Ajudaram. Olharam verdadeiramente para a solidão que seria a vida deles no futuro. Ele, um velho que precisaria de estranhos. Ela uma menina, que contaria com quem encontrasse pela frente para tomar conta dela. Eram isso, desde sempre. Recusaram ser outro. Casaram para ter o par perfeito para quem eram e não para ser o par construído para o outro. 
A mãe agradeceu, pegou a criança e saiu. O velhinho pegou a receita e entrou na farmácia quase em frente. Foi tudo tão rápido que nem precisariam de fato deles. Se olharam, não falaram. Ela nem lembrava mais que pensou em lençol e ele nem sabia o que estava fazendo ali. Sentiam raiva, decepção, medo, aflição, não tinham como falar do jogo de jantar.
Patrícia levantou, com seu habitual modo de ser, que parecia ativo e decidido. Ele levantou logo depois dela. Se olharam finalmente nos olhos. Ele falou, porque ele dava a dianteira das coisas mais práticas ali. Disse que ficaria com o jogo de jantar e pronto. Não tinha porque estender essa situação por pratos. E a tia era dele. E por fim completou que ela deveria agora ir atrás do próprio jogo de jantar, pois ele foi incapaz de oferecer isso para ela. Ela assentiu, mexendo levemente a cabeça e estendeu a mão. Se despediram. Ele seguiu em direção à farmácia, precisava comprar analgésicos. Ela entrou na loja de lençóis, não perderia a promoção. Seguiram. O que estava debaixo de camadas de expectativas criadas neles para a vida, continuou ali, escondido. O que pensaram um do outro, permaneceu no pensamento que escapou na hora que levantaram. Não entenderam porque se separaram como não tinham entendido porque tinham se separado. Alívio e pesar, era com isso que saiam do casamento, mesmo que ele tenha ficado com o jogo de jantar e ela tenha permanecido no apartamento. 


Simone de Paula - 18/11/2017

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Melodia

Ela não parava de falar. Reprovava tudo o que eu dizia.
Eu gritava um acolhimento que não nos damos, com direto a deprimir-se em quarto escuro e choro de joelhos no chão. 
Sem chão.
Deixa eu ficar triste quando for hora de ficar triste!

Ela não parava de falar. Dizia que pensar negativo é mente suja.
Ai como perdi a paciência. Não podia lidar com uma fala fantasiosa dessas. Com uma unilateralidade infantil e grotesca estampada em um rosto todo modificado pela dor que evita incansavelmente. O sorriso feito de durex, pregado com cola gasta. Prestes a desmoronar.

Eu gritava dentro, urrava sem dizer de uma vez:
Respeite a hora das suas coisas. Escute o afeto. Presencie o descontrole. Atenta, atenta.

Não me imponha, componha. 
A si mesma mulher!


Ela era eu?

Maria Laura

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Me tiro daqui

Eu só fiquei doente pra fugir do que eu não queria fazer. Descobri isso hoje, olhando pela janela e sentindo um sufocamento desconcertante. 
Aonde chego, olho em busca de janelas, mesmo que eu tenha acabado de chegar da rua, atravessado a porta de entrada. É como um escape para os olhos, o refúgio para respirar. Não respiro só pelas narinas ou pela pele, mas respiro pelos olhos. Minha mente precisa de ar, muito ar. E esse ar não vem apenas do próprio elemento, da brisa ou do vento, mas ele chega pelas imagens, pelas ideias que as imagens entregam. Mas voltando, olhei pela minha janela fechada, senti o sufocamento e pensei: preciso sair daqui. Eu ia sair, já tinha um dia de compromissos, mas naquele momento, olhando três pessoas pegando o ônibus na esquina, o vento soprando nas árvores e balançando os vidros, tudo isso me parecia uma prisão, porque eu estava aqui dentro, livre, solta, mas ainda aqui dentro. 
Eu já sabia que um recurso para evitar o que eu não queria fazer era adoecer. Mas eu não fui uma pessoa doente, pelo contrário. Até inventei umas quatro caxumbas para não participar de festa junina ou desfile de sete de setembro. Cada situação desagradável dessas me pedia um recurso. Confesso, eu tinha poucos recursos de recusa, mas vez ou outra, a dor de garganta se convertia em caxumba. Não era só doença inventada, parecia de verdade porque doía. 
Eu também tive a dor de ouvido que era de verdade verdadeira e me impedia de ir para o mar e para a piscina, minhas paixões eternas. 
Isso me ensinou que inventar doença é uma coisa que a gente deve usar com parcimônia, porque quando é de verdade, te impede de fazer o que quer muito. Logo, funciona como o avesso do direito. Além do que, ainda podia ser um castigo divino por ter mentido. Mas sabe que esse deus aí, que castiga, nunca colou muito, porque quem castiga é gente viva, encarnada. Não tenho medo nem de fantasma, nem de assombração, e de deus, menos ainda. 
Na infância, penso agora, minhas dores se concentravam na garganta e ouvido, me impedindo de engolir, de ouvir. Um pouco mais velha, as amigdalites chegaram, e além de engolir, me impediam também de falar. Depois, veio algo mais enigmático, o lado de trás, as costas, que me limitavam o andar. Olha que coisa, eu querendo fugir e meu corpo me impedindo de ir, fazendo ficar. 
Resolvi muitos problemas, mas novos insistem em inaugurar um desconhecido em mim. Eu digo sempre pro meu analista que eu devia ser melhor nessas estratégias, porque o que era para ser uma boa mentira com ganhos satisfatórios, se torna verdade de um jeito meio tosco e me sobra problemas para resolver. Vou sair daqui antes que meu tornozelo comece a doer.


Simone de Paula - 05/11/2017

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Panela e fogo

Em fogo baixo, cozinhe o quanto precisar
Baixo, baixo
Lento

O tempo de um processo
De uma mistura

Fina.

Maria Laura

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Bate-rebate

Me conta
Não posso falar do que você viveu, mas apenas das experiências que eu presenciei e o que elas significaram em mim.
Te pergunto muitas coisas pra dar voz aquilo de você que ninguém quis ouvir. Mas sua personalidade, eternamente ameaçada, entende minha curiosidade por julgamento. Você me toma por aquilo que não sou.
Durante o dia você passeia pela minha cabeça esboçando meu espirito vivo e maníaco por um mundo novo. À noite, meu desejo navega pelo espaço sombrio e raivoso que me habita, provocado pelo seu silêncio. 
Quero tudo que possa sair da sua boca, forjado pela dor da sua solidão e manifestado pelo som das suas palavras. Os fluidos, esses reais, são suportados com a maior devoção, porque eles também te pertencem. Coloca esse oco pra fora, porque ele já aparece, desde que você se sinta olhado.
Não é o que você faz, é o efeito que você provoca. Não é o que intento, é o que brota de mim. Isso é meu e disponho da forma que quiser. Você me encontra, me mostra, me revela, me descobre. Eu estava aqui e nem percebia. Você me viu onde nem eu sabia que existia, ou sabia, mas duvidava, porque nos lábios e nos olhos dos outros isso não aparecia. 


Simone de Paula - 03/11/2017

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Passarinha

Não está nada claro
entramos ainda mais

agora recheados das descobertas
cavamos um pequeno buraco, oco, ovo

dele deverá sair algo que voa e pousa
há uma semente em seu bico
não foi plantada por falta de encontrar o terreno fértil dessa aridez

nem sabia seco
pensava na fantasia de brotos
pensava planta, era neve

distante
frio
inteiro


me falta.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

As minhas baratas

As impressões estão muito mais perto das alucinações do que da realidade. 
Ontem mesmo eu estava jantando, como acontece todas as noites. Tudo era o mais ordinário possível. Eu no meu lado da mesa e meu marido no dele. A comida de sempre, a conversa sobre alguma amenidade. Tenho o hábito de cruzar as pernas, não importa onde me sento, e na mesa da cozinha acontece o mesmo. No entanto, ontem à  noite, na troca da cruzada de pernas senti um peso estranho no meu vestido, alguma coisa caiu no meu colo. Me assustei. Mas o barulho que ouvi, o peso e a forma que percebi, tudo me levava à certeza do que era, mas ao mesmo tempo, aquilo, ali, era impossível. Como uma barata estava no meu colo? Na minha cozinha? Caindo de onde? Debaixo da mesa? Da dobra da toalha?
Me movimentei com calma, não queria fazer alarde, aquela era a minha barata, em mim, no meu colo. Queria lidar com isso antes do escândalo que meu companheiro de cena faria. 
Descruzei a perna, olhei no colo, olhei no chão, sacudi o vestido, mexi na barra da toalha, tudo com muita sutileza, queria ver a barata, mas ela tinha sumido. Será que ela esteve ali? Ela estava ali! Mas não existiu na materialidade sentida por mim. Segui o jantar, mas queria muito achar o que vi e vivi e que tinha escapado das minhas mãos antes de tocá-la.
Reflito sobre isso na noite mal dormida. O dia de Finados tinha acabado de passar e não pensei direito nos meus mortos.
A semana tinha sido de luto mais uma vez por eles. Mas no dia de fato nada me lembrou daqueles que passaram, porque ainda são presentes. Eles se hospedam em mim, no meu colo, na dor forte que sinto no meu estômago quando penso na falta que me fazem. Quero que vivam, os alucino a cada vez que os culpo por terem me deixado. 
A barata, essa minha de estimação, só veio me lembrar que tem alguma coisa em mim que tenho que matar. As baratas não me assustam, nem causam nojo, nem nada. Se aparecem, morrem com uma chinelada certeira e vão para o lixo recolhidas com um papelzinho. Familiares, esses passados parece que pedem uma chinelada e o descarte simples com um papelzinho. Se estão só na alucinação, fora da materialidade da realidade, que sejam eliminados por um ritual. Que eu os deixe passar.


Simone de Paula - 3/11/2017

 
Obrigatório mencionar Kafka e Clarice Lispector nesse conto.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Coisas da vida

Na vizinhança imunda do centro, o vento faz poesia com o jogo de loteria que caiu do bolso do carroceiro. No ballet daquele pedaço de papel, embalado pelo barulho dos carros velozes e envolvido pelo cheiro forte de fumaça quente dos escapamentos mal calibrados, fico pensando na sorte daquele homem, que apostou o pouco que tinha e nem mesmo terá a chance de ganhar uma ninharia. No seu descuido, perdeu a prova que mudaria a sua vida.


Simone de Paula -16/10/2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Dois

Na adolescência ela assumiu o apelido ‘Dois’. A escolha foi um tipo de ironia que todo jovem gosta de fazer e funcionou muito bem nessa fase tão difícil de inserção social. A ideia veio quando ela tirou um dois na prova de matemática, matéria em que seu desempenho sempre tinha sido exemplar. Era o destaque dela em casa e entre os professores. Mas, quando tirou o dois e viu que a turma do fundão curtiu, ela mesma resolveu se rebelar e bancar a desinteressada pelos estudos. Queria uma nova cara, um novo estilo, o dois veio ajudar a conseguir isso. De brinde ela ganhou a mãe no seu pé e o pai falando que ela só dava desgosto. Reclamava, gritava, se trancava no quarto, estava feliz, não pelos conflitos, mas porque finalmente agradava mais as pessoas que ela admirava do que os pais que ela obedecia.
Foi inventando um monte de histórias com o dois. Era segunda filha, os pais também eram filhos do meio na família deles. A casa tinha o número dois no final. Começou q andar de tranças, duas, brincando feliz com a identidade que a representava tão bem. Nas provas de matemática voltou a ter boas notas, porque entender aquele raciocínio era mais forte do que ela e nem se quisesse conseguiria ter notas baixas.
Como não podia deixar de ser, arranjou uma melhor amiga, eram duas. Mas todo o esquema seguro deu um tilt quando numa festa, um cara que elas não conheciam, mas que Dois ficou bem interessada, a provocou dizendo que se ela era a Dois, a amiga deveria ser a Um. Pane no sistema, ela não pensava assim nessa relação das duas. E mais, como ela encabeçava as escolhas, ali ela era Dois, a primeira. Sentiu ciúmes da amiga, porque notou que o cara olhava com mais atenção para ela. Sentiu raiva do cara, porque ele tinha sido esperto demais naquele jogo. Sentiu-se meio boba, pois as peças tão bem encaixadas do quebra-cabeças Dois tinham se soltado. Naquela noite Dois voltou pra casa chateada, não sabia muito como reverter aqueles sentimentos confusos e incômodos. Não queria abrir mão do que tinha conseguido com o apelido, mas não sabia como sustenta-lo diante da indiferença do outro. Afinal, se questionava por que o Um valia tanto na sociedade. Instigada pelo tema foi pesquisar. A internet era um sem-fim de assuntos e artigos que tocavam nesse tema. Mas o que mais se repetia era sobre a questão feminina, o tal segundo sexo. Percebeu que pelos ciúmes tinha se afastado da amiga, que não podia ser responsável pelo gracejo do cara que a provocou. Nem ele podia ser execrado por apenas dizer algo que era visível e ela tinha montado assim. O outro só revela o que a gente nem vê bem. Se acalmou, era tempo de olhar para frente, se rebelar menos e continuar escolhendo, sabendo que nenhuma escolha é absoluta. Tem sempre o outro lado: lado dois, lado B, qualquer das opções que se escolha há um tanto que não é positivado e jubiloso, mas enigmático e sombrio e que só se revela na surpresa e na decepção do que poderia ser um todo. 
A vida não dá garantias.


Simone de Paula - 15/10/2017

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Elementar

A fantasia tem abraços delicados, envolventes.

A fantasia de não ser desejado pelo outro.
A fantasia de não pertencer.
Não ser o que realmente é.

Há um dado inevitável: repetição.
Revivo e 
caio no buraco.
Caio no buraco.
Caio no buraco.

Até o dia que você desvia do buraco.
E segue.

Maria Laura


sexta-feira, 13 de outubro de 2017

“Puta, o nome do superego”

“Puta, o nome do superego”

O titulo do artigo gritou nos meus ouvidos, como você sussurra todo dia, bem baixinho, pertinho da minha orelha
Puta, puta, puta....
Tem dias que você chega com putinha, mas logo retoma
Puta, puta, puta...
É pouco, não aguenta, invoca minha linhagem
Vagabunda, filha da puta...
Puta, puta, puta...
Diz mais, repete, insiste, continua...
Diz puta pra mim, fecha os olhos e ouve a si mesmo preenchendo a boca de gozo na palavra Puta.
Puta, puta, puta...
Diz pra mim.... diz e revela o que você nem ouve de você.


Simone de Paula -08/10/2017

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Aliança



É um casamento.
Faço imagens.
A noiva, linda, enquanto sua gota de suor, contém a transformação de uma vida inteira.
O ritual é delicado.
Os vestidos longos.
Dança, brinde, celebração.
Dança, convite, concessão.
São dois, inteiros. Arriscam-se. Encaram-se.
Disseram sim.
Sim.





sexta-feira, 6 de outubro de 2017

No meu choro só tem mim

Eu chorei demais aquele dia. Chovia.
Sai de casa animada, adiantada, pensando que uma resposta eu poderia obter. Esperei muitos minutos e fui avaliada em menos da metade do tempo da espera. A notícia não foi boa, nem ruim, mas simplesmente cifras bem notadas do meu espectro corporal. Meu organismo estava ali, mapeado, sem nenhum traço de mim nele. Mentira, era exatamente mim. 
Há meses, anos, venho provando que digo a verdade. Inclusive, nos encontros breves, tenho que ser muito incisiva para poder ser ouvida naquilo que sei expressar. Parece que não entendem como eu posso dizer a verdade, e ainda assim, furar os sistemas tão bem desenvolvidos das ciências humanas, e exatas.
Sai de lá e chorei, muito. Não pelo resultado e ao mesmo tempo, totalmente pelo resultado. Era impossível repetir tantas vezes a mesma coisa. Mentira, era possível, eu estava fazendo aquilo.
Naquele momento, tão perto de você, senti sua falta. Queria poder dizer o quanto aquilo era desastroso em mim e chorar, no seu colo, no seu ombro, para você entender que mais do que saber que digo a verdade, coisa que você parece já ter entendido, ainda assim pudesse saber o quanto essa verdade dói em mim.  Mas você não estava lá. Eu só podia chorar e esperar.
O que faço não sei, só choro e observo para poder dizer as verdades sobre mim aos que pouco querem ouvir sobre essas verdades, que derrubam as certezas e convicções que carregam por trás dos seus semblantes rígidos de saber.
Não quero uma receita cheia de remédios, quero beijinhos no lugar das pastilhinhas, eles funcionam melhor em mim. Isso é verdade.


Simone de Paula - 05/10/17

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Brown and Black

Cabelo brown, Olhos brown, Sobrancelha brown, Delineador brown, Rímel brown, Batom brown...

... Ahhhhh, batom brown...

Vestido brown, Biquini brown,Sapato brown... Opa, espera aí!

Tem também o Black, Sapato black, Calça black, Saia black, Mulher black

... Continente negro....Dizem eles.

.... Somos África....Dizem elAs.

Write!
Escreva in Brown and Black!

(Leia de novo em voz alta, sinta a sonoridade das palavras, os silêncios dos intervalos das letras, o ritmo do seu corpo e a musicalidade da sua voz. Goze!)

Simone de Paula - 24/9/2017



Obs - esse texto veio do encontro inflamado com Hélène Cixous, num domingo, 7 horas da manhã, num final de semana exaustivo. Ela despertou meus demônios, não tinha mais cansaço. 

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Próximo, de perto.

Querido,
Um amor não se sustenta sem lealdade a nós mesmos
estamos cansados de sermos agredidos pelos nossos espelhos
somos tão reais quanto a fala dura e repetitiva
posso dizer que não abraços não são desejados
que a liberdade eu não via porque a temia ainda hoje
os calcanhares estão prontos para caminhar sem a dor de sino batendo

um tempo até o barulho cessar enquanto grita. Extremo. Rude. Em gotas.

Maria Laura

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

O fio da loucura

Carlinhos podia ser considerado o 'rei do camarote'. Era um bon vivant que vinha de família abastada. Um solteirão convicto. Festas, farra, bebidas, jogos e mulheres. Cenário padrão de novela de televisão. Carlinhos não precisava ser original, encarnava o personagem. Mas essa fama toda foi desmontada no dia de sua morte.
Carlos Otávio, o Carlinhos, tinha mesmo uma família abastada. Ainda moço, com seus vinte e três anos, casou com a namorada de juventude,  Viviana. Tudo como mandava o figurino: famílias se conheciam e aprovavam o relacionamento. Era a promessa de um futuro sólido. 
O pai de Carlinhos apressou o casamento, porque já tinha percebido que o filho não queria saber de trabalho. Acreditou que Viviana, e a condição de casado, exigiriam do filho uma mudança de atitude. 
Passada a lua de mel, voltaram para a casa nova e começaram uma vida de jovem casal. Ele, saia para trabalhar de manhã, depois do café preparado por Viviana, e voltava no final do dia. Ela ficava em casa, só sonhando com os filhos que viriam. Um retrato perfeito. 
Três meses se passaram e ela estava grávida. Carlinhos já animado com o salário gordo que o pai se encarregou de pagar, resolveu comemorar com os amigos. Ali começou a vida paralela do 'rei do camarote'. Aos sábados e domingos, ele ficava com a família. Mas durante a semana, duas ou três noites, eram dele. Para Viviana, os pais dela e os dele, a desculpa era o esporte ou a reunião com um grupo de outro país, exigindo um horário diferente do usual, O pai dele sabia que ali tinha alguma coisa, mas fazia vista grossa. 
A vida correu e Viviana se divertia tendo filhos, cachorro, gato, compras, tudo que pudesse esconder os hábitos de Carlinhos. Do lado de fora, ele curti a noite da cidade e esbanjava o dinheiro polpudo que ganhava. Amantes, bebida, uma droga aqui e outra lali, só pra sair do comum. Chegava em casa com tudo escuro e todos dormindo.
Nessa roda-viva, ele conheceu Verônica, aquela que o fez  passar a primeira noite inteira fora de casa. Paixão e vício ao mesmo tempo, ele não queria largar essa mulher. 
Verônica tinha a vida dela, os amantes dela, o dinheiro que tambem vinha da família. Ela era a ovelha negra no seu meio. Falava a língua de Carlinhos, era do mesmo mundo e do mesmo submundo. Era uma mulher inteligente e controlava tudo ao seu redor. Ele, um menino crescido, que escorregava nos próprios desejos. 
O tempo passou rápido e a esposa notou que ele só voltava para casa para trocar de roupa uma vez por semana, mas trazia uma mala com trocas de outros dias. Pediu explicações e ele usava os clientes de fora. Ela falou com seus pais. O pai dela falou com o sogro, pai dele. Era preciso fazer alguma coisa. Resolveu conversar. Carlinhos ouviu a conversa do pai, mas não queria que se metessem na história dele. Ele sabia que o pai iria proibir a relação e afastar Verônica dele. Mentiu descaradamente para o pai. O pai sabia que era hora de pressionar de outra forma, tirando o pagamento de salário. Carlinhos enlouqueceu, brigou esperneou. Sem resposta positiva, se afastou de Verônica. O dinheiro voltou. O desejo voltou. Verônica também voltou. O ciclo seguiu por longos dois anos. Ele se afastava por três meses e ficava com ela por seis. Cmtrolado, fazendo de conta que não estava, mas não conseguia seguir assim por muito tempo e mostrava novamente que tinha tido a recaída. O pai teve a última conversa séria com ele e disse: chega, não aceito mais. Demitiu o filho e acabou o dinheiro. Ele não podia deixar a mulher nem os filhos, mas não tinha como sustentá-los. Pediu uma ajuda para Verônica. Ela aceitou uma vez, duas e no final de 2 meses, estava sustentando Carlinhos e a família dele. Ela não se importava e nem exigia nada dele, mas tinha para si os limites bem definidos. Carlinhos vivia agora no maior descaramento da sua vida. Não dava satisfações a ninguém. Quando queria, ia para casa, ora a sua, ora a de Verônica. Mas as noites eram nos bares e na curtição. Verônica tinha suas amigas e compromissos. Aceitava a situação, porque sabia sempre onde ele estava e o que fazia.
Ela chegou em casa perto das 11 horas. Tinha ido ao cabelereiro porque tinha um almoço naquele dia, com a amiga próxima com quem estudo. Ela se arrumava muito para esses encontros. Todas exibiam marido e filhos e ela exibia beleza e elegância. Chegou do salão e deu de cara com os sapatos de Carlinhos no meio da sala. Ele não tinha dormido lá. Ela achou estranho, imaginou que Viviana o tinha colocado pra fora de casa pela décima vez. Foi entrando no quarto, mas viu perto da porta uma echarpe carmim e sentiu o ódio subir pelo seu peito e chegar até os seus olhos. Abriu a porta e viu o que era de se esperar, ele com uma mulher desconhecida na cama dela. Cega de ciúmes, pegou a arma que tinha ganhado do tio, que sabia que uma mulher sozinha devia se proteger. Cutucou a moça que assustada com a arma, saiu correndo sem roupa mesmo. Não fez barulho, não poderia falar com ele. Se assustou com os três tiros que disparou contra o peito de Carlinhos. Soltou o corpo no chão, a arma ainda entre as mãos e esperou, sabia que em breve a casa dela estaria cheia de gente investigando a cena do crime. 
Polícia, vizinhos, Verônica levada para o saguão enquanto os policiais avaliavam o apartamento e removiam o corpo. O tio chegou para ajudá-la, foi a única ligação que ela fez antes de ser presa. Ela pediu para ele dar dois telefonemas, um para Viviana, informando da morte do marido antes da polícia. E o outro, para a amiga, caso ela não fosse liberada a tempo de comparecer  ao almoço. Assim que o tio saiu do lado dela, uma vizinha histérica começou a acusá-la de todos os nomes que conhecia. Estava insandecida e incitava a raiva das pessoas do prédio. Ela era mulher de Alfredo, primeiro amante de Verônica. Ela foi morar naquele prédio para facilitar os encontros dos dois. A mulher sabia e agora era a hora de descontar toda araiva e orgulho ferido da esposa traída. A cena foi horrível, a polícia tentava conter o espancamento de Verônica,  enquanto esperavam o IML para levar o corpo. Tudo levou menos de dez minutos. Verônica, algemada, não pode reagir. A mulher ensandecida, vingou os anos de submissão ao marido que ela tanto odiava. Os vizinhos, muito preocupados com a moral do prédio, encontraram um jeito de se livrar da imoralidade daquela moradora. O silêncio só se fez com o grito forte e grave do delegado quando ele chegou ao saguão e viu tudo aquilo. Não tinha mais o que fazer, o IML levou dois corpos. O tio informou Viviana, que sorriu ao saber que o marido tinha morrido. Ela estava livre dele agora e como viúva, seguiria sua vida deforma mais justa. No fundo, agradeceu Verônica, primeiro por não deixar que ela e os filhos passassem fome e depois por ter lhe restituído a liberdade. Quando o tio viu a sobrinha morta, sentiu profundamente, ele odiava a sociedade puritana em que viviam naqueles tempos. Ligou para amiga e a informou que Verônica não poderia almoçar com ela. A amiga agradeceu o contato e operguntou o motivo. Ele contou toda a história e informou que o velório seria no dia seguinte.

Simone de Paula - 22/9/2017

Comto inspirado na música 'Miss Otis', de Bryan Ferry, e com cara roteiro de novela da globo.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O açougueiro

José saiu da sua terra em busca de oportunidades. Levou consigo o pouco dinheiro guardado durante toda vida. Já tinha quarenta anos e não podia mais esperar. Com três camisas, duas calças e algumas fotos de família, entrou num navio cargueiro rumo ao país que acreditou ser promissor. Qualquer lugar seria melhor que ali, onde tinha sofrido desde pequeno.
Os pais de José trabalharam na terra, assim como seus avós e bisavós. A família nunca saiu de lá e viveram de sol a sol cuidando da roça e esperando o dia seguinte. José teria seguido o mesmo destino, mas os tempos mudaram, grandes fazendeiros se encarregavam de abastecer as cidades e as vilas. A pequena produção agora estragava na cozinha de José. O irmão mais velho vendeu as terras, dividiu o dinheiro entre todos os cinco filhos e cada um seguiu seu rumo.
José foi para a cidade mais próxima e procurou trabalho. Não sabia fazer nada, mas lavar pratos e chão, ele sabia. Era cidade de porto e ele via diariamente as pessoas chegando e saindo. Ele já não tinha terra, raiz, nem vínculos, era hora de partir.
Durante a viagem ajudava os marujos, queria ser útil, fazer amizades, saber como era a vida de um marinheiro que não tinha parada. Olhava como faziam com os peixes. como pescavam, limpavam e cozinhavam. Era divertido, meio nojento, mas ele se fascinava estranhamente pelas facas e cortes. Sentia tesão quando o cozinheiro do navio rasgava de ponta a ponta aquele peixe prateado com o olho vidrado. Toda noite dormia mal, num canto do convés, em cima de sacos de mantimentos. Sonhava com partes de corpo, partes de casa, partes de bicho. Ele se fascinava de dia com os cortes e sonhava à noite com as partes.
Chegou em terra firme, desceu do navio e andou a esmo. Batia nas portas dos bares pedindo emprego, queria fazer qualquer coisa. Foi contratado por um açougueiro que precisava de alguém para fazer o trabalho pesado. Ele passava o dia levando peças enormes de boi para dentro do frigorífico, limpava as bancadas cheias de sangue e sebo e ainda esfregava o chão todo final do dia, antes de ir embora.  Alugou um quartinho perto do trabalho e desmaiava toda noite. Os sonhos continuavam, mas agora eram tripas, pedaços de ossos e sangue, muito sangue. Ele não se assustava com esses sonhos, pelo contrário, acordava excitado e pensava que precisava achar uma mulher para casar. Foi ganhando a confiança do açougueiro que o ensinou a cortar a carne, prepará-la para ser vendida, aproveitar o máximo do animal. Ele treinava bem e decidiu, seria um açougueiro assim que se casasse.
Começou a namorar uma aqui outra ali. Mulher dá trabalho, pede atenção, cobra presentes. Ele já era velho, não tinha mais a paixão da juventude e não tinha muita paciência para as exigências femininas. Se viu com um problema, pois sem mulher ele não conseguiria ter força para ter o próprio negócio. Aceitou casar com Ângela, que tinha se incumbido dele como nenhuma outra. Ela levava as camisas dele pra lavar na casa dela, pois sabia tirar a mancha de sangue e gordura. Ele sujava muito as roupas, mesmo trabalhando de avental. Ela ainda dizia que ele precisava cuidar da barba e do cabelo e comer melhor à noite, para ter menos pesadelos. Ele contava seus sonhos e ela achava que eram terríveis.
Casaram e foram para a cidade vizinha. Com o apoio do patrão, o açougueiro, ele montou seu negócio - Casa de Carnes Corte Sagrado - e devolveu o empréstimo em um ano. Trabalhava duro, feliz, satisfeito com as facas e cortes.
Com filho pequeno, ele trabalhava até tarde para dar conta do negócio. Confiante, não via problemas em ficar aberto enquanto os comerciantes vizinhos iam para casa no final do dia.
Um dia, numa sexta-feira, já perto das sete da noite, dois rapazes tentaram assaltar o açougue de José., ele olhou e pensou nos marinheiros que enfrentavam tempestades e o mar bravo, dominavam peixes-espada enormes, eram corajosos e acima de tudo, ótimos manejadores de facas. Lembrando das cenas da viagem, lançou mão do facão que estava em cima do balcão e acabou com a raça dos bandidos. Demarcou um território, ali ele não seria roubado, nem naquele dia, nem nunca.
Ângela soube do ocorrido e ficou com medo. José a tranquilizou. Os vizinhos comerciantes o parabenizaram pela coragem.  Ele ficou feliz, tinha um solo. Os filhos cresceram e os sonhos continuavam. José avisou a mulher que um dia ele partiria, que seria marujo, não podia ficar preso tempo demais num único lugar. Quando o filho mais velho fez 15 anos, ele passou a chave do açougue para o menino, pegou a mala com três camisas, duas calças, fotos antigas e novas e se despediu daquela vida do porto seguro. Seguiu para a cidade em que desembarcou e se despediu do antigo patrão, agradecendo a acolhida. Reencontrou um antigo amigo, Vladimir, que estava no barco que ele veio e manteve contato desde então. Subiu no navio e percorreu o mundo com eles. Viveu aventuras, agora com seus sessenta anos, sem tanta força, mas com toda a experiência da vida. Ficou nessa vida por dez anos. Navegou pelos sete mares. Escrevia num diário tudo que passava. Mandava cartas para Ângela em cada porto que parava. Mas a aventura parecia se repetir e agora ele sabia, era hora de voltar para casa. Desembarcou num dia de domingo, ensolarado e encontrou a família que o esperava. A mulher sorria, o filho mais velho, de mãos dadas com uma moça jovem e barriguda, já seria pai em breve, e os pequenos tinham crescido. José voltou para sua família, sabia que ali a raiz era tão firme que ventania nenhuma o levaria embora para sempre.

Simone de Paula - 15/09/2017