sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O ábaco

Ahmad saiu da loja carregando no peito a sensação de incerteza que antecedia as escolhas que a vida lhe impunha. Repassava a conversa com Karim de forma a capturar letra por letra o que ele estava a lhe oferecer. Conversava consigo mesmo tentando se convencer que o negócio tinha sido bom, mesmo que ele soubesse que deveria ter se esforçado mais para que o preço abaixasse. Mas ele não podia deixar de lembrar o brilho nos olhos do dono da loja, marcadamente agressivo, provocando o medo de ser expulso de lá por não respeitar o valor imposto e desmerecendo a mercadoria. Ele guardava lembranças muito fortes de olhares agressivos.

Chegou em casa buscando repouso. Lavou mãos e rosto e vestiu uma túnica branca, leve. Trouxera comida da rua, mas não sentia fome. Ascendeu um cigarro do lado de fora e ficou olhando o céu estrelado e a lua nova que se mostrava só em filete. O cheiro do fumo o fez lembrar da cortina de seda que tinha visto naquela tarde. Sentiu uma enorme paz no coração. Esboçou um sorriso de felicidade.

Morava num pequeno apartamento nos fundos da casa dos tios. Era o bastante para um rapaz solteiro. Trabalhava num escritório contábil não muito longe dali. Não tinha muitos amigos e levava uma vida bem regrada. Mas naquela noite, o céu e o cigarro pediam um pouco de arak, uma bebida forte para acender o corpo e aquecer a alma. O barulho das crianças brincando na rua, os carros buzinando, tudo isso parecia muito longe, um som que estava tão fundo que não atrapalhava sua contemplação.

Adormeceu sem perceber, como Giti. Se conectaram sem saber. Durante a noite, ele sonhou com o mesmo céu estrelado e via a lua dançar, ondulante. As estrelas circundantes deixavam rastros brilhantes de cor branca luminosa. Tudo se movia em sintonia, ele podia até ouvir uma melodia. Acordou meio atordoado com a luz excessiva do sonho nos seus olhos. Já tinha amanhecido fazia tempo e ele pulou da cama atrasado. Imaginou que o dia seria difícil, mas para sua surpresa, tudo fluiu na maior tranqüilidade.

O escritório contábil em que trabalhava pertencia ao seu tio, marido da irmã da sua mãe. Fez seus estudos sem saber que ocupação teria, pois não poderia seguir os passos do pai, que perdera a sapataria após a sua morte. Com três anos, ele era muito pequeno para assumir o pequeno ateliê.

Como era uma criança tímida e concentrada, com facilidade para somas, perceberam sua inclinação para a matemática. O incentivaram a se dedicar mais e fazer faculdade nessa matéria. A família sabia que precisaria lhe indicar um trabalho, tão logo tivesse idade para assumir alguma ocupação, e diante do horizonte de possibilidades, a aptidão para somas rimava com o escritório contábil. E assim foi selado o destino de Ahmad. Ele aceitou, tinha sido criado para ficar onde lhe colocassem, aceitar o que lhe fosse oferecido. Não desgostava, nem pensava nisso. Cumpria suas obrigações e, pela facilidade com que entendia os processos, acreditava que realmente esse era o seu dom. 

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sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Assombro

Quanto de acerto tem numa certeza?

Digo que 100%, desde que ela seja cifrada antecipadamente e decifrada no instante do agora.

Números, letras e formas, qualquer desses signos servem para grafar algo ainda sem sentido. 

Mas os dias passam, com eles as estações do ano, as ondas do mar e os afetos de dor e de amor.

E, num dia, de surpresa, com assombro, encontra-se a imagem do que nem se tinha imaginado, mas que estava realizado.

É assim, com certeza!


Simone de Paula - 23/10/2020

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O ábaco

O movimento da cortina no fundo da loja chamou a atenção de Ahmad. Seus olhos não viram mais que um leve balanço da cortina de seda cor de mel. Mas isso bastou para seu coração disparar e sua mente precisar de muito esforço para se concentrar na explicação de Karim, sobre a peça de madeira que estava no balcão.

Karim era um comerciante de ábacos feitos artesanalmente. Mantinha a tradição de muitas gerações de sua família. Desde jovem, tinha se especializado na confecção e venda das peças, e assumira a pequena loja no souk central. Tinha ensinado Giti, a filha mais velha, a arte do entalhe da madeira e sentia orgulho da delicadeza com que ela trabalhava cada peça de forma exclusiva. Mas ele era um pai muito cuidadoso e conservador e não permitia que ela viesse à frente da loja quando tinha algum cliente.

Ahmad tinha se decidido a comprar uma nova peça, porque a sua estava desgastada demais. Ele era um estudante obstinado, que passava longos dias e noites calculando. A matemática tinha sido o primeiro amor, mas um amor difícil de conquistar. Ele tinha perdido os pais ainda criança e fora cuidado pelos irmãos da mãe. Sabia desde novo que precisaria encontrar seu caminho, pois ser órfão indicava que ele teria mais dificuldades para se estabelecer no mundo.  Escolheu a loja de Karim por mero acaso: olhou, sentiu um cheiro discreto de fumo vindo lá de dentro e foi atraído pela atmosfera silenciosa.

Enquanto os dois homens conversavam demoradamente no balcão, Giti se dedicava à escolha da matéria-prima para confeccionar o próximo ábaco. Tinha olhado discretamente o rapaz que tinha entrado na loja e a atraíra pela voz trêmula. Ela encontrou um meio de vê-lo, mas se deixou perceber quando soltou a ponta da cortina no momento em que se recolhia para os fundos da loja. Se encantou com a insegurança da voz dele, mas gostou também da postura levemente curvada, causada pela estatura elevada e a sutil humildade que lhe marcava a personalidade. Giti conhecia seu pai e sua capacidade de convencimento, especialmente com jovens respeitosos às tradições. Ela sabia que o rapaz compraria o que o pai quisesse e já se preparou para o trabalho. Mas sentia uma vontade especial nesse caso, queria criar uma conexão diferente com esse rapaz, ter algum tipo de segredo com ele. Ficou pensando em alguma forma de chegar até ele, de mostrar-se para ele, sem que precisasse aparecer na loja. Só tinha um jeito, a peça de madeira.

Ouviu a despedida dos dois e o pai a chamou. Ela veio obediente e ele pediu que ela começasse a confeccionar a peça do rapaz. Mal sabia que ela já tinha escolhido a melhor madeira. 

A preparação da matéria-prima é fundamental para o melhor resultado dos cortes e modelagens, mas Giti ainda queria mais. Imaginou que poderia colocar mensagens nas contas, esculpir elementos de caligrafia que se escondessem, mas que pudessem ser decifrados por alguém com sabedoria além da exatidão da matemática.

Envolvida em pensamentos dispersos na criação, se assustou quando Karim a chamou para irem para casa, pois o horário já estava avançado. Ela pediu mais uns minutos, anotou algumas ideias no seu caderno, organizou seu material e o cobriu com uma seda nacarada fina, bordada em dourado, que ela usava quando pensava em uma proteção especial. Olhou mais uma vez para a mesa de trabalho antes de sair em companhia do pai. 

Em casa, após o jantar, e o auxílio à mãe com as tarefas domésticas, foi para o quarto e pegou seu livro preferido com os poemas de Hafez. A cada linha lida, fechava os olhos e transformava a emoção em uma letra ou imagem. Adormeceu nesse estado de devaneio e quando ouviu os barulhos da casa, se deu conta que já tinha amanhecido, e ela deveria se preparar para ir novamente para a loja com seu pai.

#domeuleitodemorte #sherazadefeelings #tobecontinue #simonedepaula #16/10/2020 #capitulo1

 

música iraniana

Chá de lima da Persia - nomes iranianos e seus significados

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Retratos Selvagens

A carne sangrando, recém fatiada, no churrasco acalorado da varanda animada.

O grito histérico, na beira da cama, olhando aflita a barata voadora.

O olhar invejoso, disfarçado de esquiva, observando atentamente a presa odiosa.

O pé pesado, amassando a folha  seca, que sofrera o golpe do vento tempestuoso.

A força bruta, do impulso produtivo, que joga no mundo o barro bem batido.

O gozo intenso, rasgando o corpo, tomando posse da vida pela morte.


Simone de Paula - 09/10/20

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Aposentadoria

À propósito da Astrologia, me aposentei em 2017. 

Talvez eu não tenha te contado com todas as letras, como nessa frase, mas foi assim, me aposentei. 

Alguns ainda insistem, me lisonjeiam com elogios, me deixo seduzir e abro exceções. Faço um mapa aqui e outro lá. Mas já foi. Quando eu falo disso é apenas um recurso de linguagem, como se usasse um exemplo de filme ou livro, mera ilustração com signos que representam alguma outra coisa. Não que isso não me interesse, mas é apenas como uma arte. Ler antigos filósofos dizendo sobre os astros e o céu, isso me encanta e atrai, mas analisar elementos astrológicos, não.

Essa foi mais uma decisão conclusiva num ano final sete. Sabe-se lá porque eles representam esse efeito na minha vida, mas é assim. Dez anos antes, era a saída da produção. 1997 foi o turning point, seguir por outro caminho. E assim foi, rupturas, descobertas, chuteiras penduradas, bola pra frente. 

Não prevejo 2027, porque nem previ nenhum dos outros anos. Sigo jogando com a vida, ora jogos esportivos, ora jogos de raciocínio, porque nunca se sabe o que começa e onde isso vai terminar.

Simone de Paula - 02/10/2020