sábado, 27 de janeiro de 2018

A impossibilidade de amar

O encontro das duas foi determinado pelo acaso.
Era a primeira vez daquela menina pequena. Uma criança de apenas seis anos. Para Maria, aquilo já acontecia há mais de quinze anos. Era tão normal que ela nem se dava mais conta de que uns precisavam mais do que outros.
Naquele ano Maria estava exultante, finalmente iria se casar. O relacionamento durou mais de doze anos e ela realmente se sentia aliviada. Não foi uma jovem bonita, nem era uma adulta elegante. Precisava garantir que mesmo sem esses atributos ainda conseguisse realizar um casamento. Ela não tinha olhos para mais ninguém. A vida era ‘o momento dela’. Naquele ano então, nada era mais importante que isso. Se encontraram professora e aluna naquele dia. O primeiro dia de aula de uma, o ano do casamento da outra. Era inédito para as duas, mas uma não pode recepcionar a outra. O que poderia ter sido um belo encontro entre mulheres, se tornou o maior desencontro possível naquele colégio. Choro, solidão e invisibilidade contrastavam com a alegria maquiada, que se fazia rodear de homenagens. 
Não há o que dizer dessa relação, a não ser que ela não existiu. Mas a marca do desencontro de inscreveu, funda, pela insistência registrada em nove meses de convívio.  Não houve quem introduzisse a menina naquele lugar, naquele novo mundo, naquela situação prevista, mas desconhecida. O lugar estava ali, a situação posta. Será mesmo que precisava de introdução? Que vivesse no mundo de forma como todos vivem, oras. Esse saber não vem pronto? Não. Ela era daquelas que precisava que o mundo lhe fosse apresentado. Não foi dessa vez. 
Um ano depois veio Luci e dessa vez alguma coisa foi diferente, ou porque já tinha uma prévia experiência no mundo, ou porque Luci se incumbiu de dizer: “aqui é assim.” Isso já foi o bastante.


Simone de Paula - 19/11/2017

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Dentro


Você não estava do lado de fora.
Mas eu não sabia assim.
Depois do convite, fiquei.
Então, nos encontramos.
Eu não te esperava.
Me afoguei e fui resgatada.

Respire. 


Maria Laura

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Um dia

Um dia eu te encontrei. Te perdi.Não te esqueci.
Te reencontrei, me despedi.
Mas o mundo é aberto e da terceira vez, quem me reencontrou foi você. Nos perdemos, acreditando ser apenas a geografia que nos separava.
E um dia eu lembrei, que se eu não te buscasse, talvez jamais te reencontraria. Dessa vez, apesar da geografia, a correspondência fez as vezes da presença e nos encontramos durante muitos dias. Nas nossas cartas, nos conhecíamos atualizados e nos lembramos dos antigos eus que fomos e não precisávamos mais ser.
E, num último dia, o encontro definitivo. Sim e não no horizonte.
O que vimos foi o desencontro que nunca tinha se revelado.Te desencontrei.
Nos despedimos.
Fico com o poema que se tornou imagem. A versão do que poderia ter sido na ilusão da nossa falta mais íntima.

“Um dia

Umas fatias de pão torradinho,
frutas frescas, um café, um cigarro
e uma outra coisa qualquer com uma pitada de ternura.

Um mergulho nas origens,
gotas de luz escorrendo em teu sorriso
fluídas, como as tuas mãos nos teus cabelos.

Uma música na alma,
um passeio descalço pelas alamedas do subúrbio
à alegria de um sol abrindo flores.

Um chope,
um frango assado,
um aceno a um amigo que passa em liberdade
e uma conversinha à toa sobre coisas sem mistério

Depois, a ilusão
de que não há fome no mundo,
de que não há criança sem escola,
de que nos corações não há malícia,
nem vingança feita crime,
nem guerra,
- a ilusão de que não há falta.

Então,
uma caminha macia,
um lençol com cheiro de primeira vez,
um momento pra sempre em nossos corpos
num pedaço de noite e luar pela nossa janela sobre o mar.

E um poema.

Um poema
para não deixar que coisas como essas
morram assim, simples coisas como coisas,
assim, na coisidade de um dia
- ainda que feliz.”

Pedro Lyra 

Simone de Paula - 18/1/2018

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Não se afobe

oráculo:

comunique-se com você mesma, a maneira: mais plena
um desejo e um afeto dançam juntos de tempos e tempos
hoje respira o que lentamente morria

era uma casca dura, mas não oca
depois que quebra: ouro, algodão, água

corpo arde e sorri, corpo, minha pele

vivo, quente, sim.

Maria Laura

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O que se conta do que se viu

Cinco pessoas. Três homens, duas mulheres. Dois homens e uma mulher de cada vez. Um homem, Uma mulher.
Uma história triste construída na esperança da felicidade. 
Shots, clicks, momentos recortados, retratos da vida. 
Tragédia e comédia ilustradas no destino alheio. A intimidade revelada através das palavras. O veneno destilado em privacidade que contamina a mente, produzindo dor e tristeza na alma.
A idéia nem era essa, o clima não era tão destrutivo, depressivo, mas saiu assim.
Eles não puderam ser tolos o bastante para amarem e se mostrarem interessantes para elas. Elas não puderam se despojar da identidade que lhes colaram para poder viver além da trajetória mal encontrada dos planos frustrados de Eros.
A insegurança travestida no controle, declarado pela idéia de juízo ou bem pensar, revela o ciúme, menos do objeto amoroso declarado, mais da inveja de não ser como o outro, aquele que reluz e fascina nossa mais vil vaidade. Quero dele aquilo que queria que fosse meu. 
Dou tudo por ele. 
Dou tudo por ela. 
Dou tudo por mim. 
Para você, não dou nada.

Simone de Paula – 10/01/2018

Texto-comentário baseado na articulação do livro ‘De Verdade’, de Sándor Márai, e os contos ‘O canalha”, de Nelson Rodrigues e ‘Queda que as mulheres têm pelos tolos’, de Machado de Assis.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O Movimento

Ele me convida para andar,
estica o braço, me oferece sua mão terna.
A direita.
Eu quase receosa, não sabia (temia).

- Veja, que avenida longa.
- O que é que tem isso?
- A cada passo, te conto.

Noite clara essa.

Maria Laura. São Paulo. Avenida Paulista.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A história de nós dois

A história de nós dois não tem história pra contar. Não tem fato pra inspirar. Não tem promessa pra explorar.
É um nada regado de fantasias erráticas, que borbulham no absurdo desse desencontro abstrato.
Um dia sim, dez não. Um noite quase. Duas tardes talvez. Esse tempo mal contado reflete o incerto da disposição, apesar do desejo.
Você tem sede de quê? Você tem fome de quê ? Nem bebida, nem comida, servem de apelo pra ajustar os ponteiros dessas flechas mirabolantes, que desviam do alvo pelo simples capricho de não ter que seguir na direção escolhida.
Um toque, um pulso, um bit servem pra ligar as pontas desconectadas dos nossos sentidos, recriando infinitamente esse espaço aberto de nada.


Simone de Paula -05/1/2018

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Fazenda

grama
terra
água
estômago

pássaro
poema
rio
cicatriz

planta
instrumento
línguas
alimento

na dança de roda, gira
e ama. Ama.

Maria Laura