sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Coisas da vida

Na vizinhança imunda do centro, o vento faz poesia com o jogo de loteria que caiu do bolso do carroceiro. No ballet daquele pedaço de papel, embalado pelo barulho dos carros velozes e envolvido pelo cheiro forte de fumaça quente dos escapamentos mal calibrados, fico pensando na sorte daquele homem, que apostou o pouco que tinha e nem mesmo terá a chance de ganhar uma ninharia. No seu descuido, perdeu a prova que mudaria a sua vida.


Simone de Paula -16/10/2017

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Dois

Na adolescência ela assumiu o apelido ‘Dois’. A escolha foi um tipo de ironia que todo jovem gosta de fazer e funcionou muito bem nessa fase tão difícil de inserção social. A ideia veio quando ela tirou um dois na prova de matemática, matéria em que seu desempenho sempre tinha sido exemplar. Era o destaque dela em casa e entre os professores. Mas, quando tirou o dois e viu que a turma do fundão curtiu, ela mesma resolveu se rebelar e bancar a desinteressada pelos estudos. Queria uma nova cara, um novo estilo, o dois veio ajudar a conseguir isso. De brinde ela ganhou a mãe no seu pé e o pai falando que ela só dava desgosto. Reclamava, gritava, se trancava no quarto, estava feliz, não pelos conflitos, mas porque finalmente agradava mais as pessoas que ela admirava do que os pais que ela obedecia.
Foi inventando um monte de histórias com o dois. Era segunda filha, os pais também eram filhos do meio na família deles. A casa tinha o número dois no final. Começou q andar de tranças, duas, brincando feliz com a identidade que a representava tão bem. Nas provas de matemática voltou a ter boas notas, porque entender aquele raciocínio era mais forte do que ela e nem se quisesse conseguiria ter notas baixas.
Como não podia deixar de ser, arranjou uma melhor amiga, eram duas. Mas todo o esquema seguro deu um tilt quando numa festa, um cara que elas não conheciam, mas que Dois ficou bem interessada, a provocou dizendo que se ela era a Dois, a amiga deveria ser a Um. Pane no sistema, ela não pensava assim nessa relação das duas. E mais, como ela encabeçava as escolhas, ali ela era Dois, a primeira. Sentiu ciúmes da amiga, porque notou que o cara olhava com mais atenção para ela. Sentiu raiva do cara, porque ele tinha sido esperto demais naquele jogo. Sentiu-se meio boba, pois as peças tão bem encaixadas do quebra-cabeças Dois tinham se soltado. Naquela noite Dois voltou pra casa chateada, não sabia muito como reverter aqueles sentimentos confusos e incômodos. Não queria abrir mão do que tinha conseguido com o apelido, mas não sabia como sustenta-lo diante da indiferença do outro. Afinal, se questionava por que o Um valia tanto na sociedade. Instigada pelo tema foi pesquisar. A internet era um sem-fim de assuntos e artigos que tocavam nesse tema. Mas o que mais se repetia era sobre a questão feminina, o tal segundo sexo. Percebeu que pelos ciúmes tinha se afastado da amiga, que não podia ser responsável pelo gracejo do cara que a provocou. Nem ele podia ser execrado por apenas dizer algo que era visível e ela tinha montado assim. O outro só revela o que a gente nem vê bem. Se acalmou, era tempo de olhar para frente, se rebelar menos e continuar escolhendo, sabendo que nenhuma escolha é absoluta. Tem sempre o outro lado: lado dois, lado B, qualquer das opções que se escolha há um tanto que não é positivado e jubiloso, mas enigmático e sombrio e que só se revela na surpresa e na decepção do que poderia ser um todo. 
A vida não dá garantias.


Simone de Paula - 15/10/2017

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Elementar

A fantasia tem abraços delicados, envolventes.

A fantasia de não ser desejado pelo outro.
A fantasia de não pertencer.
Não ser o que realmente é.

Há um dado inevitável: repetição.
Revivo e 
caio no buraco.
Caio no buraco.
Caio no buraco.

Até o dia que você desvia do buraco.
E segue.

Maria Laura


sexta-feira, 13 de outubro de 2017

“Puta, o nome do superego”

“Puta, o nome do superego”

O titulo do artigo gritou nos meus ouvidos, como você sussurra todo dia, bem baixinho, pertinho da minha orelha
Puta, puta, puta....
Tem dias que você chega com putinha, mas logo retoma
Puta, puta, puta...
É pouco, não aguenta, invoca minha linhagem
Vagabunda, filha da puta...
Puta, puta, puta...
Diz mais, repete, insiste, continua...
Diz puta pra mim, fecha os olhos e ouve a si mesmo preenchendo a boca de gozo na palavra Puta.
Puta, puta, puta...
Diz pra mim.... diz e revela o que você nem ouve de você.


Simone de Paula -08/10/2017

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Aliança



É um casamento.
Faço imagens.
A noiva, linda, enquanto sua gota de suor, contém a transformação de uma vida inteira.
O ritual é delicado.
Os vestidos longos.
Dança, brinde, celebração.
Dança, convite, concessão.
São dois, inteiros. Arriscam-se. Encaram-se.
Disseram sim.
Sim.





sexta-feira, 6 de outubro de 2017

No meu choro só tem mim

Eu chorei demais aquele dia. Chovia.
Sai de casa animada, adiantada, pensando que uma resposta eu poderia obter. Esperei muitos minutos e fui avaliada em menos da metade do tempo da espera. A notícia não foi boa, nem ruim, mas simplesmente cifras bem notadas do meu espectro corporal. Meu organismo estava ali, mapeado, sem nenhum traço de mim nele. Mentira, era exatamente mim. 
Há meses, anos, venho provando que digo a verdade. Inclusive, nos encontros breves, tenho que ser muito incisiva para poder ser ouvida naquilo que sei expressar. Parece que não entendem como eu posso dizer a verdade, e ainda assim, furar os sistemas tão bem desenvolvidos das ciências humanas, e exatas.
Sai de lá e chorei, muito. Não pelo resultado e ao mesmo tempo, totalmente pelo resultado. Era impossível repetir tantas vezes a mesma coisa. Mentira, era possível, eu estava fazendo aquilo.
Naquele momento, tão perto de você, senti sua falta. Queria poder dizer o quanto aquilo era desastroso em mim e chorar, no seu colo, no seu ombro, para você entender que mais do que saber que digo a verdade, coisa que você parece já ter entendido, ainda assim pudesse saber o quanto essa verdade dói em mim.  Mas você não estava lá. Eu só podia chorar e esperar.
O que faço não sei, só choro e observo para poder dizer as verdades sobre mim aos que pouco querem ouvir sobre essas verdades, que derrubam as certezas e convicções que carregam por trás dos seus semblantes rígidos de saber.
Não quero uma receita cheia de remédios, quero beijinhos no lugar das pastilhinhas, eles funcionam melhor em mim. Isso é verdade.


Simone de Paula - 05/10/17