sexta-feira, 16 de outubro de 2020

O ábaco

O movimento da cortina no fundo da loja chamou a atenção de Ahmad. Seus olhos não viram mais que um leve balanço da cortina de seda cor de mel. Mas isso bastou para seu coração disparar e sua mente precisar de muito esforço para se concentrar na explicação de Karim, sobre a peça de madeira que estava no balcão.

Karim era um comerciante de ábacos feitos artesanalmente. Mantinha a tradição de muitas gerações de sua família. Desde jovem, tinha se especializado na confecção e venda das peças, e assumira a pequena loja no souk central. Tinha ensinado Giti, a filha mais velha, a arte do entalhe da madeira e sentia orgulho da delicadeza com que ela trabalhava cada peça de forma exclusiva. Mas ele era um pai muito cuidadoso e conservador e não permitia que ela viesse à frente da loja quando tinha algum cliente.

Ahmad tinha se decidido a comprar uma nova peça, porque a sua estava desgastada demais. Ele era um estudante obstinado, que passava longos dias e noites calculando. A matemática tinha sido o primeiro amor, mas um amor difícil de conquistar. Ele tinha perdido os pais ainda criança e fora cuidado pelos irmãos da mãe. Sabia desde novo que precisaria encontrar seu caminho, pois ser órfão indicava que ele teria mais dificuldades para se estabelecer no mundo.  Escolheu a loja de Karim por mero acaso: olhou, sentiu um cheiro discreto de fumo vindo lá de dentro e foi atraído pela atmosfera silenciosa.

Enquanto os dois homens conversavam demoradamente no balcão, Giti se dedicava à escolha da matéria-prima para confeccionar o próximo ábaco. Tinha olhado discretamente o rapaz que tinha entrado na loja e a atraíra pela voz trêmula. Ela encontrou um meio de vê-lo, mas se deixou perceber quando soltou a ponta da cortina no momento em que se recolhia para os fundos da loja. Se encantou com a insegurança da voz dele, mas gostou também da postura levemente curvada, causada pela estatura elevada e a sutil humildade que lhe marcava a personalidade. Giti conhecia seu pai e sua capacidade de convencimento, especialmente com jovens respeitosos às tradições. Ela sabia que o rapaz compraria o que o pai quisesse e já se preparou para o trabalho. Mas sentia uma vontade especial nesse caso, queria criar uma conexão diferente com esse rapaz, ter algum tipo de segredo com ele. Ficou pensando em alguma forma de chegar até ele, de mostrar-se para ele, sem que precisasse aparecer na loja. Só tinha um jeito, a peça de madeira.

Ouviu a despedida dos dois e o pai a chamou. Ela veio obediente e ele pediu que ela começasse a confeccionar a peça do rapaz. Mal sabia que ela já tinha escolhido a melhor madeira. 

A preparação da matéria-prima é fundamental para o melhor resultado dos cortes e modelagens, mas Giti ainda queria mais. Imaginou que poderia colocar mensagens nas contas, esculpir elementos de caligrafia que se escondessem, mas que pudessem ser decifrados por alguém com sabedoria além da exatidão da matemática.

Envolvida em pensamentos dispersos na criação, se assustou quando Karim a chamou para irem para casa, pois o horário já estava avançado. Ela pediu mais uns minutos, anotou algumas ideias no seu caderno, organizou seu material e o cobriu com uma seda nacarada fina, bordada em dourado, que ela usava quando pensava em uma proteção especial. Olhou mais uma vez para a mesa de trabalho antes de sair em companhia do pai. 

Em casa, após o jantar, e o auxílio à mãe com as tarefas domésticas, foi para o quarto e pegou seu livro preferido com os poemas de Hafez. A cada linha lida, fechava os olhos e transformava a emoção em uma letra ou imagem. Adormeceu nesse estado de devaneio e quando ouviu os barulhos da casa, se deu conta que já tinha amanhecido, e ela deveria se preparar para ir novamente para a loja com seu pai.

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