sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Nome próprio

Minha avó se chamava Palavra. Ela conta que a mãe dela, minha bisavó, achava que a gente tinha que ter nome de coisas da vida. A irmã mais velha era a tia Dores, sem Maria, porque Maria, para a bisa, era nome próprio. Depois veio o tio Martelo, o tio Sapato e a tia Viola. 

A vó contava que a mãe achava que se a pessoa tinha um nome que não era de coisa, o nome próprio, a pessoa ficava se achando muito importante. Nome composto então, ela olhava torto e mandava os filhos não ficarem muito perto. Tinha certo que quanto mais a pessoa tinha posse do nome, mais ela se afastava do mundo. 

A bisa tinha ganhado o nome de Elegância, era a caçula de 10 filhos, e tinha nascido suave como um peixinho nada no rio. Viveu a vida assim, sendo chamada de dona Elegância. Assumiu nos gestos e tom de voz esse predicado. Eu conheci pouco a bisa, mas lembro de fazer um baita esforço pra andar quando estava perto dela. Se eu corria ela fazia um sinalzinho com as mãos, me pedindo pra chegar pertinho e dizia: "se for pra correr, faça como as gazelas." Eu parava na hora, parecia a maior bronca que alguém pode levar, mas nem bronca era. 

O nome toma vida, eu vi isso na família. E vocês já imaginam, tia Dores era dolorida, tio Martelo era impositivo, tio Sapato vivia na rua e tia Viola cantarolava o dia todo. Já vovó, essa era a mais tagarela. 

O pai dela, o biso João... pois é, a vó Elegância casou com um homem de nome de gente... era calado, só abria a boca pra dizer verdades. Quando vovó tava falando muito, contando causos e coisas dos vizinhos, ele nem olhava pra ela, mas pronunciava de longe, com o seu vozeirão, a profecia: "olha a Eco, minha filha!" Foi ele quem contou o mito da ninfa Eco, que ficou assim por falar demais. Mas vovó nem ligou, era gostoso mexer boca e língua e trocar olhares curiosos com quem queria saber o que ela tinha pra dizer.

Desde pequeno, aprendi que esse era o nome da minha avó antes de saber que palavra significava outra coisa também. Na escola, quando fui ser alfabetizado, surgiu a palavra palavra. A professora falou e deu um tilt na minha cabeça, me perguntei que raios ela estava falando da minha avó. Perguntei isso para a professora, porque criança pergunta sem medo de passar vergonha. Ela não entendeu a pergunta, mas era muito delicada, tia Alice. Mandou bilhete para a minha mãe, queria saber porque eu achava estranho quando ela falava a palavra palavra. E ainda disse que eu fazia um tipo de eco: toda vez que ela dizia "palavra", eu emendava, "vovó". Mamãe respondeu o bilhete e resolveu a confusão.

Foi depois de saber escrever palavras que entendi o que era o nome da minha avó. Quando a gente só fala, ninguém conta pra quente que o que sai da boca chama palavra. Fica assim: "como chama essa coisa?" e a criança tem que dizer o nome. Mas aí, quando a gente está lá, aprendendo que B+A é BA, alguém fala que aquilo é uma palavra. Bisa tinha razão, nome de coisa pode ser nome de gente, porque quando a gente quer saber o nome de alguém, pergunta: "como você chama?" É muita confusão dar nome próprio mesmo.

Então, quando aprendi que palavra é o nome da palavra e também o nome da minha avó, passei a fazer esse parêntese cada vez que eu falava dela para alguém. Vovó ficou com o nome composto, sem querer: "Palavra, minha avó". 

Toda essa história aí eu contei porque gosto tanto da minha avó, que eu quero que todo mundo saiba o nome dela, mas que não é só dela porque todo mundo usa palavra, pega palavra, fala palavra, escreve palavra, perde palavra, inventa palavra, e por aí vai.

Vovó morreu quando eu ainda era criança e quando eu falo dela parece que eu volto lá aos meus 8 anos de idade. Eu conto toda a história que eu sei da vida dela, essa mulher que contava o mundo em palavras. 

Simone de Paula - 29/10/2021





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