sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Indiferença

Toda a fachada de indiferença que Elisângela usava era pra disfarçar, ou melhor, esconder sua intensidade. Mas um dia, ela pirou.

Foi mais ou menos assim.. 

Sentada no sofá da casa em que morava com a mãe, lendo as notícias do dia, enquanto tomava um café, Elisângela começou a sentir um redemoinho no meio da barriga. Era um misto de enjoo, com nojo, com tristeza, com vergonha, com medo, com desespero, com decepção, com raiva, com solidão. Mix completo! E sem saber direito o que tinha provocado aquilo. Pela personalidade apaziguadora que tinha, usou o recurso comum: racionalizar. Pensou se tinha comido algo que estava brigando com o corpo dela. Mas aquela força aumentou e ela começou a gritar. Muito, sem conseguir parar, sem saber como desligar o botão, sem mexer nenhum membro do corpo a não ser as cordas vocais. A mãe veio correndo e tentava fazê-la calar, o interfone começou a tocar, certamente algum vizinho reclamando, mas ela não via ninguém, nada importava, nem saberia como parar.

Alguns minutos depois, aquele berro sem contorno virou choro compulsivo. Ficou muito tempo encolhida ali, na mesma posição, chorando por quase trinta anos de vida. Eram tantos os porquês, mas nenhum que ela quisesse pensar. Ficou calada o resto do dia. O choro ia e vinha, ela estava exaurida, não tinha força, nem vontade de sair daquele mesmo lugar em que tudo começou naquela manhã. 

A mãe trouxe um copo de leite, mas ela nem tocou. Trouxe um cobertor e esse ela aceitou. Deitou no sofá em que estava e desistiu de qualquer pensamento ou movimento, ficaria ali parada para sempre. Como agora estava silenciosa, a mãe a deixou quieta, afinal, aquele som estridente não incomodava mais ninguém, porque tinha cessado, ela estava calada novamente.

No meio da madrugada, outra crise, que veio com o incômodo na barriga, minutos longos de gritos, choro convulsivo e depois silêncio, quietude, tristeza. 

A mãe perguntou se ela queria um médico, ela negou. Ela não queria nada e nem faria nada, além de ter suas crises sem precisar se desculpar ou se envergonhar por isso. Naquele momento ela não conseguia pensar assim, mas depois ela entendeu que estava se absolvendo por tanta culpa que sentira sem nem haver porquê.

Tinha cumprido papeis, segurado tudo nas mãos, obtendo elogios e mais tarefas, mesmo que autoimpostas. A explosão surgiu como a coleção de nãos nunca pronunciados.

No trabalho, ganhou uma licença de duas semanas, mas ela pediu para ser desligada do emprego, não iria voltar. Não tinha como ir nem mais um dia na vida para aquele escritório. Precisava de tempo para sair daquele sofá, mas não seriam quinze dias, nem se ela quisesse, pois nada a moveria ali, a não ser o dentro dela.

Estava indiferente a tudo, agora de verdade. A fachada deu lugar ao sentimento de pouco se importar com a vida, o mundo, e principalmente as pessoas. Entrou no estado de basta.

Alguns meses se passaram. A mãe tentava algum tipo de conselho para ela sair daquele estado e ela nem respondia. Porém, numa outra manhã, sem nenhum jornal, mas silêncio e café, olhou para a mãe e disse suas primeiras palavras: “me deixa aqui, tá tudo certo”. A mãe calou e ela praticamente tinha mudado para o sofá, estava na sua atual casa. Aquele pequeno espaço em que tinha tudo. Levantava apenas para ir ao banheiro ou tomar banho. Comia ali mesmo. Era total passividade e silêncio.

Era impressionante vê-la, pois não havia ali um zumbi, mas uma mulher séria, mais viva do que nunca. 

Alguns pensamentos começaram a voltar, como sua boca não servia mais para falar, pegou um caderno e começou a escrever. Eram palavras soltas, sem conexão, sem a intenção de contar algo, não era um diário, mas um espaço de registro, só queria ter onde por as palavras que começavam a surgir. 

Três meses desse estado e ela decidiu que era hora de procurar um terapeuta, queria fazer um trabalho nesse sentido. Lembrou de uma conhecida que fazia análise e pediu um contato. Marcou uma sessão e foi sua primeira saída de casa. Chegou com um bilhete, "não consigo falar, mas vai acontecer em algum momento, só preciso estar aqui por enquanto". O analista aceitou e indicou a poltrona para que ela sentasse, mas ela se direcionou divã, não queria se ver olhada. Mais três meses de silêncio e passividade. Ela começava a notar que esse era o seu tempo, três meses, que não iria fazer mais nada que exigisse que ela precisasse se antecipar a isso. Ao menos três, esse era o seu novo lema.

Chegou na sessão, sentou na poltrona e começou a falar, pouco, sem sentido, apenas registro, como fazia com o caderno. O tempo passou, as palavras foram se encadeando de forma diferente e mostravam mais riqueza de sentidos. Ela confiava e se soltava naquele lugar. Não estava mais abandonada como no sofá, mas ainda se mantinha só e em distanciamento. Depois de entender seu tempo, agora experimentava seu lugar em relação aos outros e ao mundo.

No meio de uma sessão, sentiu novamente aquele redemoinho e não conseguiu segurar o grito. Berrou muito por quase dez minutos. O analista ficou surpreso, mas deixou a situação seguir livremente. Após o berro, veio mais dez minutos de choro, ele simplesmente assistia tudo aquilo em espera. Um respiro mais profundo, ela olhou para ele e começou a falar sem saber o que dizia. Começou pedindo, não me interrompa, por favor. Depois de mais de meia hora de frases e palavras atropeladas, como que sem terem sido pensadas para serem ditas, veio uma frase amontoada de outras que a encobriam, mas que foi escutada com plenitude: fui invadida, fui usada, fui abusada, me cegaram e eu nem sei. 

A revelação foi mais surpreendente para ela do que para ele. Era algo que ela praticamente não sabia, mas tinha acontecido. Quando ela parou de falar, olhou pra ele e perguntou: você ouviu o que eu ouvi? Foi isso mesmo que eu disse, que eu fui abusada? Ele confirmou. Ela levantou e foi ao banheiro, o vômito, dessa vez, foi o meio de colocar pra fora aquele embrulho do estômago. Ela voltou, agradeceu pela sessão, sorriu e disse que continuariam na próxima semana. Voltou pra casa livre de uma lembrança que a atacava por dentro. Agora iria tratar daquilo. 

Chegou em casa, saiu do sofá e voltou para o seu quarto. Tomou um banho e comeu, parecia com mais fome do que em qualquer momento teve na vida. Teria muito tempo para trabalhar aquilo tudo, se tratar, mas tinha achado seu espaço. Pôs pra fora aquele entulho que estava dentro dela. Reconheceu que era no meio da barriga que ela existia.

Simone de Paula 08/10/21

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