sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Destino

Ernani decidiu mudar o rumo da vida assim que recebeu o diploma. Passou cinco anos na faculdade de Direito, mas o que aprendeu mesmo foi que ele não era bom naquilo. Entendeu que a lei mais versava sobre os deveres do que os direitos que temos. Ver pela frente o mundo adulto com uma vida urbana, exigiria que ele andasse do lado dos tais deveres. Não quis. Pegou o canudo, endireitou as costas e seguiu atrás do seu propósito.

Começou ocupando o sítio da família, que era pouco visitado. Chegando lá, se sentiu um homem completo, com tarefas simples e a vida provida por ele mesmo. Descobriu a terra e o que daria para fazer com ela. Fez horta e pomar. Ainda não tinha como colher, mas já sabia plantar. O que Ernani não tinha se dado conta era que ele não era nativo e não tinha recebido ensinamento sobre o processo agrícola. Mas, afofou a terra e jogou as sementes. Enquanto não pudesse tirar o sustento dali, compraria alimentos na cidade. Se ocupou da lida diária que o sítio exigia.

Depois de três meses, veio a primeira surpresa: o primo Evaldo avisou que estava de férias e resolveu ir com a família para lá. Só ficariam quinze dias. Ernani ficou num misto de animação, pois teria companhia, mas também pensando que ia ser um incômodo cinco pessoas a mais naquela casa. Não tinha o que dizer, o sítio era da família, coletivo.

Eles chegaram, e como era apenas uma casa no meio do mato, com uns cachorros soltos, não acharam o que imaginavam encontrar: a natureza - ainda que ela estivesse bem ali. Descansaram os dois primeiros dias. Se interessaram pela horta de Ernani, mas não sabiam o que ver além dos brotos. As crianças queriam piscina, videogame, ou ir pra casa. O primo Evaldo, tentava inventar alguma coisa pra fazer com eles, levava para a cidade ou tentava ensinar a jogar dominó. As férias foram um fracasso.

Ernani, sozinho de novo, resolveu dar um trato na casa. Pintou, pediu ajuda ao vizinho e melhorou o telhado. Começou a fazer até um fogão a lenha. Mais três meses e tudo estava feito. A mãe de Ernani mandava dinheiro para ajudar, achava que também ia valorizar o bem e poderiam vender melhor no futuro. Ernani investia a vida ali.

Passou a fazer parte daquele lugar, conhecia as pessoas e o modo de vida, se adaptou fácil. Mas se incomodava com as coisas que não eram como deveriam ser. Os problemas para conseguir melhores sementes para ter a colheita mais farta, ou ainda as insistentes falta de energia. Só funcionava o que cabia no alcance da sua mão. 

Era final de ano e Evaldo avisou que passariam o réveillon no sítio. Dessa vez ele iria com a família e as irmãs. Levaram barracas pra acampar no quintal. Ernani não achou boa essa notícia, mas não tinha como vetar. Bastou uma semana para se instalar o caos. A inabilidade para usarem os recursos que o sítio oferecia fez com que ele se tornasse o empregado dos próprios parentes. 

Tentou convencer a mãe a comprar o sítio. Ela não queria fazer financiamento para isso. E, como ele não tinha emprego fixo, comprovação de renda, nem tinha renda, não poderia fazer isso sozinho? Reclamava dos deveres impostos a ele, mas reconhecia que quando o sítio era invadido pela família, era a falta de dever que fazia o caos se instalar. 

Se quisesse comprar aquele lugar precisaria pensar numa solução. Teria que tirar dinheiro de algum lugar. Conversando na cidade, percebeu que poderia usar o diploma que tinha para auxiliar um ou outro morador que necessitava de um apoio de advogado. Cobrava um valor baixo, mas era alguma renda. Como as mulheres rendeiras, ele teceu suas linhas e fez uma bela malha de clientes. Só suporte burocrático, que para eles já era o que salvaria suas vidas. 

Ernani foi percebendo mais e mais as leis e suas possibilidades. Mas a atenção que dava agora à nova ocupação fez com que ele esquecesse da sua horta. Os legumes e verduras reclamaram atenção. E ele resolveu se desdobrar para arcar com todas as tarefas. Ele tinha deveres diários que não poderia abrir mão. Gostava de como a vida rodava bem assim. 

O prefeito ouviu falar dele, o chamou para uma reunião. Perguntou se estava interessado em entrar para o Partido e se candidatar a vereador. A vaidade subiu e a razão desceu. Aceitou. Envolvido agora com a política local e a lógica que fazia operar essa estrutura, se distanciou da lida do sítio. Os primos resolveram ir de novo, e dessa vez ele nem se importou, quase não ficou ali para vê-los. 

Conseguiu juntar dinheiro e fazer um financiamento, porque agora tinha uma ligação formal com o partido, o que o ajudou. Comprou o sítio, mais pela posse do que pela sua vida lá.

Cinco anos depois que Ernani tinha decidido ir para o interior, a mãe resolveu visitá-lo. Eles tinham se visto pouco nesses anos, apenas duas ou três vezes quando ele tinha ido para a casa dela. Ela o observava de longe e sabia que ele estava caminhando para trilhas bem diferentes do que o filho idealista que ela conhecia. Chegou e só conseguiu vê-lo com calma depois de três dias. E ela olhou bem pra ele e perguntou: então agora você é aquele que usa a lei para ter direitos? Ele se surpreendeu com aquela frase e pareceu não compreender o que ela disse. Mas ouviu bem e não pode parar de pensar. Passou os dias sequenciais meditando sobre aquilo, revendo seu percurso. Avaliando como estava sua vida. Era boa, sem dúvida, mas menos importante. Olhou o sítio, que agora não recebia visitas, apenas tinha dois caseiros para cuidar da horta e da casa. Ele mal sabia o que tinha plantado lá. Descobriu que tinham mudado algumas coisas e ele nem notou. Se deu conta que as coisas mudam e a gente nem vê, que funciona como um vórtex que te leva para o centro e te engole. A frase da mãe refletia que ele tinha conseguido o que queria, mas será que o mundo era assim mesmo? Será que o mundo dele deveria ser assim mesmo? Refletiu sobre a lei e o dever, sobre os direitos do homem, repensou como queria viver os próximos anos de vida. Notou o corpo, o rosto, as roupas, as palavras que usava. Se viu outro Ernani e parecia que nem se conhecia ou como tinha se tornado aquele. Olhava pela janela da sua alma e parecia só encontrar a mesma situação do momento para o futuro, e se viu mais devedor do que qualquer ser humano que siga pelos deveres da lei. E tinha dívida mesmo: com o banco pelo dinheiro emprestado para o sítio, com o partido para seguir terminando o mandato de vereador e seguir trabalhando para ser prefeito, com os clientes que esperavam sua ajuda, afinal, ele continuava a ser um advogado que dava suporte. Devia ao mundo uma vida que nem bem ele quis.

Os cinco anos seguintes foram pagando, lúcido de que deveria concluir o que começou. Depois disso, decidiria o que fazer, pois o único direito que tinha era de escolher depois de não dever mais nada ao outro. A única certeza era a de viver no sítio, plantar e esperar o tempo passar.

Simone de Paula - 01/10/2021



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