quinta-feira, 3 de março de 2016

I


Junho. São Paulo.

Última semana de férias das três que tive, refletidas em mim.
Pelas horas tranquilas que dormi, pelos pensamentos soltos que vinham sem caminho, propondo um rumo de perguntas, choros desavisados, contentamentos simples, de bolo de milho cremoso e chá quente, bem quente.

Não sentia saudade do escritório, das suas horas mecânicas, do seu tempo congelado, seu assunto na superfície chata e fria de um cubo de cimento cinza e suor de gente, disfarçado pelo cheiro de laboratório da lavanda. As vezes me faltava um tipo de ar, que era o de respirar sem protocolo. Piqueniques me soavam estranhos, em cima de um tapete em cima de um piso em cima de uma grande caixa que era o andar. Chocolate para as sextas com chuva, bilhetinhos surpresa lembrando o quanto você é especial por enriquecer o mundo que empobrece a si mesmo.
Atenção para os últimos dias livres: amigos, café e cinema, caminhar solitário, um velho conhecido.

Até aquela noite.

Com o vestido azul e as sandálias cor de laranja, cabelo solto e curto, as coisas eram de outro jeito. O florido da estampa já anunciava um jardim repleto de sementes, ainda subterrâneas. Estavam em plena germinação, dentro do mundo.
Andávamos pela Vila Madalena, eu e Carol, ela me contava de um amor que vivia longe, em Paris e eu a ouvia como podia diante do ruído de torcedores em todos os cantos.
Era o outro lado do jogo.
Copa do Mundo, a primeira no país, emocionante ver o Brasil assim, recebendo caras e vozes tão diferentes, vagávamos ávidos por sabe-los e assim saciar nossa curiosidade diante do drible desconhecido.
A rua nos atropelava, éramos muitos, múltiplos, bola fora de área, jogadores sem time, perdidos diante desse fantasioso desejo de ser o que não é.
Enfim nos sentamos na mesa de um bar calmo.
Nossa conversa não se estendeu muito, deve ter durado quinze minutos até o primeiro convite para um chope, primeiro o nome, faz o quê, nacionalidade, solteira?
E aí trocamos o namorado em Paris, as saudades de Carol por 2 pastéis e um suíço, sem colarinho, novas pessoas chegaram e a pequena mesa passou a conter continentes. Falei entusiasticamente sobre o Rio de Janeiro, cidade que acho tão linda, generosa no calor e na pele, que me lembra aquele tempo dos amigos estudantes de arquitetura, do olhar atento aos traços das ruas e prédios, casas, calçadas. Tudo fazia desenho e cor. Queríamos aprender os filmes de Bergman e o Corcovado, filosofávamos sobre “Garota de Ipanema” e a mata em pleno desmatamento. Íamos pela rua Vinícius de Morais, éramos parte da melodia, das ondas e também do medo, do terror da violência anunciado a cada esquina. Agradecíamos ao sol e seguíamos.
Alguém do outro lado do bar ouviu meu discurso inflamado e com uma voz gostosa me conta: vou para o Rio!
Confesso que me senti uma pessoa boa no mundo, em pensar que alguém caminharia em Copacabana, ouviria aplausos do mar e poderia comer sanduiche de abacaxi com queijo depois do meu relato amoroso.
Não demorei em saltitar da mesa em que estava onde as reações passavam longe dos 40 graus que circulavam dentro de mim, ali sentados, pareciam presos na fria terra materna. E olha que se ouvia samba, um belo Cartola, você está no Brasil meu irmão, há que aquecer a alma e o coração.
E pulandinho assim fui me sentar com o simpático moço. Tinha um rosto árabe, era muito alto. O inglês mole e cantado pela embriaguez de ambos, somados as gargalhadas foi sem dúvida a língua mais fácil e difícil de se entender ao mesmo tempo.
Mas havia outra pessoa ali, me olhando com cuidado. Era o amigo, me contam que são indianos. Indianos?!
Enquanto ele observava lentamente.
Estava sentado, ereto. Vestia sua melhor camisa, os cabelos bem penteados, lindo. Depois de se apresentar, senti como se me segurasse pelos braços, forte. A pele escura, a voz tímida, um charme tão genuíno que me senti derretendo como Amelie. 
Me conta que vai deixar tudo e fazer o seu filme.

Pensei: vamos.

Carol e o amigo se aproximaram, o barulho continuava. Não importa. Era o mais puro silêncio.
Fomos até a calçada.
Me afastei por um instante, fui distraída por um olá sem importância, olhei de novo para ele encostado no muro, acendia um cigarro enquanto conversava com algumas meninas. Fiquei enciumada, imaginei que elas logo poderiam provar da experiência única que havia sentido a poucos instantes quando ele sorriu. Por um momento imaginei uma iguaria perdida na disputa diante de tantos esfomeados.

Me enganei.

Foi porque quando cheguei perto dele, ainda um pouco cabisbaixa diante do suposto desencontro, ele olhou para baixo também, acompanhando meu rosto, procurando o ângulo onde nos encontraríamos, e disse, sem saber que uma vida inteira mudaria, em tempo, ação, amor e geografia:

You.














Maria Laura, 03 de março de 2016.


3 comentários:

  1. Wow darling! You really have what it takes to be a writer! Your ability to describe is out of this world! Congrats... Fernando Molini.

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  2. Wow darling! You really have what it takes to be a writer! Your ability to describe is out of this world! Congrats... Fernando Molini.

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