quinta-feira, 17 de março de 2016

Embarque

Quando você viaja encontra uma parte sua que fica trancada na mala até o dia do embarque. Reaparece aos poucos, conforme a distância daquilo que aparentemente se sabia, aumenta.

Nossos avessos se cansam de ficarem guardados.
Há algo no caminho, você abrirá a caixa e se perguntará o que tem dentro dela, não há mais volta.
Entramos em contato.

Hoje encontrei uma mulher no metrô, por volta dos 60 anos. Eu ia para o sul de Mumbai, procurava pelo famoso Crawford Market, ela percebendo minha falta de localização, vendo meus olhos desesperados diante de sinalizadores em hindi, pede para que eu a siga.

Fomos juntas ao vagão somente de mulheres. Ela se senta na minha frente e com uma atitude diferente da maioria, me pergunta de onde sou, o que estou fazendo, quanto tempo fico. Vou dando toda a corda do mundo, adoro falar com as mulheres indianas, quero saber delas, trocar, dizer que a roupa e o cabelo estão lindos, que elas são lindas, que as pulseiras douradas, azuis, vermelhas só exaltam um brilho que já está dentro de cada uma, mesmo diante da realidade dilacerante que vivem a maioria e que o tecido, as voltas, o volume, a textura e a estampa, o bordado e o desenho, que tudo isso cresce diante dos meus olhos, do meu lado do escuro, que olhar para ela me faz perceber o outro, a outra dentro de mim, em tantos sentidos, em processo contínuo de revelação.
A experiência.

Não nos entendemos na língua, mas sabemos o que nossos corpos conversam.
São prosas do feminino, o que mora em mim saudando o que mora nela e assim nos sabendo como parte de um mesmo mundo e portanto de um mesmo afeto.

Ashima era só um breve anúncio do que viria logo ali, logo mais, bem perto.

Ela me aconselha a descer na estação Marine Line, mais próxima do mercado. Aceito. Sem saber que dizia sim para algo muito maior.
Nos despedimos, desci do trem.
Chego na saída, olho para rua.
Por um momento não acredito no que vejo.

São dezenas, não.
São centenas.
Mulheres em marcha.
Cantam, repetem, cantam, são coloridas, estão vivas.
Determinam o ritmo das ruas com seu clamor, a cidade está atenta, como eu.
E emocionada.
Faço parte do passo, vou com elas.
Uma me pega pelo braço, me quer perto, conta um monte de coisas, não entendo nada.
Enfim, estamos em plena sintonia.
Eu digo para ela que não falo sua língua, não importa, ela continua, continuamos.
Em um intimo laço de reconhecimento. Nossos sorrisos sabem.
Só temos o caminho e seguimos.

Descubro mais tarde que são pescadores e suas mulheres em busca de melhores condições para viver.
Seu peixe está contaminado, seu prato vazio, o corpo cansado, seus filhos tem fome, de tantas coisas.

Me dão uma bandeira amarela.
Pegam minha mão, levante! Levante!

Não sabia o que era o amarelo, não conhecia suas cores, mas sabia que em memórias de amor cabem todas as impressões.


Maria Laura, Mumbai, 18 de março de 2016.




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