Mais uma manhã e aquela poça de água espalhada pelo hall do apartamento. Já não era a primeira vez e pelo mistério que a envolvia, não parecia ser a última.
Geralmente aparecia acompanhada de uma chuva na noite
anterior, mas era muito estranho, pois o hall não tinha janelas.
Eu
me lembro bem a primeira vez que olhei aquela enorme
mancha de água no chão. Água que insistia em ficar ali, parada, imóvel,
presente, enigmática. Como tinha chovido, a primeira hipótese
era sobre ter alagado um dos apartamentos e a água escorrido pela
escada. Olhei a saída da porta do meu apartamento, nada indicava tal
possibilidade. A poça estava mais para os lados da minha vizinha,
aquela que mora há tantos anos no edifício, que insiste em ser a
manda-chuva,
mesmo sem assumir o cargo de síndica. Pensei que provavelmente teria
vindo do
lado dela. Abaixei para olhar mais perto, nenhuma pista sobre a origem.
Fixei bem o olhar para notar se
existiria um restinho do filete de água que pudesse ter gerado aquele
acúmulo. Nada. Nem sinal da água ter saído da casa dela. Olhando melhor,
a água não
vinha de lugar nenhum, nem de uma infiltração da escada, nem tinha
escorrido dos
apartamentos de cima através dos degraus. A água brotou no meio do hall.
Sem saber o que fazer, desci e avisei o zelador que me olhou
com uma cara estranha e disse que iria limpar. Notando aquela reação,
perguntei se ele sabia o que era e ele disse, com aquele jeito de
mineiro que não fala pra não ter que provar, mas também não fica quieto:
- Deve ser a mulher do cento e onze...
E eu lá sabia quem era a mulher do cento e onze? Aceitei
essa informação como verdade. Mas outra dúvida brotou na minha cabeça: como a mulher do cento e onze teria ensopado
o hall do sétimo andar? Sem muita paciência para a fofoca, fui embora, com a dúvida.
Dia seguinte, nada de poça. Mas uma mancha fosca no piso que
havia sido resinado há poucos meses, maculava aquele chão antigo e indicava:
"passei por aqui“. Mas quem? A mulher do cento e onze ou a água enigmática?
Dez horas da manhã de um sábado ensolarado toca o interfone.
Era a vizinha, não a do cento e onze, mas a do setenta e dois. E foi logo se
desculpando por ter ‘invadido’ minha privacidade ao interfonar:
- Oi, bom dia, tudo bem? Você viu o hall manchado, né?
Queria só te avisar que vem o pessoal da limpeza pra remover a resina.
Ela dizia aquilo como se a água misteriosa nem tivesse
existido. Eu queria mais saber da água do que da remoção do
verniz que ela insistia em passar no chão, para disfarçar a decadência do piso
‘original’. E fui logo perguntando em tom de fofoca, porque sempre funciona:
- Mas de onde veio aquela água? E ela falou mais baixo, como se as paredes e
portas tivessem ouvidos.
- Não temos certeza, mas parece que foi a mulher do cento e
onze. E eu continuei, com uma tentativa de entender melhor:
- Mas como ela jogou água no hall e ninguém viu, nem ouviu?
É estranho, porque não tinha marca de água vindo de nenhum lugar, pra mim era
infiltração da escada.
E, ela veio com mais histórias.
- Não podemos provar, mas ela tem um problema com cheiros e
parece que o produto de limpeza que passamos aqui a incomodou. E ela joga água
para neutralizar.
Era muita loucura para um sábado de manhã.
Minha cabeça tentava reconstituir a cena com uma mulher inventada, porque eu não sabia que cara ela tinha, e eu viajava: ela trouxe a água num balde ou ela veio com uma garrafa? Desceu pelo elevador ou pela escada? Que cheiro ela sentia que eu, que moro ali, não sentia nada. Como um cheiro provoca isso tudo? Desisti, não ia entender e ‘nem tinham como provar’, ninguém sabia de nada.
Minha cabeça tentava reconstituir a cena com uma mulher inventada, porque eu não sabia que cara ela tinha, e eu viajava: ela trouxe a água num balde ou ela veio com uma garrafa? Desceu pelo elevador ou pela escada? Que cheiro ela sentia que eu, que moro ali, não sentia nada. Como um cheiro provoca isso tudo? Desisti, não ia entender e ‘nem tinham como provar’, ninguém sabia de nada.
O verniz foi removido. O piso era todo fosco e velho novamente.
Todas as manhãs, ficava evidente a secura daquele chão. Mas depois da
chuvarada, a poça aparecia, dando brilho naquele chão opaco. Eu não acreditava, porque se tinha sumido o
verniz, o cheiro tinha ido junto. E aquela água não vinha de nenhum lugar. O
prédio era velho, mas não parecia ter fantasmas.
Novamente
falando com o zelador ele me contou que a mulher
do cento e onze tinha discutido com o morador do primeiro andar, por
causa dos
cheiros do prédio. Não aguentava entrar no elevador pela manhã, porque
os
moradores tomavam banho e passavam muito perfume e o espaço era fechado.
Os
produtos de limpeza do prédio tinham cheiro forte e ela não suportava,
estava
enlouquecendo. Brigaram, se xingaram e ela o ameaçou. Só faltava essa, a
mulher
do cento e onze era doida e pretendia matar o morador do onze, que era
um policial aposentado que tinha uma arma em casa, mas não conseguia
segurar a louca do topo do prédio. O assunto se espalhava. A vizinha do
cento e doze tinha medo de levar uma facada durante a noite, pois já
tinha sido
ameaçada, e agora passava perfume só quando saia do prédio ou dentro do
carro. A
síndica não colocou aviso público, mas aconselhou os moradores a
usarem
apenas o elevador social pela manhã, deixando o elevador de serviço,
‘sem
perfume’, para a inquilina problemática. O faxineiro limpava o prédio só
com
água, evitando assim, provocar a fera.
Resumo: a louca enlouqueceu o prédio todo.
Era hora de tomar uma atitude, não fazia sentido prolongar
essa situação absurda. Comunicaram o dono do apartamento, sugeriram que ele
tomasse uma providência. Ele não queria mexer com a mulher do cento e onze,
porque ela pagava bem e nunca atrasava. Mas os moradores se sentiam ameaçados e
a decisão foi pedir o apartamento.
Ele pediu, ela mudou.
Chovia e nada de água. Limpavam pisos e escadas e nada de
água. O mistério tinha sido solucionado: era a mulher do cento e onze que
jogava água no chão. Ninguém sabia como e nem porque ela só molhava o sétimo
andar, mas acontecia.
Alguns meses se passaram e me encontro hoje, olhando para a
mesma poça naquele chão. Sim, teve chuva, mas não, não teve alagamento no
prédio e nem a mulher do cento e onze voltou a morar aqui. Vai começar tudo de novo.
Simone de Paula – 23/02/2016
hahaha muito legal!
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