Mumbai, 01 de abril de 2016.
Estive fora por uns dias, agora de novo em Mumbai.
Quente, muito quente.
O sol esquenta a cabeça, acentua os sentidos, a sede.
Depois de andar um pouco, o corpo amolecido já pede
descanso, vento, água fora e água dentro.
É um banhar-se constante. É um pedido de renovação.
Um batizado para o que nasce e compõe corpo, terra, música,
oração.
Sexta-feira santa. Viajamos. Ônibus, 8 horas de buzina pela
estrada.
Mahabaleshwar, cidade de montanhas.
Chegamos a tempo para o chai da manhã.
O chai da manhã.
O mango lassi.
Cheiro do gengibre no mel.
A temporada de morangos.
É disso que estamos falando.
Depois o descanso e o jantar.
Se prepare, hoje teremos coisas raríssimas.
Puseram a mesa e imaginei que estivesse pronta. Digo, imaginei
que eu estivesse pronta.
Mas o tempo me pega desprevenida por aqui, não sei nunca se
meu ponto de cozimento está certo, perdi as medidas da temperatura.
Chegam os bolinhos.
Aparentemente inofensivos, douradinhos pelo ghee, crocantes,
sedutores.
Abri e precisei de alguns segundos diante do seu exótico
recheio.
-
O meu está estragado, olha, está cinza, mole,
vamos trocar o prato?
-
Não, está ótimo, é assim mesmo, cérebro é assim.
-
Oi?
-
Cérebro, de carneiro, precisa provar, é uma
iguaria indiana.
Mordi, mastiguei e engoli.
Um soco no estômago.
Foram dias de recuperação.
Indigesta, faminta, imóvel diante da dor.
Dor de limite, de corpo querendo ser ouvido.
E nos ouvimos, atentamente. Pensei no bicho, na sua força,
na minha raiva.
Somos parte do abraço que não nos damos, os braços frouxos
demoram a se entender diante da sua falta de costume.
Foi uma solidão nova. Uma profunda intimidade entre o meu
medo e a minha escuta.
Eu estava no mundo e agora cabia em mim.
De volta, em um barco em pleno mar, oceano indico, ia em
direção a gruta da Elefanta, em pouco tempo estaria diante das enormes
esculturas de olhos fechados, dançando pelas pedras, homenageando Shiva, a
deusa da destruição.
Em entrega de onda, em pleno movimento sou fisgada de novo.
Olho para o meu pé e vejo, ele ali, cinza, mais cinza.
Um rato me pegando pelo dedão.
Um grito tão poderoso saiu de mim que ele fugiu desesperado,
de repente não estava mais sozinha, tinha um barco inteiro comigo. Em
solidariedade. Solidariedade de rato.
Para se chegar na gruta é preciso subir inúmeros degraus.
São tantos que achei que tinha me perdido, que o roedorzinho
tinha levado uma parte da minha orientação. Estou vermelha, a voz não sai, o
sol me queima, onde estou?
Quando um senhor indiano de pernas trançadas, como de
costume, me olha com todo cuidado, passa mais um fio enquanto tece seu
artesanato e diz:
-
Você está no caminho, mas ele ainda é longo,
pode continuar por aqui que vai chegar. Mas lembre-se: go slowly.
É aí que você sabe e confia na sua jornada. Encontre os
bichos.
Estamos todos em comunhão.