sexta-feira, 29 de junho de 2018

Prisão


O barulho do tráfego de veículos anunciava o começo de mais uma manhã. Ela estava presa há muitos dias, não sabia dizer o quanto. O tempo não era mais contado. No começo tentou manter o hábito: ficar acordada de dia e dormir à noite. Mas isso não fazia sentido nenhum, pois não tinha nada para fazer, nem de dia, nem de noite. A espera era permanente, portanto a lógica a luz não importava.
Levou um susto com o grito da carcereira, “se arruma, seu julgamento é hoje. O advogado já está aqui.” Levantou, passou a mão pela roupa surrada que usava, alisou o cabelo, estava arrumada.
No tribunal sabia que deveria ficar calada. Se alguém lhe perguntasse algo, só responderia quando autorizada. Não tinha mesmo mais nada a dizer. Sua culpa era real e não ia fugir disso. O julgamento começou. Advogado de acusação, defesa, falatório sem fim. Em alguns momentos, abria os ouvidos para captar em que parte do processo estava. Quando ouvia alguém falar algo de forma a parecer fato incontestável, sabia que não correspondia à realidade de todo aquele crime. Não falou nada, não podia e nem queria falar mais nada daquilo. O fato é que ela cometeu um crime, estava sendo julgada e pagaria a pena. Isso era o fato e só.
Horas e mais horas sentada ali. Apontavam para ela, olhavam para ela, falavam dela. Estava num palco e sua performance era parecer um manequim, parado, apenas apresentando a coleção de algum gênio da moda, que neste caso, era o discurso do advogado.
O julgamento não foi rápido. Seu depoimento também demorou muito tempo. Era monossilábica, não tinha como se defender. Muitas vezes parecia até cruel ou insensível, tamanho realismo com que contava o que tinha feito. Naquela tarde fria de inverno, estava em casa. Olhava aquele que a perturbava, olhava a faca. Não tinha porque não fazer um se encontrar com o outro. Matou sim, porque não tinha outro destino, nem para o amante, nem para a faca e muito menos para si mesma.
O juiz parecia não saber direito como condená-la. Ela era enigmática para ele. Não a julgara de antemão, pois talvez soubesse do segredo daqueles que não podem fazer nada além do que fizeram. O crime é premeditado, porque não há nada além do crime a fazer. Olhava muito para ela, queria poder julgá-la e não apenas seguir os passos daqueles que já tinham estabelecido um destino para ela, os advogados ou a própria Lei. Ele sabia que ela seria presa, sabia do crime, mas queria poder aplicar a pena exatamente no tamanho do seu ato, da sua culpa, para que quando ela saísse, se sentisse verdadeiramente quitada.
Cinco dias depois, saiu a sentença: dez anos de reclusão. Ela ouviu, assentiu com a cabeça, parecia achar justo. Os últimos dez anos de sua vida tinham sido insistindo em achar um sentido e agora teria mais dez para saber que não estava do lado de fora, mas dentro. Finalmente um homem determinou seu destino, como ela tanto esperou dos últimos relacionamentos que teve.
Agora não estava mais presa numa cadeia urbana, em que tinha a referência do som da cidade para se guiar. Foi transferida para a penitenciária pública no interior. Chegando lá, ouvia mais ecos do que silêncio, pois o prédio de proporções significativas parecia isolar inclusive o som que vinha de fora. Para sentir tempo, espaço, sensações, teria que ser nos intervalos dos banhos de sol e atividades coletivas na área externa da construção.
Estava acostumada a obedecer e isso a ajudou a estabelecer seu lugar ali. Percebeu a hierarquia e se colocou num papel de reclusão. Não queria fazer amizades, nem aparecer, chegou muda e se fez de cega e surda. Não sabia nunca de nada. Se resguardou assim. Era não pouco combativa e estava tão resignada, que lhe foi permitido pelas colegas ficar no seu canto. Parecia não conseguir mais ajustar seu relógio biológico com o tempo do mundo. Seguia dormindo de dia e acordada à noite. Quando era obrigada a sair, saía, mas não respondia muito a um protocolo padrão. Não fez da prisão uma casa, não tentou moldar aquele espaço com as suas ideias de um lar, uma vida em sociedade, estava mesmo afastada do campo social, não pertencia e não opinava e nem construía.
Uma das carcereiras parecia olhá-la como o juiz, como se ela tivesse algo ali, preso dentro dela e que poderia sair a qualquer momento. Tinha força, intensidade, mas não era destrutivo. Era uma erupção que poderia acontecer de súbito, como um vulcão.Sugeriu que ela frequentasse a biblioteca, pois ali teria mais o que fazer do que ficar ouvindo papo furado das colegas.  Ela aceitou e ali encontrou uma forma de criar uma conexão com o seu tempo e seu espaço. Mais uma pessoa que notou algo nela e lhe indicou um destino para seguir, dessa vez, uma mulher. 
Nas noites de lua cheia a cela parecia se iluminar. Eram noites prazerosas. Ela olhava a parede abaixo das grades como quem olha um portal. Olhava longa e fixamente. Respirava. Parecia que via ali a tal erupção que juiz e carcereira viram nela. Não sabia como extrair isso dali, como ajudar a parede a expor o que tinha contido nela.
Quebrou o silêncio pela primeira vez depois de três anos. Comentou brevemente com a carcereira, sua conselheira, sobre enxergar algo na parede. Depois do jantar, quando foram recolher as bandejas, a carcereira deixou cair a colher do seu prato e não fez questão de pegar. Simulou um chute para dentro da cela. Sussurrou: “guarde isso!”
Ela guardou e segurava toda noite aquele amuleto enquanto olhava para a parede que falava com ela com palavras intraduzíveis. Mais dois anos se passaram. O corpo dela parecia cada vez mais potente, seus olhos mais vivos, ela estava quase entendendo o que era dito nas suas longas conversas noturnas com a parede de sua cela.
Numa noite mais quente de lua cheia de verão, as colegas de cela brigaram por motivos desconhecidos por ela. Todas foram suspensas e levadas para a solitária. Ela foi enclausurada. Silêncio, escuro, não tinha como ver nenhum vestígio do ambiente em que estava. Assustada, perdida, angustiada. Fechou os olhos fortemente, colocou a mão nos ouvidos e passou a noite inteira gritando sem parar. Amanheceu e foram devolvidas à cela que habitavam. Ela estava esgotada, mas quando entrou novamente naquele espaço familiar, viu a parede de uma forma completamente nova. Pegou a colher-amuleto e passou a riscar aquela superfície de concreto. Raspava, riscava, sem parar. As colegas diziam: se vai cavar um túnel, neném, melhor no chão, porque aí, quando acabar a parede, tem abismo, você morre. Riam e ela riscava. Toda noite o barulho intermitente de metal no concreto embalava as presas e a animava.
O tempo passou, a carcereira olhava o que acontecia ali. Não tinha como registrar aquilo, não poderia entrar com uma câmera fotográfica, mas queria que mais alguém soubesse. Se contasse para sua chefe, poderiam tirar o utensílio dela. Mantinha segredo, mas admirava, sabia que aquilo tinha um valor maior do que as rasuras vistas pelas outras presas.
O tempo passou e seu advogado pediu redução de pena por bom comportamento. Ainda não tinha sido julgada a liberação, mas o advogado foi visitá-la para dizer o andamento do processo. Ela se recusou a sair antes, disse que estava no meio da produção de algo e que já tinha contabilizado o tempo, precisava mesmo ficar todos os dias e horas da pena estipulada pelo juiz. Ele não entendeu, mas aceitou, não poderia tentar tirá-la dali. Percebera que ela estava estranha, meio doida. E, naquele estado de insanidade em que ele a via, imaginava que ela seria capaz de cometer outro crime para não ser obrigada a fazer o que não queria.
Dois dias antes da sua liberação, a carcereira falou novamente com ela. “Sua obra é magnífica. Está pronta? Daqui dois dias você será liberada.” E ela respondeu: “sim, em dois dias estará finalizada”. Nesse momento a carcereira resolveu comunicar o fato à sua superior, que veio olhar o trabalho em todas as paredes, teto e chão da cela. Era impressionante. Tinham notado que as colegas de cela tinham ficado muito mais tranquilas, pois pareciam embaladas pelo vigor das marcas que ela fazia. Agora parecia ter alguma conexão entre os fatos. Aceitou fotografar tudo. Contou para o advogado de defesa, que anexou as fotos ao processo. Na hora do pedido de soltura, no dia que ela seria liberada, o mesmo juiz viu, junto aos autos,  as fotos. Ficou impressionado. Pediu para recebê-la assim que ela fosse liberada, queria dizer-lhe algumas palavras. Guardou as fotos com ele. Ela recebeu da carcereira o aviso sobre ser a hora de sair, para se arrumar. Ela fez o mesmo gesto do dia do julgamento, passou a mão pelas roupas, alisou o cabelo. Pegou a colher e devolveu para a carcereira e seguiu para fora da cela. Não olhou para trás.
Diante do juiz, disse estar pronta para seguir em nova direção. Queria trabalhar em minas, cavar buracos nas pedras. Se ela não pudesse cavar algo, mataria alguém de novo. Ele a apresentou a um amigo que apoiava artistas marginais. Seguiu lapidando cavernas.

Simone de Paula – 24/06/2018

Conto inspirado na história do pintor francês Augustin Lesage

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